Escravidão enraizada

Caramuru: ”A mentalidade que criou a escravidão deve estar em nossa alma mais do que gostaríamos”

A mentalidade que criou a escravidão provavelmente está mais inserida em nossa alma do que gostaríamos de crer. Seguimos vorazes em busca de poder e dinheiro e tratamos a natureza e os animais com a mesma sem-cerimônia de antes

Hum... o trabalho no século 21! A beleza do escritório virtual, os horários flexíveis, a revolução da internet, os benefícios trazidos por smartphones e tablets, as empresas incentivando seus funcionários a desenvolver a criatividade e a inteligência. Puxa, quanta coisa empolgante! Quero muito falar sobre tudo isso. Só preciso, antes, fazer uma introduçãozinha.

Todo mundo sabe que a escravidão é antiga, que era prática comum entre gregos e baianos, digo, troianos. São, porém, menos conhecidas a idade e a extensão da coisa. O antropólogo norte-americano Karl Jacoby afirma que a escravidão teria surgido logo após a domesticação de animais, como ovelhas e porcos, ainda no Neolítico. As mesmas técnicas criadas para domar os bichos teriam sido usadas em seres humanos capturados.

O historiador brasileiro Alberto da Costa e Silva acha a hipótese interessante, mas inverte a ordem. Na visão dele, a escravidão seria ainda anterior: as mesmas técnicas desenvolvidas para domar os humanos é que teriam sido utilizadas em cavalos e vacas. O que isso quer dizer? Que, por qualquer caminho que escolhermos, vamos concluir que a escravidão está nos alicerces da nossa civilização. Que, há cerca de 12 mil anos, quando inventamos as cidades, os reis e a religião, e plantamos trigo, arroz e milho, nós inventamos também o trabalho escravo. Não é à toa que, por mais que os sacerdotes de diversos credos procurem negar, a escravidão é claramente aceita como parte da ordem natural das coisas nos livros sagrados de cristãos, judeus e muçulmanos. O próprio Maomé era dono de escravos e nada via de errado nisso, apenas defendendo que fossem tratados sem crueldade.

Na Europa medieval, apesar do que você possa ter aprendido na escola, havia mais, nos feudos, do que nobres e servos: havia escravos também. No primeiro recenseamento realizado na Inglaterra, em 1086, apurou-se que 10% da população era composta de escravos. E, ainda no século 15, eram escravos não poucos gondoleiros em Veneza.

Os mercados, tanto na Europa quanto no mundo islâmico, vendiam cativos de origem, entre outras, grega, árabe, búlgara, russa, turca, armênia e também, mas não majoritariamente, africana. Esta acabaria sendo uma peculiaridade das Américas: a escravidão ganhou, aqui, exclusividade de origem e cor de pele. Nem tanto por racismo, pelo menos no início: é que a costa africana era perto e já tinha instalada havia muito tempo, naquele continente, uma verdadeira indústria de captura e venda de escravos, que sustentava quase todos os reinos (africanos, diga-se) lá existentes. O mercado, ao crescer (e a grande novidade americana foi o gigantismo da demanda), apenas mudou de direção: em vez de as caravanas levarem os escravos para o Mediterrâneo ou para a costa do mar Vermelho, onde estavam os antigos compradores, elas passaram a privilegiar os entrepostos comerciais no litoral do Atlântico.

Antiescravismo
O antiescravismo organizado é muito recente, surgiu no norte da Europa há apenas pouco mais de 200 anos (e no Brasil só teve efeito oficial há 114 anos). Além do mais, quando acabou, a escravidão foi substituída pelas não muito melhores condições de trabalho da Revolução Industrial.

O que eu queria dizer é que, se você acredita, como eu, na dificuldade de se romperem antigos hábitos em pouco tempo, então talvez concorde comigo que a mentalidade que criou a escravidão deve estar mais inserida em nossa alma do que gostaríamos de crer. Afinal, entre muitas outras permanências, seguimos vorazes em busca de poder e dinheiro, ao mesmo tempo em que veneramos alguns dos mesmos deuses e tratamos a natureza e os animais com a mesma sem-cerimônia de antes. Ah, era para eu ter escrito sobre um monte de coisas novas e bacanas que existem nas relações de trabalho de hoje. Pena que faltou espaço.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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