A curadora Elena Filipovic explica direitinho tudo o que você finge saber sobre o artista
Sabe aquela piadinha sobre o extintor na galeria de arte? Ela não existiria sem o trabalho de Marcel Duchamp. Ícone da arte contemporânea, o artista foi o escolhido para comemorar os 60 anos do MAM-SP. A exposição “Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra ‘de arte’” abriu ontem, dia 15 e fica no museu até 21 de setembro. A curadora Elena Filipovic, co-curadora da Bienal de Berlim e especializada na obra do artista explica direitinho tudo o que você precisa saber sobre o cara para arrasar na mesa do bar.
O que uma pessoa que não entende nada de arte deve saber sobre Duchamp?
Duchamp era muito enigmático, eu diria, então qualquer imagem que eu criar sobre ele seria contraditória e cheia de paradoxos. Por exemplo, ele criticou o fato de que pintores só estavam interessados no apelo visual e não mental, e depois passou anos construindo artifícios óticos, máquinas que manipulavam a visão. Ele respondia às pessoas que perguntassem o que ele estava fazendo, ou qual era sua ocupação na vida, que ele era apenas um "respirador". Ele era obcecado por xadrez, isso é fato. Passou a maior parte dos oito anos que morou em Buenos Aires jogando xadrez. Além disso ele era incrivelmente escrupuloso, mesmo se descrevendo como preguiçoso e desinteressado no trabalho e em fazer arte, mas a realidade é que ele estava, muito cuidadosamente, produzindo obras de arte e deliberadamente obscurescendo o limite entre o que é arte e o que não é. Acima de tudo, o que às vezes esquecemos por ele ser um gigante da arte moderna e contemporânea, ele era também muito engraçado.
Qual a importância do artista?
Marcel Duchamp é considerado o mais importante e influente artista dos séculos XX e XXI pelos mais respeitados escritores, críticos, artistas e pensadores de hoje. E ainda, capturando a idéia de como ele pode ter - 50 anos antes de todo mundo - delineado as idéias com que muitos artistas ainda estariam brincando não é muito fácil. A história do artista é contada em livros de história da arte e sua influência em tantos movimentos que vieram depois dele - desde a Arte Conceitual, Pop Art, Installation Art, até Crítica Institucional - são bem sabidas, mas vendo um panorama de alguns objetos que Duchamp fez, copiou ou autorizou é um ponto inical necessário para entender que apesar de ser um homem de idéias, Duchamp as expressou em detalhes, em notinhas rascunhadas, em - paradoxalmente - reproduções artesanais de seu próprio trabalho, na engraçada empreitada de dar bigode e barba à Mona Lisa, na estranheza de uma pintura em vidro de uma noiva, um monte de máquinas, e alguns outros, frustrados. A América Latina nunce teve uma exposição tão grande do trabalho artístico de Duchamp, e o fato de uma acontecer agora é um evento de proporções históricas - uma oportunidade que provavelmente não se repetirá por pelo menos algumas décadas.
Quais suas obras mais importantes? E quais delas estarão na exposição?
"Marcel Duchamp: A work that is not a work ‘of art’" mostrará mais de 120 obras, originais e réplicas que mostram diferentes lados de Duchamp, incluindo essa fascinação por exposições que ele tinha. Terá ready-mades, a réplica do Large Glass, seu Boîte-en-valise, artefatos óticos, e muitos outros exemplos de seu trabalho, em outras palavras, obras de arte que estão intimamente conectadas com seu modo de pensar sobre mostras, e visões sem parecer de fato exibições. Mas terá também muitos quartos pequenos em que o visitante poderá ver documentações do que algumas das exposições de Duchamp pareciam. Eram efêmeras, e sobrou muito pouco delas, então foi um desafio achar um modo de mostrá-las, mas junto com os arquitetos da exposição nós achamos algumas soluções criativas para que os visitantes do MAM sejam capazes de ver o quão importante essas exibições são para entender a importância de Marcel Duchamp.
Duchamp discute os limites do que é e o que não é uma obra de arte. Ele chegou a uma resposta? A exposição responde a essa pergunta?
Eu diria que ele passou a vida toda tentando dar respostas a essa questão, e a exposição procura mostrar isso.
Duchamp chegou a fazer reproduções das próprias obras. O preço de um original do artista eh o mesmo de suas reproduções?
A questão é complicada, pois a linha entre original e reprodução é muito indistinta quando se trata das obras de Duchamp. Por exemplo, os ready-mades originais não existem mais. Todos foram perdidos ou destruídos. Uma série de réplicas foram feitas em 1964 por Duchamp com Arturo Schwarz, um galerista de Milão. E fizeram apenas oito cópias de cada ready-made. Estes são agora muito valiosos e são, em um sentido, "originais", sendo que não há outro original desse trabalho que exista. Ele também fez cópias minúsculas de sua arte e colocou em uma caixa, chamando-a de seu "museu portátil". Ele fez 300 dessas caixas de cópias mas também fez 20 do que ele chama "edição de luxo" desses mini museus. Ambos são muito valiosos hoje em dia, mas a versão "de luxo" é ainda mais, pois são extremamente raras e estão recheadas de cópias, mas também cada uma contém uma obra "original". Então você vê, Duchamp estava constantemente brincando com a idéia de original e cópia, tentando confundir as claras distinções que o mercado artístico faz delas.
