por Ricardo Calil
Trip #184

Para entender nossa idolatria pelo corpo, antropólogo francês frequentou academias no Rio

O antropólogo francês Stéphane Malysse matriculou-se em academias de musculação cariocas para entender nossa idolatria pelo corpo. Descobriu exóticos espécimes, como as mulheres frutas, os homens troncos, balzaquianas mortas-vivas e censores descontrolados do corpo feminino, como os perseguidores de Geisy na Uniban

Quando começou a desenvolver o conceito de corpolatria, a idolatria do corpo, o antropólogo francês Stéphane Malysse não teve muitas dúvidas sobre seu destino: Rio de Janeiro. Em 1997, ele visitou as academias de musculação da cidade e escreveu uma tese publicada no livro Nu & vestido. Onze anos depois, já morando em São Paulo e trabalhando como professor da EACH - USP Leste, Malysse voltou ao Rio para um novo estudo, desta vez de autoantropologia. Matriculou-se em uma academia, tentou “transformar o corpo do antropólogo para ver se o olhar sobre o assunto mudava junto” e publicou suas conclusões no livro Diário acadêmico.

Com doutorado na EHESS de Paris e pós-doutorado na Unicamp (que resultou no site http://incubadora.fapesp.br/sites/opuscorpus/), Malysse estudou Antropologia do Corpo com o francês David Le Breton e desenvolveu o conceito de Antropologia das Aparências Corporais, que estuda o que os indivíduos fazem com seus corpos em contextos culturais específicos.

Hoje Malysse é considerado um dos principais especialistas no corpo do brasileiro. Ele interrompeu suas férias na Bahia para falar à Trip sobre corpolatria, o caso Geisy, mulheres-fruta, homens troncos, mortas-vivas, topless e surf.

Por que você decidiu aderir à malhação na sua volta ao universo das academias?

Minha primeira visita ao Brasil foi justamente para realizar meu campo de pesquisa sobre musculação no Rio de Janeiro. Defendi a tese e voltei correndo. Mesmo assim, eu continuava a pensar no assunto... Assim, resolvi retomar o caminho pesado da academia, entrar em forma e, assim, colocar em evidência as questões centrais da antropologia: o relativismo, o etnocentrismo, a metodologia reflexiva, as relações com a literatura... O resultado conta o meu dia a dia numa academia, meus diálogos com os (im)personal trainers... No decorrer do livro comecei a dialogar também com a Nathalie Gassel, uma fisiculturista belga que se tornou minha melhor informante sobre o assunto musculoso... Ela se construiu um corpo viril, macho, subvertendo as categorias de gênero e se tornando sexualmente ativa. Ao dialogar comigo, ela revela (e me obriga a confessar) quais são as motivações que nos levam a malhar e a querer mudar o nosso corpo: o olhar do outro, o mercado sexual... O que me levou a concluir que o músculo é no contexto da academia uma extensão sexual do gênero, um tipo de ereção muscular... uma propaganda sexual.

Você identificou mudanças nos padrões de beleza feminino e masculino no Brasil nos últimos anos? O corpo natural foi substituído pelo corpo esculpido na academia?
Nesse campo, as mudanças são bastante lentas, seria mais correto pensar em décadas do que em anos para acompanhar as mudanças na história do corpo... Mas, sim, a beleza, suas modas e seus modos, muda sem parar, pois ela não é fixa, mas sim se fixa no corpo dos indivíduos, que incorporam novos padrões estéticos de apresentação de si. Sempre existiu, em todas as sociedades humanas, uma preferência para o artificial, o construído, o antinatural, o moldado, o ajustado aos critérios do momento, porque é assim justamente que a cultura toma posse do corpo.

Como você analisa o fenômeno das mulheres frutas?
As mulheres frutas e os homens troncos se encaixam perfeitamente nesse cenário antropológico, sendo divididos na cintura, pois a parte superior representa a parte masculina, a força, a virilidade e a parte inferior a feminilidade, a reprodução e as suas formas sexuais acentuadas... Nos dois casos, a questão central é a sexualidade, a sedução e a competitividade no mercado social.

