A história viva do soul brasileiro

por Peu Araújo

Hyldon, Carlos Dafé e Gerson King Combo formam uma trindade de imortais da black music brasileira e dispostos a novas experiências

Certa feita, num programa de televisão, e dizem que, em outras ocasiões também, Nelson Rodrigues deu um recado aos jovens. Ele pediu encarecidamente para que eles envelhecessem. E pediu para que fosse depressa. O tempo tem seus protocolos a cumprir e os jovens acabarão, como deseja o polêmico escritor, envelhecendo.

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Mas existe um lugar em que nem o tempo, nem Nelson Rodrigues e nem a lógica dão conta de explicar: o palco. É nele que um senhor de 75 anos, que se locomove com uma bengala, dança como o menino de 20 e poucos. O palco, subversivo, permite isso. E nos dias 2 e 3 de fevereiro, a Black Mantra — banda de funk/soul instrumental de São Paulo — se permitiu dar um passo gigantesco em seu compromisso de abrasileirar suas apresentações. Eles convidaram para dois espetáculos no Sesc Vila Mariana uma trinca do mais alto gabarito no chamado “brazilian groove” e, de uma vez só, a plateia cantou, dançou e se emocionou, não exatamente nesta ordem, com Hyldon, Carlos Dafé e Gerson King Combo.

A Trip foi conferir como foi o primeiro encontro dessa nada santíssima trindade do soul brasileiro nos palcos — e nas horas que antecederam a apresentação.

Desjejum

Por volta das 11 horas de um domingo que prometeu mentirosamente ser nublado, Gerson King Combo, 75, Carlos Dafé, 71, e  Hyldon, 67, e um senhor grisalho, com a camisa preta de estreitas listras brancas do Corinthians batem a maior resenha em meio aos copos já derrotados no salão de um hotel na zona oeste de São Paulo. Os três homens da black music apresentam o senhor de pele muito clara como um compositor importante e o chamam de Grego, talvez pela dificuldade de dizer Janos Tsukalas. O corintiano se apresenta, informa que mora ali mesmo no Transamérica Perdizes e já fala de sua composição mais emblemática, o imortal samba-enredo dos Gaviões da Fiel que quase todo mundo conseguiria acompanhar. “Me dê a mão, me abraça. Viaja comigo pro céu….”.

Agora com um samba-enredo na cabeça, podemos continuar.

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E o time aumenta quando o ótimo ator Fábio Lago (reconhecido por ter vivido Baiano em Tropa de Elite), que fazia selfies por ali com os funcionários, emendou: “Ô, Seu Hyldon. Eu quero fazer uma foto com o senhor”. Eles trocaram telefones, falaram sobre a Bahia, terra natal de ambos, e fizeram uma breve ode à Jorge Amado.

Depois, Hyldon, assim como Dafé e King Combo, se recolheu para o show que começaria em algumas horas.

Anfitriões

Duas horas antes do show, que estava marcado para às 18 horas, os 10 músicos já passam exaustivamente o som, aquela última ajeitada. O clima era menos tenso do que a estreia no sábado, mas ainda assim de apreensão. “Vamos passar as do Hyldon”, anuncia Caio Leite, 29, baixista e espécie de fio condutor de tudo o que se passa nos quase seis meses de produção que levam até aquele momento.

A impressão que se tem na coxia, no palco e nos bastidores é que a casa precisa estar arrumada para a chegada dos convidados. “Esses três caras fizeram e fazem o que é a soul music e o funk brasileiro, com Tim Maia, com Cassiano, com Tony Bizarro, com Tony Tornado, com a Black Rio, com Os Diagonais”, diz o baixista.

Bem antes da cortina abrir

Entre as dificuldades narradas pela Black Mantra, além de todo o corre de produção, viagem, hospedagem, traslado e todos os detalhes para que você assista confortavelmente a um show, estavam as músicas que iriam apresentar. Pedrinho Almeida, 29, saxofonista, flautista e arranjador do grupo foi o cara que passou noites em claro (fazendo e reescrevendo arranjos) para que a coisa chegasse azeitada no dia. Ele conta, não como uma derrota ou um job penoso, mas sim como um aprendizado. “Passei umas três semanas virando madrugada e refazendo. A gente toca, volta pra casa, ajusta.”

