por Fernando Gueiros
Trip #250

Enquanto o Brazilian Storm toma o circuito mundial, uma molecada está sendo preparada para o próximo round. Descubra quem são os candidatos ao topo do ranking de surf profissional de 2020

"Quer comprar?”, perguntou o menino, erguendo e mostrando o barco de madeira. “Foi meu pai que fez, custa cinquenta reais.”

“Por que você está vendendo isso?”

“É pra pagar a inscrição do campeonato de surf em Maresias.”

“Faz o seguinte, pode levar o barco com você. A gente se vê na praia e eu pago a sua inscrição.”

Assim começou a amizade, em 2013, entre Charles Medina e Fernando Balbino, apelidado posteriormente de Fernando John John. Nascido em Paúba, litoral de São Paulo, John John hoje tem 14 anos. Mesmo com um problema congênito na mão esquerda, é um talento dos mais promissores. Morador de Boiçucanga, a 10 quilômetros de Maresias, o garoto perdeu a mãe cedo e aprendeu a surfar com o pai, que hoje abandonou a prática por causa de um tratamento de hemodiálise. Depois de bater à porta de Charles – que é o padrasto e treinador de Gabriel Medina – muita coisa mudou.

“Foi o Charles quem pagou minha primeira inscrição para o Sebastianense e depois me deu prancha, acessórios. Começamos a surfar juntos, ele viu meus defeitos e apontou o que podia melhorar. Fui corrigindo, treinando. Estou evoluindo”, diz.

Coach do primeiro campeão mundial brasileiro, Charles tornou-se referência de treinamento e criação de surfistas. “Um garoto em idade de crescimento tem que adquirir condicionamento, técnica e preparo”, diz. “O resto é consequência. Não pode querer ser herói, tem que saber as limitações. Nessas horas um treinador precisa ter feeling. Vi o melhor competidor da atualidade crescer. E eu nunca forcei ele. Pouco a pouco ele foi gostando daquilo, não se pode colocar a criança em risco.”

“Um garoto em idade de crescimento tem que adquirir condicionamento, técnica e preparo. O resto é consequência”
Charles Medina, incentivador de Fernando John John

Charles acredita em disciplina. Alimentar-se bem, saber que a noite é feita para dormir, ter uma vida regrada e abdicar de certas coisas que um adolescente comum vive. É preciso também ter equilíbrio nos treinamentos físicos para “não quebrar” e, claro, passar várias horas surfando.

 

A vida não é fácil no paraíso

“Mesmo se um atleta se destacar nos campeonatos sub-14 ou sub-16, não dá para saber se ele vai ser bem-sucedido no futuro”, analisa. “A geração do Gabriel Medina, Filipe Toledo e Miguel Pupo é de ouro. Eles vão ficar mais dez anos no circuito. A molecada que chegar lá vai surfar com eles. Pode ser que aconteça igual ao vôlei, em que depois da geração de ouro vieram outras, mas talvez não venha uma igual. Temos surfistas bons e o trabalho é parecido, mas não é sempre que aparece uma safra como a do Brazilian Storm.”

Surfistas na faixa dos 14 anos são conhecidos como grommets ou groms. A origem vem do português grumete, que significa aprendiz de marinheiro. E, assim como nas tradições da marinha, um aprendiz de surfista não tem moleza. São sempre eles que lavam a louça da casa nas surf trips, recebem cortes de cabelo amalucados, são zoados quando esquecem o Facebook aberto e aprendem rapidamente, na hierarquia fora dágua, que a vida não é fácil no paraíso – uma maneira natural de colocá-los com os pés no chão diante da trajetória que terão pela frente. Por outro lado, é aprendizado de sobra. No surf, ao contrário de outros esportes, “o campo de jogo” é democrático, o que permite dividir o outside com os melhores do mundo numa sessão de freesurf – seria como se, no futebol, um amador jogasse uma pelada com o Neymar. O catarinense Mateus Herdy, 14 anos, viveu algo parecido ao surfar pela primeira vez em Pipeline, no Havaí.

“É um fundo com cavernas de coral onde várias pessoas já morreram, dá uma tensão. Mas aí você olha para o lado e vê o Jamie O’Brien, o John John Florence, o Julian Wilson, vários prós dando risada e curtindo. Isso passa confiança. Tem que ter essa tranquilidade e não subestimar. Essa foi a lição que aprendi.”

Na calçada da rua Augusta, em São Paulo, Mateus e seu team manager, Daniel Cortez, esperam em frente a um food truck. Estão no lançamento de um filme de surf da Volcom, marca que assinou o patrocínio com o grommet no início do ano. “A escolha de um atleta para ser patrocinado exige muito critério”, diz Cortez. “Costumo observar vários fatores, como porte físico, habilidade, técnica, bagagem competitiva. Mas surfistas como o Mateus, mesmo com a pouca idade, são atletas de alto nível. Chegamos no Havaí e no primeiro dia deu 10 pés de onda em Pipeline. Ele entrou, ficou no canal, foi chegando com calma e no final da temporada já estava tirando de letra.”

