De alimento precioso e caro há apenas 500 anos, o açúcar passou a ser a peça mais importante na dieta, em todo o planeta
Já estávamos no ano novo quando eu soube que, no dia 27 de dezembro, havia morrido, aos 95 anos, o antropólogo norte-americano Sidney Mintz. Alguns dias depois, fui informado de que o tema desta edição da Trip seria açúcar. Me voltei para a estante, e lá estava, olhando para mim, o livro clássico de Mintz, Sweetness and Power (Doçura e poder, absurdamente ainda sem edição brasileira). Agora eu já tinha um pretexto para folhear novamente a obra e prestar homenagem a um dos maiores pensadores norte-americanos de todos os tempos. E que é, entre outras coisas, considerado o pai da antropologia da comida – resumidamente, o estudo do papel social da alimentação.
Mintz era bem-humorado: do restaurante do pai, onde trabalhou e aprendeu a gostar de comida, dizia que “era o único restaurante do mundo onde o cliente nunca tinha razão”. Sobre alimentação saudável, ele alertava para o fato de que a escolha dos alimentos, para os humanos, é sempre cultural, não existindo uma “comida natural”, a única exceção sendo o leite materno: uma vez desmamados, os membros de uma sociedade louvariam o hambúrguer, enquanto os de outra prefeririam olhos de bode recheados, e todos teriam certeza de suas escolhas.
Mas Mintz só chegou à comida quando já era um antropólogo reconhecido. Ele passou a juventude pesquisando os canaviais do Caribe, começando pelas relações sociais e de produção. Logo percebeu que não compreenderia aquele universo se não entendesse o papel histórico do produto final daquilo tudo, o açúcar. E foi dessa conclusão que nasceu o livro que folheio enquanto escrevo esta coluna. Só mais tarde outros alimentos entraram no cardápio de Mintz. Antes, houve o açúcar, cuja história, que tentarei resumir aqui, ele escavou, analisou e contou.
ARTIGO DE LUXO
O açúcar da cana era praticamente desconhecido na Europa até por volta do ano 1000 (ou seja, se você vir num filme o rei Artur chamando a rainha Guinevere de “meu docinho de coco” quando ela o receber, depois de uma batalha, com um bolo de chocolate, pode escrever para o roteirista, protestando). A partir daí, e muito em função do contato que os cruzados tiveram com o açúcar no Oriente, ele foi lentamente entrando na dieta da aristocracia, como um produto de luxo, importado de terras distantes.
Aos poucos, a cana começou a ser cultivada por europeus em regiões que tinham clima propício, como Chipre e alguns pontos do norte da África. E então, no século 16, com as conquistas ultramarinas europeias, os canaviais tomaram conta das Américas (as primeiras mudas vieram já na primeira viagem de Colombo). A partir daí o universo açucarado cresceu, de maneira exponencial, até hoje. Na Inglaterra, por exemplo, apenas entre 1710 e 1750, o consumo aumentou 500%.
Embora pau-brasil, ouro, tabaco, algodão e café tenham sido importantes, o principal motor da colonização das Américas foi o açúcar. Consequentemente, foi para trabalhar em canaviais que a maior parte dos escravos foi arrancada da África. E, exceto pela abolição do chicote, as condições de trabalho de um canavieiro em 1950 eram idênticas às de 1750.
No fim das contas, de alimento precioso e caro há apenas 500 anos, o açúcar passou a ser a peça mais importante da dieta, em todo o planeta, nos dias de hoje. Pense no xarope açucarado que atende pelo nome de Coca-Cola, em sorvetes, chocolates e achocolatados, balas, bolos e doces em geral, na obesidade generalizada e nas crescentes taxas de diabetes nas crianças, e tente imaginar o que seria a nossa vida sem o açúcar. O livro de Mintz faz pensar que, talvez mais do que do petróleo ou da informação, pudéssemos chamar o nosso mundo de “a civilização do açúcar”. Mesmo que você prefira adoçantes de gotinhas.
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