Meu tempo é hoje

por Douglas Vieira

Há três anos, Coruja chegava em São Paulo para vender discos de mão em mão e agora desponta como um dos nomes de destaque da nova geração

“A gente raramente está no agora”, diz Coruja BC1, lembrando uma conversa que teve sobre a importância de prestar atenção no momento, e não estar sempre com a cabeça no passado ou no futuro. A importância de cuidar do agora. Ele diz, mas não é algo que para ele parece ser tão fácil diante do seu fluxo criativo. “Eu escrevo o tempo inteiro..” Mas, hoje, ele está focado na divulgação do disco e na divulgação de Nx dia dxs nxssxs, primeiro disco dele lançado pelo Laboratório Fantasma.

O disco tem jeitão de estreia, mas é na verdade o terceiro que ele coloca nas ruas — os dois primeiros, 100% independentes, ele mesmo vendia de mão em mão logo que chegou em São Paulo, vindo de Bauru, onde morava desde os 7 anos, quando deixou sua terra natal, Osasco, na Grande São Paulo.

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Para Coruja, o momento atual é simbólico: “Quando eu era mais novo eu ainda sonhava com uma gravadora. Hoje, o sonho seria estar aqui”, conta, para explicar que o momento atual é, sim, a realização de um sonho e também de seguir na missão de sonhar grande e estar junto com os companheiros de rap e militância. Ele quer fazer do lema “no dia dos nossos” algo mais do que o título de um álbum. A fase é outra, como ele canta na faixa “Outra fase”, a música que ele afirma ser a que mais o simboliza do repertório do álbum. “Já eu: Quero um estúdio pra gravar, festivais pra me apresentar / E multiplicar a grana disso / Faço por amor a arte, não prêmio”.

E se o BC de seu nome significa “buscar conhecimento”, hoje, sua busca foi incrementada por outros elementos, entre os quais está, claro, o sucesso profissional, mas desde que não precise deixar de lado a satisfação artística. “Eu cheguei vendendo disco pra comer, hoje eu consigo viver da minha música”, lembra. 

A Trip se encontrou como Coruja na sede da Laboratório Fantasma, na zona norte de São Paulo.

Trip. Como você começou na música? Coruja. Eu comecei a me relacionar com a música com o meu avô. Ele tinha um lance com o repente e também tinha um lance com o samba, que ele gostava muito, Cartola, Adoniran... Mas ele tinha um monte de instrumentos e não tocava nada. Então, quando eu tinha quatro anos, ele me deu um pandeiro e, quando eu tinha sete anos, ele me deu um cavaquinho. Só que eu decepcionei meu avô, porque meu primo me apresentou o rap e eu pirei, isso em Osasco, criança ainda. Eu pirei na batida, na forma de como ela era encaixada nas linhas. O primeiro rap que eu escutei foi "Diário de um detento", dos Racionais. Eu não sabia nem o que queria dizer, eu só cantava, só repetia. Eu tinha cinco anos quando eu escutei essa música.

Pouco depois disso você já mudou pra Bauru. Eu mudei para Bauru, na Vila Industrial, onde eu cresci. Lá, eu tinha vários amigos que já gostavam de rap, mais velhos, de 12, 13 anos. E eu tinha um amigo, o nome dele era Binho. Esse mano foi o responsável por eu fazer rap, porque uma vez a gente estava na casa dele, escutando, e o pessoal começou a brincar de fazer rima, eu nem sabia o que era freestyle, era brincar. E eu comecei a fazer e fazia com uma certa facilidade, na minha infância. E ele falou "cara, você sabe fazer essa parada, você tem um dom pra fazer esse bagulho". Era bem ruim, bem de criança mesmo, mas eu encaixava as rimas, já tinha a mente rápida pra encaixar. 