Qual a diferença entre essa exposição e a realizada na 19ª Bienal Internacional de São Paulo, de 1987?
A exposição era um tanto menor, em tamanho, do que esta. Tinha mais ou menos metade do número de obras, mas eu diria que esta não é a principal diferença entre eles. Aquela mostra tinha pinturas e desenhos bem interessantes do período inicial de Duchamp, e era tipo uma mini retrospectiva, mas essa, mesmo tendo mais obras, não tenta ser estritamente retrospectiva; ao invés disso oferece uma nova leitura de Duchamp. A exposição no MAM é, de fato, mais focada no fato de Duchamp questionar a idéia tradicional do que é uma obra de arte, o que explica suas primeiras obras não estarem à mostra. É aí que entra o título: "Marcel Duchamp: A work that is not a work 'of art'", que foi inspirado por uma pergunta que Duchamp se perguntou em 1913 sobre se um artista poderia ou não produzir "obras" que não são "de arte". Soa incrivelmente simples, mas talvez seja a mais profunda questão a encarar a arte do século XX e está relacionada a quase toda a experimentação em que Duchamp engajou-se naquele ano, 1913 - ano também em que declarou que havia abandonado a pintura. Isso o levou a todo tipo de atividade, muitas das que veremos nessa exposição: sua elevação de "objetos ordinários" a "obras de arte" com a invenção do que ele nomeou ready-made, seu uso de leis de sorte para tomar decisões artísticas, sua construção de obras enormes feitas de vidro, seus experimentos com ótica etc. Mas dentro das coisas que virão desse período está também o interesse de Duchamp em pensar em como a apresentação e disposição das obras determina como são entendidas, aceitas (ou não aceitas, como foi o caso com os primeiros ready-mades que mostrou publicamente) e como eventualmente entraram pra história. A exposição no MAM usa 1913 como seu ponto inicial e eu acho que faz o argumento sobre a reinvenção radical de Duchamp do século XX ficar mais clara. Além disso, os empréstimos para a exibição vêm do mundo todo, e abarcam vários tipos diferentes de material "Duchampiano", então ajudam a construir uma nova imagem do artista, enfatizando partes menos conhecidas de seu trabalho, incluindo Duchamp, O Curador, que usou displays de exposição e instalações espaciais complexas do melhor modo a levar à questão do que uma obra de arte realmente é e quem decide.
É verdade que ele tinha um atelier secreto? Pra quê?
É verdade que por 20 anos ele alugou um estúdio secreto para construir sua gigante instalação Etant donnés... Ele não queria que ninguém soubesse dela até sua morte, e funcionou. Quase ninguém, a não ser sua mulher e um ou dois amigos próximos, sabia. E até alguns amigos mais próximos ficaram surpresos quando souberam que ele havia trabalhado todo aquele tempo. Ele disse a cada um deles que havia desistido de fazer arte e estava apenas jogando xadrez. Era parte de seu humor mas também parte de seu enigma que o levou a fazer isso. Ele queria que Etant donnés... existisse e só fosse vista em um museu, o que era uma parte muito importante do modo como as obras de arte funcionam. É uma obra voyeurística em que o visitante que a contempla quase se sente envergonhado de fazê-lo. Então mantendo-a secreta, ele tinha certeza que só seria vista em um museu e após sua morte, e não antes disso.
Quais os brasileiros mais influenciados pelo artista?
Há muitos, muitos artistas que foram influenciados pelo trabalho de Duchamp, desde Helio Oticia e Lygia Clark a Cildo Meireles. E cada um deles olhou para algo diferente e foi inspirado por um aspecto diferente da obra de Duchamp. Mas eu diria que um dos melhores jeitos de medir o impacto da influência de Duchamp é pela lindíssima pequena exibição, "Duchamp-Me", de curadoria de Felipe Chaimovich, que coincidiu com a exposição de Duchamp no espaço maior do MAM. Lá você pode ver o trabalho de muitos artistas brasileiros que foram inspirados por, ou que reinterpretaram algumas das idéias de Duchamp.
É possível afirmar que Duchamp inaugura a arte contemporânea?
Sim, eu diria que, para mim, Duchamp é o primeiro verdadeiro artista contemporâneo e isso é talvez o motivo de ele ser tão importante para a arte, para a história e para artistas hoje. Sua influência tem sido enorme para artistas de muitas gerações e movimentos tão diversos como a Pop Art, a Arte Conceitual, a Crítica Institucional, etc. E cada um pega algo diferente como inspiração. Eu espero que a mostra ajude as pessoas a enxergarem isso.
Vai lá:
"Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra 'de arte'"
Onde: MAM -parque do Ibirapuera
Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, portão 3; tel.: 0/xx/11 5085-1300
Quando: 16 de julho a 21 de setembro de 2008.
Terça a domingo e feriados, das 10h às 18h.
Quanto: R$ 5,50. Sócios do MAM, crianças até 10 anos e adultos com mais de 65 anos não pagam entrada. Aos domingos, a entrada é franca para todo o público, durante todo o dia.