O apoio de grandes marcas inclui preparo físico, acompanhamento psicológico e suporte nas viagens. Entre um gole e outro no milk-shake de chocolate, o garoto loiro, de moletom, boné, olhos apertados e sangue Herdy nas veias (seu pai e seu tio foram surfistas profissionais) fala sobre suas viagens – Mateus fez mais surftrips do que muito marmanjo por aí. “Fui para o Peru, Indonésia, Havaí e Califórnia”, contabiliza. Só para a Indonésia foram cinco vezes, a primeira quando tinha 9 anos. “Para o Havaí foram duas”, diz, “e agora estou indo de novo.”

“Porte físico, habilidade e bagagem competitiva são importantes. Surfistas como o Mateus, mesmo com a pouca idade, são atletas de alto nível”
Daniel Cortez, team manager de Mateus Herdy

Mateus é um dos mais bem-sucedidos no caminho rumo à elite mundial do esporte. Seus contratos com as marcas Volcom e Mormaii ultrapassam os R$ 5 mil mensais e ele ainda tem uma cota em dólares (de aproximadamente US$ 10 mil) para viagens internacionais. Nessa idade esses valores são de ponta. Podem ser o primeiro passo para cifras astronômicas como as de Gabriel Medina, por exemplo, que tem um acordo com a Rip Curl estimado em US$ 5 milhões por ano (fora todos os outros patrocínios, como AmBev, Coppertone, Mitsubishi, Oi etc). Atletas amadores no Brasil, na idade de Mateus ou mais jovens, costumam ter salários mensais de no máximo R$ 1 mil somados a roupas e acessórios. A premiação para amadores, por exemplo, sequer envolve dinheiro. Geralmente é roupa, prancha, bloco, parafina, bicicleta... Apesar do precoce sucesso, Mateus ainda não se sente pressionado. “Meu pai sempre me orientou a fazer as coisas bem feitas e me emancipar. Sempre me cobro antes de campeonatos, mas só no ano que vem devo ter uma cobrança maior vinda de terceiros, isso por que vou correr o QS, que tem várias etapas internacionais.”

Tatiana e Richard Saldanha, pais de Rodrigo, 11 anos, que conta com o apoio da marca Hurley e dá seus primeiros passos rumo ao surf profissional, acreditam que esse início no ambiente da alta performance deve ser natural, com tranquilidade.

“Costumo dizer que na escola ele tem 100% de chances de se dar bem”, diz a mãe. “Já no surf, é uma chance em cem.” O pai, engenheiro civil apaixonado por surf, já viajou com o pequeno para Havaí, Indonésia, Austrália, El Salvador, Califórnia, entre outros locais. Rodrigo já dividiu o outside com Joel Parkinson e ficou amigo do filho de Mark Occhiluppo. “Ele compete se quiser, se não quiser eu não pressiono”, diz Richard. “Como moramos em São Paulo, longe do mar, é difícil eu estar 100% acompanhando, mas sempre tento estar próximo dele, levá-lo sempre que possível para pegar onda.”

 

Seja herói

Para a família de Tainá Hinckel, talento feminino de 11 anos, o surf também sempre esteve presente. “Minha primeira lembrança em cima da prancha é de quando meu pai me empurrou em uma espuminha, em cima de um longboard”, diz a menina, que, assim como Rodrigo, tem considerável experiência em surftrips. “Minha família vive basicamente de surf e desde que nasci eles me mostram tudo sobre o esporte. Com as viagens, já tive a oportunidade de surfar ao lado de quase todos os meus ídolos.”

O pai de Tainá, o surfista Carlos Kxot, conta que a rotina da filha na Guarda do Embaú, em Santa Catarina, onde vivem, é quase igual à de uma criança normal. “Ela estuda, brinca, faz de tudo, só que a maior diversão dela é surfar. Depois de cumprir com as obrigações, ela surfa praticamente o dia todo. Eu e a mãe dela então fazemos filmagens e analisamos as manobras. Agora estamos com uma meta que é ajudá-la a dominar a parte de aéreos”, diz. “Acho muito importante o lado criança seguir junto com o preparo, mas também acho que a pessoa vem com alguma coisa meio pre-destinada para aquilo.”

“Minha família vive basicamente de surf. Com as viagens já tive a oportunidade de surfar ao lado de quase todos os meus ídolos”
Tainá Hinckel, 11 anos

Rodrigo e Tainá se encontram eventualmente em campeonatos de grom search. E a presença das famílias na areia é algo cada vez mais normal. “Quando o Charles treinava o Gabriel, por exemplo, ninguém acreditava que pai e filho chegariam onde estão”, analisa o pai de Rodrigo. “Agora dá para ver que as pessoas acreditam. Existe um ambiente familiar nas competições e a iniciativa vem muito da molecada. Eles pedem para fazer personal, querem melhorar o desempenho. Eles mesmos estão conscientes da coisa. Imagina se isso aconteceria no passado? Na minha época meu pai não tinha ideia do que era surfar. Para a minha mãe, quando eu ia pro mar, era como se eu sumisse.”

Nos dias de hoje esse sumiço pode significar um caminho de glórias e um futuro promissor. Para essa geração, surfista não é mais marginal. É herói.

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