Como vocês ouviam rap? Ele tinha um monte de fita k-7 de rap. Ele tinha um telefone e um radinho toca-fitas da Gradiente, e na época as coisas chegavam muito depois em Bauru, a internet ainda não era viável na periferia de Bauru, só foi chegar de verdade em 2005, 2006. A gente queria escutar Racionais, só que a gente não tinha condição de comprar o disco. A gente descolava o nome das músicas e ele ligava na rádio e pedia. Aí a gente gravava no radinho. Aí a gente fez uma fitinha de Racionais, fez outra de Ndee Naldinho... E aí a gente foi fazendo nossa coleção de rap. 

Você ainda tem essas fitas? O Binho tem até hoje. Eu acho que eu tenho também algumas em casa. E foi assim que começou minha história com rap. Dancei break também, minha primeira crew chamava Panic Crew. Esses foram meus primeiros contatos com o hip hop. 

Isso como público ainda. Hoje você está na Laboratório Fantasma, um selo independente criado por outro rapper. Há 15 anos isso parecia irreal. Eu estou parando para pensar nisso agora. Essa transição foi tão natural que eu não sei como foi. É muito doido pensar nisso. Eu faço parte de um dos maiores selos de música do Brasil. Há três anos eu estava no Anhangabaú vendendo meu disco de mão em mão, logo que eu mudei de Bauru para São Paulo para tentar fazer música aqui. Eu fazia isso para pagar o meu almoço, minha estadia e minha janta. Se eu não vendesse esses CDs, eu não almoçava. É muito doido. Muita coisa mudou em três anos.

Quando você vai rimar, de onde nascem as suas rimas? Coração e caneta, a alma, o que eu tenho pra transmitir... Eu vou lá e coloco nas linhas. A minha música nasce daquilo que eu vejo, daquilo que eu vivo e daquilo que eu sinto. São as três mães da minha música. Ter o privilégio de crescer ouvindo Racionais, DMN, Potencial 3, Consciência Humana, Z'África Brasil, entre outros grupos, Xis, Consequência, Emicida, me deu uma maturidade a mais para a minha idade. Eu era fã do Emicida, antes de ser amigo e trabalhar com ele.

Como vocês se conheceram? Minha música chegou nele primeiro do que eu. A gente tem um amigo em comum chamado Kuririn, que trabalhava na Lab, e ele apresentou minha música para o Emicida. Foi assim que surgiu esse contato e a nossa amizade. E aí a gente se identificou, um com a história do outro. Foi assim.

A ideia do disco que você lança agora surgiu quando? A ideia surgiu em 2014, com o Skeeter, que queria fazer uma parada comigo. Eu topei, só que durante esse percurso minha ideia mudou, e a parada começou a caminhar pra ser um álbum. No começo de 2015, eu comecei a compor as primeiras coisas desses disco, é um trabalho que já está pronto faz um tempo. Em 2015, eu já tinha composto 80% do disco. 

Sua vida seria outra sem o rap, né? Eu acho que eu não estaria vivo, se não fosse o hip hop, eu não estaria vivo. Se a minha geração passa por uma estrada melhor, é porque pessoas passaram por uma estrada de terra esburacada e foram pavimentando. Estou em parte desse pavimento com certeza. 

O disco chama No dia dos nossos. Mesmo tendo sido feito antes, tem a ver com esse momento, você lançando o disco por um selo de alguém do próprio rap e não de uma gravadora. Eu acho que é um disco que se faz necessário neste momento, em que tudo caminha para desencorajar o favelado, desencorajar nosso povo, e é um disco que tem a mensagem de encorajar e empoderar nosso povo. Eu acho que esse disco é ainda mais necessário em 2017 do que era em 2015. No dia dos nossos representa o anseio e a vontade de encorajar, o dia em que as nossas angústias, nossas atribulações, terão um ponto final. Um dia em que a gente consiga mostrar que a gente quer as coisas de igual, nem um  pingo a menos, tudo de igual. Esse é o significado do disco, o nosso dia, da periferia, do povo preto. O disco tem a vontade de encorajar. É a trilha sonora do sofredor. De uma certa forma, é o que pensei para fazer o disco. O rap foi isso pra mim.

Créditos

Imagem principal: Felipe Barros / Divulgação

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