Mítia: Um Brasil fundamentalista?

por Carlos Nader
Trip #94

No teatro do absurdo que assistimos pelas janelas da mídia, uma tragédia aniquila a outra

No teatro do absurdo que assistimos pelas janelas da mídia, uma tragédia aniquila a outra. Assim, em tempos recentes, o acidente de helicóptero do Pão de Açúcar foi afogado pelo duplo sequestro ocorrido na mansão do Silvio Santos. E o duplo sequestro foi logo soterrado pelo desabamento das torres gêmeas.

O bombardeio de hiper-realidade virtual a que somos submetidos é ininterrupto e, até o fechamento desta edição, a espiral de insanidade tinha parado por aí. No caso do World Trade Center, minha participação foi virtual, passiva e estarrecida. No caso dos Abravanel, o contato acabou sendo imediato.

Foi no caminho de uma visita à casa de uns parentes que acabei preso num congestionamento de equipes de reportagem, bem em frente à mansão do rei dos apresentadores. E justo no instante em que Patrícia Abravanel apareceu no terraço para dar aquela entrevista histórica pós-cativeiro.

É sério, eu estava lá. Preso no limbo que se abriu entre o mundo da rua e o mundo da mídia. Meu cérebro, que como o de quase todo mundo é cercado por dois ouvidos, ficou confuso. Um ouvido, o esquerdo, escutava pela janela o sermão de Patrícia direto da sacada. O outro, o direito, escutava a mesma voz pelo rádio do carro. Perdido entre dois mundos, tomado por este efeito lisérgico da divisão do real em dois canais simultâneos, eu me senti tão alterado quanto a própria Patrícia.

A imagem da menina repetindo vidrada o nome de Deus exatas 69 vezes ganhou cores proféticas. Uma cena bíblica. Para mim, aquilo não era uma entrevista. Era um sermão. O Sermão da Sacada. sermão da sacada Patrícia falava como evangelista.

O significado grego da expressão 'evangelho', aliás, é 'boa notícia'. A palavra de Deus sempre caiu bem nos canais da mídia. Mesmo advindo de um profetismo mundano, o Sermão da Sacada não deixou de ser fotogênico, telegênico, midiogênico. Caiu bem em câmeras e microfones. Tão bem quanto o primeiro conteúdo de comunicação de massas, a Bíblia, caiu no primeiro veículo tecnológico moderno de comunicação de massas, a imprensa de Gutemberg.

Quem quer paz?

Mídia e religião se dão desde sempre. São cônjuges. E o que se chama de igreja evangélica hoje é, na essência, uma versão renovada desse eterno casamento. Quem já foi a um templo sabe que a cerimônia desses cristãos novos é um espetáculo popular que mistura histórias de mensagem moral, canções fáceis, performances de palco, transe e culto à personalidade. Exatamente como um programa de auditório.

Entre o pastor e suas ovelhas se estabelece uma relação parecida com a que existe entre Silvio e suas macacas de auditório. Em muitas dessas igrejas, o 'Quem quer dinheiro?' se transforma num 'Quem quer paz?', 'Quem quer sucesso?' ou 'Quem quer dinheiro?' mesmo. No ritmo, na forma, a diferença é pouca. E o pastor termina cada frase com o bordão 'amém, pessoal?'. Digo isso tudo com alguma ironia, é claro, mas também com o profundo respeito às pessoas que têm fé tanto nas histórias monoteístas de qualquer igreja quanto nos mitos politeístas da mídia.

Afinal, sou essencialmente ligado a Jesus Cristo tanto por herança familiar quanto por afinidade filosófica. E também sou devoto das coisas trazidas pela mídia. Além disso, não estou dizendo que palco e púlpito sejam a mesma coisa. Há diferenças na essência, claro. Entre elas, a igreja profética fala em Deus. A mídia fala em deuses. E também na forma. Ninguém até hoje viu uma loura oxigenada dançando de biquíni num altar. Nesse sentido, apesar de ter entrado atrasada na corrida midiática, a igreja católica também é criativa. O que pode ser mais criativo que um padre aeróbico?

Corrosão à Brasileira

Voltando à sacada, a declaração mais marcante de Patrícia Abravanel foi 'eu não culpo os seqüestradores, culpo o sistema de corrupção do país'. É, com certeza, uma expressão que ela ouviu na igreja. Algo que resume com precisão uma das principais características nacionais: nossa profunda tendência à corrosão de valores - fonte essencial de muitos de nossos defeitos e qualidades.

Para o bem ou para o mal, ela intermedeia a maioria das relações entre os brasileiros. Quando digo 'para o bem', me refiro ao efeito positivo que certa corrosão de crenças e valores tem no campo da convivência étnica, religiosa e cultural. Ao diluir a importância que cada indivíduo ou grupo dá aos próprios valores, essa 'corrupção benigna' viabiliza a miscigenação e integração das mais diferentes heranças culturais.

É um tesouro que o Brasil tem para exportar a um mundo infantilmente dilacerado pelo ódio racial, pela intolerância religiosa e pela incompatibilidade cultural. Quando digo 'para o mal', me refiro a defeitos nacionais como a corrupção, a impunidade, a injustiça social e a hipocrisia do falso consenso. O fundamentalismo religioso sempre declarou a corrupção seu inimigo número um. Sempre foi assim, de Abraão ao Bispo Macedo, dos Mórmons ao Taleban.

