TERRORISTAS!
Algo não ia bem, eu adolescente pressentia. Registrava algo que não entendia. Sentia como cheiro de fogo no ar. Em plena Praça da República, um bando de rapazes virou um carro da polícia e colocou fogo, na minha frente. Fiquei olhando perplexo. A cidade estava de pernas para o ar, de repente. Bandos de rapazes cabeludos, pouco mais velhos que eu; moças bonitas e bem vestidas, andavam-correndo cheios de bandeiras vermelhas, gritando coisas que eu não entendia. A polícia nem olhava para mim. Eu o ladrãozinho, não importava mais. Corriam de cassetete armado, atrás dos jovens. Quando pegavam, ai, ai, ai. Era uma saraivadas de cacetadas que chegava a doer em mim só de ver. A cidade virará uma fumaceira de gás lacrimogêneo que nem dava para roubar mais.
Depois de um tempo, em 1970, fui encontrar outros parecidos com aqueles na velha Casa de Detenção da Avenida Tiradentes, agora condenados. Eu era preso correcional e saia da cela para fazer faxina nas galerias dos chamados “terroristas”. A princípio me tratavam como se eu fosse um verme, queria dar ordens e tudo. Depois foram conversando e gostando de mim. Eu tinha 18, mas aparentava uns 15 anos.
A miséria no lado correcional era total. A comida era uma lavagem que nem os porcos aceitariam. Com meu trabalho nas galerias dos “terroristas”, eu me tornei na fonte. A única do xadrez que estava preso com mais uns 30 jovens como eu. Voltava para o xadrez com sacola cheia de alimentos que os presos políticos me davam ou eu roubava deles. Era uma espécie de pagamento pelos favores que eu fazia. Claro, no pacote vinha sempre um feixe de perguntas: De onde você é menino? Você não é menor de idade? Sabe ler e escrever? Até que ano estudou? Quer aprender a ler e escrever?
Queriam me dar livros, corrigiam minhas palavras e ensinavam a falar correto. Diziam de coisas que eu não entendia. Na verdade, não me interessavam. Precisava de coisas mais substanciais. Descobriram que minha preocupação era com meus amigos (a molecada da rua presa comigo). Queria sempre levar algo para eles se alimentarem, cigarros e até um baseado que comprava na galeria dos condenados comuns. Nem me preocupava muito comigo. Daí para frente mudou o comportamento deles comigo. Começaram a me tratar com mais igualdade. Dividiam comigo e conversavam demoradamente. Chegavam a ser carinhosos comigo. Alguns deles eram pessoas de família de posses e demonstravam gostar de mim de verdade. Aos poucos, preferia estar com eles a ficar com meus iguais.
Sinto até hoje que perdi uma das maiores oportunidades que a vida me ofereceu. Queriam me adotar. Apresentaram seus familiares quando eu fazia faxina ao final do horário de visitas deles. Foram eles que colocaram advogado para que eu pudesse sair, depois de quase 4 meses preso ilegalmente. Quando me despedi, fui abraçado por cada um eles. Até por aqueles que não me topavam muito. Eram organizados e as adversidades os havia unidos ao extremo. Sai com dinheiro que me deram e com vários endereços para procurar. Queriam que eu fosse morar com a família deles. Prometiam estudo, casa e me encaminhar na vida. Senti que era verdadeiro e sincero, haviam de fato gostado de mim.
Ao por os pés na rua, entrei no primeiro bar da esquina, tomei uma bebida e já esqueci. Rasguei endereços e fui ao encontro de meus amigos. Somente anos mais tarde, quando já preso e me introduzia no caminho da leitura e do estudo é que caiu a ficha. Agora só dava para lamentar minha inconseqüência e estupidez.
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Luiz Mendes
05/05/2010.