King Combo comenta o sentimento de dever cumprido depois da primeira noite de espetáculo. “Nós ficamos congratulando até às 2 horas da manhã e faz uma comparação entre o músico da antiga e da nova geração. “O músico antigo era com a pauta da música, hoje a garotada não tem muito compromisso com a pauta, mas os ouvidos são mais apurados. O cara antes não criava uma vírgula, agora ela solta a mão, cria harmonia. Já bota uma semicolcheia, já mexe no arranjo”. E ele conclui, sem juízo de valor e com certa predileção aos mais jovens. “Eu procuro me adequar aos músicos.”

O baterista Leonardo Marques, de 30 anos, fala de como foi esse ensaio. “Em dois, três dias com eles, a nossa evolução e o presente que eles deram pra gente de experiência, de mostrar o poder de uma canção, mostrar o que eles conseguem fazer com a palavra foi muito legal.”

Ele ainda faz um elogio a Carlos Dafé. “Eu te digo que o Carlos Dafé me ensinou o que é dinâmica na bateria. Ele coloca a banda na mão, envolve a plateia.”

Encontro de gerações

Gerson, Hyldon e Dafé chegam logo depois da passagem de som, eles ocupam um pequeno camarim que fica bem perto do palco e se revezam em entrevistas para a TV do Sesc.

Ainda tímidos, os músicos da Black Mantra se aproximam, mas sem muito invasão. Há uma reverência e um cuidado. É visível.

Os ensaios, que aconteceram um dia antes da primeira apresentação, foram exaustivos. Cinco horas para fechar o repertório, entender a cabeça dos convidados, os processos com cada uma das músicas, como cada um reproduz aquele som. Tudo isso varia muito.

O baixista Caio Leite comenta um pouco desta troca de informações. “Essa comunicação foi muito doida porque você tem que desatualizar o software. Com eles é outra parada, até o jeito de explicar é diferente” E depois da passagem de som do segundo dia de espetáculo, crava. “Foi o show mais trabalhoso que a gente fez.”
E o baterista Leonardo arremata em tom humorado. “De seis meses pra cá nós fizemos shows com várias participações e acabou sendo uma grande escola para chegarmos a esse momento. E quando chegou neste momento com os três a gente percebeu que não sabia de nada.”

Aquele autógrafo aqui no compacto

Dafé, com seu tradicional chapéu panamá é abordado por Laylah Arruda, backing vocal naquela ocasião  —  mas também cantora, DJ e presença importante no reggae de São Paulo. Ela, que levou o pai, a mãe, a tia e outros familiares para o espetáculo, chega nele tímida, com uma pequena pilha de compactos simples e duplos. “O nome dele é Janão. A palavra Já e a palavrão não juntas”, ela explica para Dafé o nome do felizardo que terá seus disquinhos autografados.

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O cantor, calmamente assina, faz uma dedicatória e conta a história de uma mulher que o abordava nos anos 1970 com uma pilha de papéis para ele autografar. “Eu perguntava. ‘Em nome de quem?’ E ela. ‘Não, só assina’. Aí um dia me disseram que ela vendia. Eu falei. ‘Ah, deixa a bichinha ganhar o dinheirinho dela’.”

Passeio geracional

Hyldon, Dafé e King Combo têm posturas distintas nos bastidores, no palco e, claro, em relação aos músicos que o acompanham.

King Combo, que já havia tocado com os meninos em outras duas ocasiões, está jogando solto, já tem algum entrosamento e sabe que sua música será bem reproduzida. Ele define o encontro da seguinte forma. “É rejuvenescimento”. E ainda afirma. ‘Eles são atentos, criam muita coisa. Eu boto fé nesses meninos”. O rei do soul ainda faz uma ressalva de que sua música é mais simples e tem “menos notas” que a dos companheiros.