A corrupção é vista como algo que vem do demônio para desvirtuar os homens e deve ser combatida com todas as armas. Em quase todas as versões dessa guerra santa, o fundamentalismo monoteísta sempre acabou absorvendo características do inimigo pagão e politeísta. Não é muito diferente na relação de amor e ódio que a igreja evangélica tem com os valores e expoentes do establishment midiático atual. Ao mesmo tempo em que critica a cultura do sucesso, boa parte do movimento evangélico lança mão desses mesmos valores pagãos quando se trata de conquistar fiéis famosos, eleger políticos ou comprar veículos de comunicação de massa.

Futuro do pretérito

Numa definição isenta, ser fundamentalista significa seguir à risca os fundamentos da religião. Falar e viver 'em nome de Deus'. Tenha Ele o nome que tiver. No Brasil, por meio de um diagnóstico preciso das aflições nacionais, de uma estratégia disciplinada de infiltração na sociedade e do irresistível apelo do 'porto seguro' da fé nestes tempos de confusa aceleração, não é de estranhar que nosso embrionário fundamentalismo esteja crescendo tanto.

Onde vai parar esse fenômeno? A onda evangelista vai continuar a varrer o país até configurar-se numa revolução religiosa? A visão futura de um Brasil majoritariamente fundamentalista cristão ainda parece uma miragem delirante. Para mim, também. Mas, há vinte anos, quem imaginaria que a filha de um magnata da mídia judeu iria ficar gritando na sacada de casa que Jesus é tudo?

Vale lembrar que o fundamentalismo muçulmano atual não é uma tradição secular, mas um movimento fulminante que em menos de cinqüenta anos transformou sociedades relativamente laicas em teocracias absolutas. É este um destino possível para o País do Futuro? Não quero crer. Claro que dá para argumentar que nós temos gingado e que o fundamentalismo à brasileira é fragmentado em dezenas de igrejas. Por outro lado, é fragmentado até aparecer alguém que as una. O Deus evangélico não é um só? E, gingado por gingado, se temos bunda, os muçulmanos tinham ventre. E ele foi coberto. A verdade é que a própria mídia internacional, em seu reducionismo, contribui na transformação de uma civilização pluralista numa sociedade monopensante. O fato de os muçulmanos se verem retratados na imprensa como malucos de Deus só fez acelerar a sua espiral fundamentalista.

Antenas e cruzes de TV

No Brasil, os dois poderes institucionais que mais cresceram foram a mídia e o movimento evangélico. Em trinta anos, as duas instituições arrebataram milhões de fiéis e se estabeleceram como forças dominantes. Eu já disse aqui uma vez que durante séculos a cruz da torre da igreja foi o ponto mais alto da cidade ocidental.

E que, por um período breve da história, ela foi ultrapassada pelas chaminés da revolução industrial, seguidas pelos grandes arranha-céus corporativos. Hoje, a estrutura mais alta das cidades é a torre das antenas de TV. Numa semiologia instantânea e meio barata, isso dá uma idéia boa de onde está o poder. Mais alta que o World Trade Center era a antena que havia em cima. Os terroristas derrubaram os dois.

Mas o que acontece quando em cima das antenas colocam uma cruz? Ou uma lua crescente? O que acontece quando a mídia eletrônica e a religião profética se unem? Que ciclo se fecha? Que poder se estabelece? Acho que tenho que deixar bem claro que, apesar de ter tido calafrios quando vi na Rede Record um pastor rezando ao vivo para que o seqüestrador liberasse o Silvio Santos, não considero a idéia de um Brasil mídio-fundamentalista um pesadelo inevitável. Longe disso.

O movimento evangélico conta com pessoas seríssimas e milhões de fiéis cheios de amor no coração. São inúmeras as suas qualidades, inclusive a de ter, a seu modo, um inegável caráter civilizatório. Igreja evangélica e mídia são, por exemplo, os dois únicos poderes oficiais presentes em quase toda favela brasileira, fora a polícia. Como no Oriente Médio, onde Hezbollahs e quetais tomam o partido de refugiados e vítimas da guerra, o fundamentalismo brasileiro faz uma opção radical pelos pobres.

Há muitas diferenças entre o fundamentalismo brasileiro e o muçulmano. No nosso, muito menos radical, não há espaço para Bin Ladens. E, se no islã profundo há uma rejeição pura dos valores da mídia por meio da censura, no Brasil há uma aliança entre mídia e religião - bem de acordo com nossa tradição canibal em que o guerreiro devora e incorpora os poderes do inimigo. Assim, pela primeira vez na história, o país tem um candidato oficialmente evangélico, Anthony Garotinho. Evangélico e radialista, homem de mídia e de religião.

Claro que é cedo para ficar especulando, mas não acho que a visão de um fundamentalismo midiático brasileiro muito poderoso seja um delírio tão impossível. O que é impossível? Na História, tudo tem sua primeira vez. Então, já que estamos falando de mídia, só é bom ficar ligado. Amém, pessoal?

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