Além da academia

por Juliana Sayuri

Antropóloga Lilia Moritz Schwarcz lança livro sobre o autoritarismo no país e se lança nas redes sociais para debater com um público maior

Na casa dos 60, a antropóloga Lilia Katri Moritz Schwarcz decidiu se aventurar. Desde a década de 1980, a paulistana percorreu os campi das melhores universidades do mundo: estudou história, doutorou-se na área de antropologia social e conquistou os postos de professora titular na Universidade de São Paulo, global scholar em Princeton (Estados Unidos) e professora visitante em Leiden (Holanda), Oxford (Inglaterra), École des Hautes Études en Sciences Sociales (França), Columbia e Brown (Estados Unidos).

Fundadora da prestigiada editora Companhia das Letras, escreveu diversos livros premiados e traduzidos para outros idiomas, como O espetáculo das raças (1993), As barbas do imperador (1998) e Brasil: uma biografia (2015), este último em coautoria com a historiadora Heloisa Starling. Um currículo acadêmico de fazer inveja a muito ministro.

“Sempre digo: eu devo tudo à universidade. Foi a universidade que me formou, que me permitiu ler tantos trabalhos e que me lançou a tantas viagens pelo mundo. Agora estamos vivendo um momento no Brasil que pede mais de nós, acadêmicos. Pede uma face pública”, diz Lilia à Tpm.

Traduzindo: “dar a cara à tapa” na internet. Assim, paralelamente à sua consolidada carreira universitária, entre aulas, conferências e congressos científicos, a antropóloga vem tentando dialogar com outros públicos no Instagram, onde o perfil @liliaschwarcz soma mais de 60 mil seguidores. Na página no Facebook, são 23 mil; no YouTube, 19 mil. Nos vídeos, feitos com a produtora Uzumaki Comunicação, Lilia assina “Profa. Lili”.  

A aventura digital remete a agosto de 2015: na época, Lilia tornou-se colunista do jornal digital Nexo e curadora-adjunta para histórias e narrativas do Museu de Arte de São Paulo. Incentivada por Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp, a antropóloga criou um perfil no Instagram para compartilhar imagens das exposições, a partir de janeiro de 2018. Perto do segundo turno da disputa presidencial, no fim de outubro, a mão de Lilia coçou: além das imagens de arte, passou a postar fotos, stories e textões sobre política.

LEIA TAMBÉM: Julgue como uma garota: Kenarik Boujikian, a mulher que condenou Roger Abdelmassih

Textão, aliás, não estava no seu léxico. “[Mas] meu desconhecimento foi minha vantagem: eu não sabia que Instagram não era pra texto grande, mas escrevi e escrevo mesmo assim. Está dando certo. Descobri agora que sou autora de ‘textão’”, ela define, durante entrevista no seu escritório na editora, ao lado de um notebook com o emblemático adesivo azul “Rua Marielle Franco”.

Outro texto grande de sua autoria, na verdade, um livro, foi lançado recentemente: Sobre o autoritarismo no Brasil, que dá continuidade a discussões abertas no título anterior, Brasil: uma biografia, e colunas publicadas no Nexo.

Trata-se de um convite, conforme a autora define ao longo das 280 páginas do livro: “A quem não entende por que vivemos, nos dias de hoje, um período tão intolerante e violento; a quem recebe com surpresa tantas manifestações autoritárias ou a divulgação, sem peias, de discursos que desfazem abertamente de um catálogo de direitos civis que parecia consolidado; a quem assiste da arquibancada ao crescimento de uma política de ódios e que transforma adversários em inimigos, convido para uma viagem rumo à nossa própria história, nosso passado e nosso presente”.

Nesta entrevista à Tpm, Lilia comenta o novo livro e sua atuação nas universidades e nas redes sociais.

Tpm. No novo livro é muito marcante o tom, a linguagem mais acessível a não acadêmicos. Esta foi a ideia?
Lilia Katri Moritz Schwarcz. 
Sempre digo: eu devo tudo à universidade. Foi a universidade que me formou, que me permitiu ler tantos trabalhos e que me lançou a tantas viagens pelo mundo. Agora, estamos vivendo um momento no Brasil que pede mais de nós, acadêmicos. Pede uma face pública. O livro anterior, Brasil, uma biografia, foi encomendado pela editora Penguin Random House, da Inglaterra. Heloisa [Starling] e eu tomamos a tarefa de escrever um livro com uma nova linguagem: simples, mas sem simplificar. Esta é a equação: como conversar com um público mais amplo, sem infantilizá-lo?

Logo após a publicação do livro [2015], veio o exercício de colunista no Nexo, também nessa direção: abordar antropologia e história, mas com uma linguagem diferente, de crônica, sem notas bibliográficas ou aparato teórico muito “cabeludo”, entre muitas aspas. E veio assim minha atuação mais forte no Instagram, que começou no segundo turno das eleições [presidenciais, em 2018]. Antes era um perfil voltado para as artes, por causa da minha posição no Masp. Agora, posto todo dia a análise de uma notícia. Teve grande acolhida. Este é um espaço a ocupar, pois há um público sedento de informações, mas que precisa de outra linguagem.