Dafé, que já tocou em shows com o BiD, com o Instituto e com outras bandas de gerações mais novas, apesar de estar um pouco mais preocupado com a parceria inédita, passa a calma e tranquilidade de sempre. Ele comenta. “Eu fui sutil, eu entendi. Tá na hora de eu tocar pra uma molecada nova”, mas fez uma ressalva ao primeiro dia de espetáculo (questão que foi resolvida na segunda apresentação). “Nós não nos apresentamos, porque não tava nada combinado. Acho que eles esqueceram, são novos, mas nós já fomos novos também.”

Dos três, quem parecia menos confortável era o Hyldon. Em algumas ocasiões ele deixou nítido que não gostou da ordem do show, que ele começa, seguido por Dafé e com King Combo fechando. Ele, que se autointitulou coelho de corrida naquela noite, reclamou também das músicas escolhidas. Mas ao fim e ao cabo, quando as luzes se apagaram, estava com um sorriso no rosto falando para a mãe do baixista Caio Leite. “Ele é muito teimoso” e, ao descobrir que ambos são arianos, ficou com a explicação que precisava.

Espetáculo

As luzes se acenderam com Hyldon cantando “Na Sombra de uma Árvore”, “Estão Dizendo Por Aí” e “As Dores do Mundo”. Ele fechou sua parte com o clássico “Na Rua, Na Chuva, Na Fazenda” ovacionado pela plateia, que neste momento ergue os braços sincronizadamente para a direita e para a esquerda.

Dafé entrou contando uma história sobre pintar o cabelo de preto a pedido do Tim Maia e segurou a plateia com seu teclado Roland e seu carisma tocando quatro músicas do álbum Pra Que Vou Recordar, de 1977. “De Alegria Raiou o Dia”, “A Cruz”, “O Metrô” e “Pra Que Vou Recordar do que Chorei”.

Gerson King Combo entrou no palco com uma belíssima capa prateada no pique James Brown (ele havia esquecido a indumentária um dia antes), sobretudo, terno, suspensório, camisa, calça, meia e sapatos vermelhos, além de um belo chapéu ornamentado caindo para o vinho. Com sua bengala, foi vagarosamente ao centro do palco, pediu por um banquinho, apoiou seu apoio, virou de costas e entregou a capa ao roadie e chamou o público para dançar. Algumas pessoas subiram ao palco, inclusive o Rappin Hood, e, ao lado do rei do soul, fizeram um lindo baile black ao som de “Deixa Sair o Suor”, “Funk Brother Soul”, “Mandamentos Black” e “Good Bye”.

Há de se fazer um adendo breve: Gerson King Combo dança feito um garoto. O palco, aquele que nem Nelson Rodrigues, nem o tempo e nem a lógica conseguem domar, o transformou em um menino que largou a bengala e caiu no soul.

Deu bom

Ao fim do espetáculo, parte da plateia se plantou no saguão do teatro do Sesc Vila Mariana a espera dos músicos. Hyldon, King Combo e Dafé se posicionaram em frente a um mural e receberam todos os fãs que por ali se aventuravam. Bateram papo, tiraram fotos, assinaram muitos discos de vinil . Os três se misturam aos fãs, aos músicos que os acompanharam e ao espaço.

A impressão que se tem, depois de ver que tudo deu certo nesta noite, é que Gerson tem razão quanto ao rejuvenescimento. O encontro de Hyldon, Dafé, King Combo e Black Mantra foi uma fenda no tempo-espaço. Ela trouxe a tona pedras filosofais da música negra brasileira dos anos 1970 com um pé no presente e de olho no futuro. Para os três músicos parece um elixir de juventude, para a banda uma casca de experiência e sabedoria. Dos encontros que fazem história e contam histórias.

Créditos

Imagem principal: Pedro Ladeira/divulgação

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