Nosso colunista lembra seus dias de operário-patrão na fábrica de seu primo, espécie de Scarface judaico-tupiniquim e dono de um vocabulário único
POR HENRIQUE GOLDMAN*
Era a segunda vez consecutiva que me reprovavam, e eu resolvi abandonar de vez aquela merda de colégio Mackenzie, cujo diretor era um coronel do exército mal-humorado e filho-da-puta que me obrigava a cortar o cabelo. Lá quase todos os alunos eram burgueses alienados que ouviam música disco e iam à boate Ta Matete. E então, aos 15 anos, eu passava os dias chapado de Mandrix, trancado no quarto com meus amigos ouvindo Led Zeppelin, mergulhado numa espessa nuvem de maconha. Seguindo a lógica de que o trabalho edifica o homem, meus pais me obrigaram a trabalhar na fábrica de atas e cadernos do Salomão, um primo mais velho, boçal e fascistóide que eu detestava mais do que o presidente Geisel.
O Salomão era uma espécie de Scarface judaico-tupiniquim. Nascido durante a Segunda Guerra Mundial no gueto de Varsóvia, ele sobreviveu ao Holocausto e veio – órfão de pai e mãe – para São Paulo, onde se deu bem dando vários golpes na praça. Ele vestia safári de tergal branco e guiava um Maverick envenenado com teto de curvim, roda de magnésio e banco Recaro. Era amigo do famigerado delegado-torturador Fleury e, além da fábrica de cadernos e atas, tinha vários outros empreendimentos: dois postos de gasolina, câmbio de dólar, a lanchonete Saladinha Record e até um puteirinho com motel e tudo na alameda Barão de Limeira, bem em frente à redação da Folha de S.Paulo.
No começo odiei o trabalho de auxiliar de encadernação, prensando enormes pilhas de atas o dia inteiro. Mas aos poucos comecei a gostar de acordar cedo e tomar o ônibus Penha–Lapa junto com o povão. Meu idealismo romântico de esquerda se revigorava ao bater ponto no relógio Dimep. Depois do serviço ia tomar uns rabos-de-galo com os operários no bar da esquina. Em minha cabeça perenemente entorpecida, fui estetizando a experiência. Me imaginava como uma espécie de Maiakóvski, poeta amigo do povo, herói do proletariado, aristocrata revolucionário que conhece o pulso dos becos e rejeita valores burgueses. Para me igualar às massas, aposentei o poncho que minha avó trouxe de Bariloche e comprei uma japona de helanca na rua José Paulino. Na hora do almoço, passei a sentir vergonha do estrogonofe de frango que trazia de casa e mandei a empregada preparar comida bem simples: arroz, feijão, carne ensopada e farinha, que levava na marmita.
Durante as pausas, tentava puxar aquele papo camarada e conscientizador com os colegas. Com os negros eu deixava claro, antes de mais nada, que não era racista e enveredava qualquer conversa para a escravidão e a discriminação racial. Às mulheres propunha temas de cunho feminista tipo “o mito do orgasmo vaginal” e o relatório Hite.
FILHINHO DE PAPAI
Um dia, logo no segundo mês de trabalho, descobri que, como auxiliar de encadernação, eu e mais três colegas tínhamos direito a ganhar muito mais do que o mísero salário mínimo que a fábrica pagava. Movido por aquele desejo adolescente de ver o circo pegar fogo, convenci meus colegas a nos rebelarmos. Fomos à gerência e fizemos nossas reivindicações. Até ameacei uma greve. Naquela mesma tarde fomos despedidos. Eu fui para casa revoltado com a arrogância do capitalismo. Mas ali eu era o único filhinho de papai. Quem ia pagar o aluguel e comprar a comida dos filhos dos meus colegas desempregados?
De noite o Salomão foi jantar lá em casa e me entregou para os meus pais. Disse assim: “Além de encher de merda a cabeça dos meus operários, este vagal vai trabalhar todo dia drogado e só faz cagadol”. Mandei o Salomão se foder. Meu pai me expulsou da mesa e me tranquei no quarto, com ódio, pensando: “Eu só faço cagadol? Que palavra é essa, ‘cagadol’?” Nunca, antes ou depois, ouvi alguém dizer essa palavra.
Poucos anos depois me mudei para os Estados Unidos. Fui sorveteiro em Nova York, empacotador de especiarias, lavador de pratos, mensageiro, garçom, tradutor, marceneiro, manobrista e motorista de trator numa fazenda de trigo no Estado de Montana. Imigrante ilegal e trabalhador braçal, meu sonho de simbiose com as massas exploradas se concretizou pra valer. Não era nem um pouco fácil ser de verdade o que Marx e Engels definiriam como “lumpen proletariat”, um homem abaixo de todas as classes.
Ao longo dos anos, perdoados os rancores da adolescência, passei até a gostar do Salomão, a ver charme e graça em sua picaretagem. Mas nunca cheguei a perguntar de onde ele tinha tirado aquela palavra, “cagadol”. Há alguns anos seu corpo crivado de balas foi encontrado no Paraná. A resposta foi enterrada com ele para sempre no Cemitério Israelita do Butantã.
*Henrique Goldman, 46, desistiu da vida de proletário paulistano, parou de fazer cagadol e agora vive no bem-bom como cineasta em Londres. Seu e-mail é: hgoldman@trip.com.br