Por que você escolheu as academias do Rio como objeto de estudo?
O que me interessa nas atividades das academias é que elas reduzem o corpo a um conjunto de músculos. Só que o corpo é muito mais do que isso. A fragmentação do corpo em músculos a serem retrabalhados, desenhados e esculpidos faz dessa atividade algo que podemos chamar de virtual. Por exemplo, você anda de bicicleta, vai de um ponto ao outro, vê a paisagem, as pessoas, pode sentir cheiros diferentes... Na bicicleta ergonômica não acontece nada disso, você pedala do mesmo jeito, mas está numa atividade virtual que só vale para adquirir músculos. O que importa é o resultado e não a experiência vivida.

O surf pode ser encaixado nesse fenômeno da corpolatria?

O caso do surf é bem interessante e não tem nada a ver com a academia. O surf é feito no mar, na onda, o que importa é a sensação, o vivido, o real e não somente o efeito do esforço real e seus resultados visíveis no corpo. O surfista não surfa para ter um corpo definido, mas simplesmente porque ele gosta de surf.

Você está estudando neste momento questões sobre beleza e autoestima femininas no Brasil. Quais são as conclusões até aqui?
Acabei de voltar da França, onde estava participando do Womens’s Global Forum. A convite da L’Oréal, para a qual faço consultorias há vários anos, fui falar sobre a feminilidade e a autoestima no Brasil. Falei muito da relação entre a beleza, a sexualidade e a morte e apresentei o meu novo conceito de efeminilidade, que explica que a feminilidade tal qual é vendida hoje deveria ser chamada de efeminilidade (efêmero + feminilidade), pois as mulheres não podem mais chegar vivas aos 30 anos. Depois disso elas são mortas-vivas, ou “mortas-vistas”, que devem usar todos os cosméticos e procedimentos estéticos imagináveis para retocarem-se, reajustarem a autoimagem, reformarem o que o tempo mudou para serem apresentáveis... Chamei esse drama de síndrome de Laura Palmer [a heroína de Twin Peaks], pois, para ter autoestima alta hoje, a mulher deve ser bonita, jovem, loira e sexualmente ativa. Assim, tem que morrer antes dos 30. Foi um escândalo! As mulheres do congresso, mesmo sendo as mais poderosas do mundo capitalista, não conseguiram engolir essa verdade crua e nua. Ficaram chocadas, e eu adorei...

Por que num lugar em que a aparência é tão hipersexualizada como o Rio de Janeiro, em que o Carnaval exibe mulheres 99% nuas, é impossível praticar topless?
Para mim essa hipersexualização é um dos fenômenos mais importantes do século 21. Ao marcar de forma hiperbólica as diferenças do gênero, as culturas ocidentais reinvestem a questão da diferenciação onde ela pode ser vista e analisada. Com a globalização e a padronização cultural, os espaços de diferenciação evaporaram, deixando toda a cena para as questões do gênero e das sexualidades... O topless ou sua ausência no Brasil foi algo que me surpreendeu justamente no início, depois percebi que a forte sexualização do cotidiano e a erotização do corpo da mulher não deixavam os homens com o autocontrole necessário ao bom funcionamento do topless...

Você acompanhou o caso Geisy na Uniban? Que conclusão é possível tirar desse episódio sob o ponto de vista da antropologia do corpo?
No caso da Geisy na Uniban, aconteceu a mesma coisa que no topless. Na falta do autocontrole individual, os homens preferem censurar o corpo feminino, o mesmo que eles construíram e desnudaram para seus deleites visuais.

Em sua opinião, quem tem o corpo mais belo do Brasil?
Minha opinião é que minha opinião não é e nunca foi minha... São as mídias, as educações e imitações que decidem por mim que Gisele Bündchen e Rodrigo Santoro são belos, que todos que aparecem em revista, filmes, são mais belos do que as pessoas que vejo no trem ou nas ruas... Enfim, os mais belos são sempre os que são transformados em imagens.

*Colaborou Ronaldo Bressane

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