No rap desde 1988, quando ouviu pela primeira vez, Gilberto Yoshinaga fez da arte de contar histórias o seu próprio elemento no hip hop
Gilberto Yoshinaga está escrevendo as últimas linhas de seu terceiro livro. Nelas, os fãs do hip hop nacional, que nunca souberam direito porque a dupla Thaíde e DJ Hum terminou, terão agora uma versão dessa história, a de Thaíde: a biografia do primeiro MC a marcar época no rap brasileiro sai no final do ano, provavelmente em novembro, quando ele completa 50 anos. "Estou fazendo a última revisão, para tentar sair em novembro", adianta sobre o lançamento de Thaíde: Sr. Tempo Bom.
Antes deste, porém, Yoshinaga foi organizador e colocou nas ruas uma outra perspectiva da história de Thaíde, contada a partir de 30 de suas letras. De cada uma delas, o rapper explica as histórias que envolvem o que ele conta na música e o contexto de sua época. Participar dessa seleção e descobrir de onde elas vieram foi uma situação interessantíssima para o autor, que redescobriu novos caminhos para ouvir algumas músicas que ele já ouvia há tempos. "Tem música ali que eu conheço há mais de 20 anos, sabendo as histórias por trás, eu passo a ouvir de outra maneira", conta o autor.
A relação de Yoshinaga com o rap é antiga. "Eu sou de Mogi, nasci lá em 1979. Quando eu tinha uns 9 anos meu irmão tinha um grupo de DJs, que na época tocava house, não falava nem dance music ainda. Aí caíam uns vinis nas mãos deles que eles não gostavam e deixavam em casa. Eu fui ouvir um dia, era um vinil do Kool Moe Dee e uma coletânea da Def Jam, que tinha Run DMC, Public Enemy, Beastie Boys, LL Cool J. Aí eu já pirei", conta o autor.
Esse gosto adquirido na infância norteou completamente as escolhas que fez na vida e, consequentemente, seus caminhos profissionais. Assim, em 1997, foi estudar jornalismo na Unesp, em Bauru. Depois de tentar rimar, o que faz até hoje só por diversão, sem pretensões, e de entender que não sabia dançar, que não era DJ e desenhava mal, Yoshinaga não encontrou em nenhum dos quatro elementos do hip hop um espaço pronto para ele próprio. Aí veio uma percepção sobre o que é ser parte disso. "Eu posso ser um advogado do hip hop, um médico do hip hop, um jornalista do hip hop...", reflete sobre como é possível fazer algo pelo movimento de diversas maneiras.
Ele ficou com a última opção e fez dela o seu elemento. Antes dos livros, ainda na faculdade já começou a levar sua cobertura para o rap brasileiro — e, de quebra, conheceu dois personagens que se tornariam fundamentais em sua vida. "Foi lá em Bauru que eu conheci o Nelsão [Nelson Triunfo], numa ocasião em que ele e o Thaíde foram fazer oficinas culturais. Eu fiz a mediação do debate dos dois porque na época eu tinha um programa de rap chamado Som das Ruas — foi a primeira vez que tocou rap na rádio Unesp. Eu ganhei três horas como experiência e aí o diretor me deixou ficar 100 semanas, dois anos de programa", lembra.
"Olha a coincidência", brinca Gilberto, que muitos anos depois escreveria livros sobre cada um deles — o primeiro, Nelson Triunfo, do sertão ao hip hop, foi lançado em 2014, o segundo, Thaíde, 30 anos mandando a letra, saiu em 2016, e o terceiro, Thaíde: Sr. Tempo Bom, sai no fim de 2017.
LEIA TAMBÉM: Lei Di Dai usa o dancehall para levar entretenimento, autoestima e fazer circular renda nas periferias de São Paulo
Assim, quase sem querer, ele começou a escrever de maneira cronológica a história do rap brasileiro, começando por dois personagens que se misturavam enquanto o hip hop nacional nascia, como evidencia uma das faixas explicadas na primeira parte da biografia de Thaíde — "Soul do hip hop", do álbum Brava gente, de 1994: "A primeira gangue que eu vi na minha vida / Foi no centro da cidade, Nelsão e Funk Cia / Ignorâncias e brigas tiveram o seu fim / Quando surgiram Street Warriors e Back Spin / Nação Zulu e Crazy Crew também apareceram / Com mais vontade que as gangues que desapareceram".
A história do rap nacional
A primeira obra literária de Yoshinaga, sobre o Nelson Triunfo, nasceu de um sonho. Não o de escrever e trabalhar com o rap. Esse já era realidade. Foi um sonho real mesmo. "Em 2009, eu estava dormindo e sonhei que tinha escrito a biografia do Nelsão. Na época, eu já conhecia ele. Aí liguei no dia seguinte e contei. Outros dois jornalistas já tinham procurado o Nelson, mas aí ele quis fazer comigo", conta o jornalista.
A partir daí começa o projeto que só seria concluído cinco anos depois, de maneira totalmente independente, pela editora Shuriken, do próprio Yoshinaga. Para viabilizar as cinco mil cópias, das quais três mil já foram vendidas, o autor pegou um empréstimo de 30 mil reais com um banco. O dinheiro serviu para, entre outras coisas, que ele pudesse viajar aos diversos lugares que fizeram parte da vida de Nelsão, tirando Berlim. "Aí eu visitei tudo pelo Google Street View", conta o autor.
Gilberto sempre teve vontade de contar a história do rap brasileiro e ajudar a criar uma literatura sobre o hip hop nacional — ainda praticamente inexistente, mas resistente em figuras como ele, que destaca ainda várias outras pessoas que, também de forma independente, documentam o movimento, com destaque para Toni C., que assina uma biografia sobre o Sabotage.
A ideia, porém, de uma publicação com pegada de livro de história, que passe por todos os personagens do movimento, em uma enciclopédia ou almanaque sobre o gênero, não o agrada. Ainda que seu trabalho de conclusão de curso na Unesp tenha sido exatamente um livro-reportagem com esse tema, hoje ele enxerga que fazer isso do ponto de vista dos personagens, colocando a história como contexto, é mais interessante.
Dessa forma, o primeiro livro, independente, e o segundo e terceiro, pela editora Novo Século, devem ter em breve a companhia de outro, fechando uma primeira trilogia de personagens desse seu iniciado documentário literário. A ideia é que seja um outro personagem que traga consigo uma parte importante da história —Gilberto está pensando muito entre dois nomes, ainda distantes de serem um projeto, mas bem maduros quanto ideia: KL Jay ou Mano Brown?