O livro atual, Sobre o autoritarismo no Brasil, também foi um pedido da editora. Pela primeira vez, escrevi em ritmo tão ligeiro. Foi um esforço para me pautar nas discussões anteriores, reunidas nesses materiais, e avançar. Na academia, temos um ritual importante: nós nos aprofundamos em determinado assunto e tendemos a falar apenas do que entendemos a fundo. Mas aprendi, com as crônicas jornalísticas, o Instagram e o Masp, que nós podemos arriscar um pouquinho mais.

Qual é a medida dessa linguagem? Alguém te dá dicas sobre o que está muito teórico, por exemplo? Tive diversas ajudas e, às vezes, broncas, nas colunas, no livro, no museu, no Instagram e no YouTube. “Você pensa que tá falando com quem? Essa frase está difícil”, por exemplo. A atividade no Masp também me deu essa medida: o texto de um museu na Avenida Paulista não deve ser “tese na parede”. No YouTube, uma vez eu estava gravando sobre Dom João, que foi para o degredo. O diretor disse: “Corta! Que que é degredo? É exílio? Fala exílio”. No Instagram, meu desconhecimento foi minha vantagem: eu não sabia que [a rede social] não era pra texto grande, mas escrevi e escrevo mesmo assim. Está dando certo. Descobri agora que sou autora de “textão”.

Todos esses dados e dicas são importantes para genuinamente tentar chegar a outro público, sem preconceito. Muitas vezes, nós tendemos a caricaturar esse público. Cada vez mais, os intelectuais estão vendo que, se as redes sociais têm essa face, constrói polaridades, ódios e afetos partidos, também permitem conteúdo. Sinto que há uma carência de informações e o feedback que tenho recebido é positivo e respeitoso. E o melhor: o pessoal do Instagram também comenta e me dá outras informações que eu não conhecia, aí atualizo os textos. Se os intelectuais não chegarem a essa linguagem e a esse público, outros chegarão.

O discurso autoritário sempre esteve presente no país? Desde os anos 1930, no contexto de Getúlio Vargas, consolidou-se a representação dos brasileiros como mais abertos, democráticos, felizes. Mas isso é uma representação, não uma realidade. É tão forte que até intelectuais que a criticaram acabaram ficando famosos pelo que não disseram: é o conhecido caso de Sérgio Buarque de Holanda, que deve ter falecido assombrado por causa da repercussão do capítulo da cordialidade no livro Raízes do Brasil. Isso era o pico do iceberg, não o iceberg todo. Mas ficou famoso o pico: o brasileiro é cordial. Mas nós sempre fomos autoritários, é o que argumento no livro.

Um país que teve a escravidão enraizada e naturalizada como nós tivemos é um país autoritário: durante séculos, tivemos uma separação rígida entre a estrutura de mando e a estrutura de obediência. Um país que foi colonizado como foi, com as capitanias hereditárias, é um país autoritário: os mandões concentravam poderes de lei, justiça, cultura. No livro, trato dessas heranças históricas do autoritarismo: escravidão, mandonismo, patrimonialismo, intolerância, violência, entre outros.

A novidade é que o que por muito tempo foi uma face “não legítima” da nossa nacionalidade se tornou uma “face autorizada”. Na minha opinião, esse processo tem data: dá-se a partir das jornadas de 2013 e do impeachment da presidente Dilma Rousseff de 2016. Esse processo liberou uma série de elementos que já existiam, mas estavam velados. No nosso Congresso, não faz muito tempo, ninguém se assumia de direita. Pegava mal dizer abertamente que era de direita. Essa tampa do caldeirão abriu, não só por conta das vicissitudes internas, mas internacionais, com o discurso da direita inscrito nos novos governos nos Estados Unidos, Hungria, Polônia, Israel, Filipinas e Venezuela. São governos autoritários e populistas, que se movem a partir de discursos de fórmulas fáceis e facilmente assimiláveis, isto é, saídas simplistas para demandas da população. Dizem o que a população quer ouvir. E se voltam contra a imprensa, as minorias, a universidade.

Nas suas iniciativas de discutir política na universidade e nas redes sociais, você se diria otimista? Não podemos homogeneizar o público que votou em Fernando Haddad e em Jair Bolsonaro. Quem acredita em “mito”, não vai ouvir nada. Mas há um público que votou e se arrependeu, como mostram recentes pesquisas sobre a avaliação do governo. Foco nesse público, que se considera órfão e tem dado demonstrações públicas de não concordar com o que está acontecendo no país. É um público jovem sedento de informações. Então, se a gente conseguir projetar para o futuro, se investirmos mais e melhor nessa geração, podemos ter uma sociedade menos intolerante e menos afeita a esse canto da sereia que é o populismo de matriz autoritária. De 2013 para cá, estamos andando para trás. Mas agora, 2019, precisamos olhar para frente. Este é o país em que vivemos. Diria que sou pessimista no tempo presente e otimista no futuro.

fechar