por Redação

Vegetarianismo, veganismo, domesticação de plantas e ativismo. Stevens Rehen, o casal João Gordo e Vivi Torrico e o geneticista e Agustin Zsögön falam sobre a falta de diversidade na alimentação

Estima-se que existem no mundo cerca de 300 mil plantas comestíveis. Só aqui no país, segundo o livro Plantas Alimentícias Não Convencionais no Brasil, são 30 mil espécies vegetais que possuem partes que podem servir como alimento para a gente. Mesmo assim, cerca de 66% das calorias que consumimos vêm de apenas três. Isso mesmo, três plantas. Essa falta de diversidade na nossa alimentação causa diversos problemas, tanto em nossa saúde quanto na saúde do planeta. Neste episódio do Trip Com Ciência, Stevens Rehen conversa sobre vegetarianismo e veganismo, domesticação de plantas e animais e propósito com o músico João Gordo, vocalista da banda Ratos de Porão e apresentador do canal Panelaço, sua companheira Vivi Torrico, idealizadora do projeto Solidariedade Vegan, que produz e distribui marmitas veganas, e também o geneticista e biólogo Agustin Zsögön.

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O argentino é professor e especialista na área de Fisiologia Vegetal, com ênfase em Genética e Desenvolvimento. "A domesticação é bem mais comum em plantas do que em animais – menos de 50 espécies de animais que foram domesticados e mais de 2.500 de plantas", conta. Vivi Torrico e João Gordo tentam driblar essa falta de diversidade e a baixa nutrição reaproveitando alimentos e estudando sobre a alimentação saudável. "A comida vegana é uma alquimia", diz ela.

Stevens Rehen. Vivi, quando foi a primeira vez que você flertou com o vegetarianismo e com o veganismo?

Vivi Torrico. Um pouco antes do meu filho nascer. A gente já tinha essas informações por meio de documentários e de pessoas que estavam no veganismo. Hoje o João tem muito mais tempo de veganismo e vegetarianismo, mas nessa época ele tirava sarro de mim. Fica falando: "Você é argentina, nunca vai parar de comer carne". E aí eu comprei vários livros sobre receitas, minha mãe começou a se interessar também. Não foi nem um pouco fácil, porque a gente tem um paladar acostumado com carne. O primeiro flerte foi esse, há mais de 15, 16 anos.

No primeiro momento pode parecer estranho, mas o movimento punk tem uma relação com o veganismo. João, conta quando foi a primeira vez que você ouviu falar do veganismo.

João Gordo. A primeira vez foi quando a [banda de metal] Napalm Death veio para o Brasil, em 1989. Eu nunca tinha viajado, nunca tinha ouvido falar em vegan. E o baterista, Mick Harris, me pediu para levá-lo ao supermercado. Ele começou a pegar os produtos, ficava lendo e pedia para traduzir. E eu: "O que esse cara quer?". "Ah, ele é vegan". "Vegan? Que porra é essa?" Ridículo, né? Daí depois eu fui para Europa e tive contato com veganos na Alemanha, na Holanda e tive a introdução ao veganismo. Mas eu tirava um sarro, meu negócio era salame, feijoada, carne de porco, linguiça. Em 2003, fiz a cirurgia bariátrica e a carne ficou indigesta para mim. E como na minha banda tem dois manos que são vegan, vegetarianos, eu resolvi. Fiquei vegetariano por anos até, há uns quatro, cinco anos, parar o consumo e a exploração animal. Mas essa é a parte mais política da coisa, mesmo assim demorou bastante. É bem difícil, mas eu sempre falo que a parte da comida é mais fácil, é só querer.

Agustin, eu queria saber se você é vegano, vegetariano, onívoro ou carnívoro.

Agustin Zsögön: A minha ex era vegetariana e eu acabei virando vegetariano por tabela durante vários anos, mas depois a gente separou e eu voltei a comer frango e peixe. Só que não consegui voltar a comer carne vermelha, o gosto, o cheiro, já não conseguia aguentar. Acabei inventando uma categoria própria para mim, que é o  "vegetarianismo Darwiniano": eu não como mamíferos, as espécies que são evolutivamente próximas. Mas aconteceu uma coisa engraçada comigo durante a pandemia. Comecei a ficar angustiado de ficar trancado em casa e a sentir muita falta de comer empanadas argentinas. Eu tive a tentação e comprei carne moída para comer empanadas e, agora, como uma ou duas vezes por mês em casa, sozinho. Eu mesmo preparo uma receita que minha mãe me ensinou quando eu era criança. Então, acho que essas categorias que você falou são às vezes meio forçadas para descrever alimentação, porque, para mim, é uma coisa bem fluida e que deve estar bastante associada ao nosso psicológico.

Falando agora sobre o seu trabalho, tem muita gente que, quando falamos em domesticação, pensa exclusivamente em animais. Mas as plantas também foram domesticadas, né? 

Agustin. De fato tem menos de 50 espécies de animais que foram domesticados e mais de 2.500 espécies de plantas. Então, a domesticação é bem mais comum em plantas do que em animais. Domesticar é literalmente trazer para casa o que estava na natureza. Obviamente que os animais selvagens você não pode trazer para a casa do jeito que eles estão, pelo menos os carnívoros. O que você precisa fazer é transformá-los em formas mais mansas e até mais bonitas, que sejam mais agradáveis para o olho humano. E a pergunta é: como a gente faz isso? Isso é uma área de pesquisa bem intensa. O experimento mais famoso é um que foi feito na União Soviética, durante os anos 50 e 60. Um grupo de pesquisadores pegou uma população de raposas em cativeiro, 300 machos e 100 fêmeas, e foi fazendo cruzamentos entre eles, sempre selecionando as mais mansas, as que não tinham medo dos humanos, as que não tinham uma resposta agressiva. Depois de dez gerações, eles observaram que as raposas não eram apenas mais mansas, mas também tinham mudado fisicamente, tinham mudado a cor da pelagem, tinham o focinho mais curto, mais arredondado, a orelhinha menor. E hoje essa população de raposas, inclusive, existe como bichinho de estimação nos Estados Unidos. Recentemente, um grupo conciliou o DNA dessas raposas e comparou com o DNA de raposas selvagens e eles acharam um monte de variações genéticas, mais de cem. O que mostra que quando você domestica um animal você muda o genoma dele. E outra coisa que eles provaram é que isso pode ocorrer muito rápido, em menos de 50 anos. No caso das plantas é a mesma coisa. Na natureza elas crescem de maneira caótica, são grandes, ramificadas, muitas vezes tóxicas e possuem frutos e grãos pequenos. Quando você domestica as plantas, através de seleção, as transforma em versões mais fáceis de cultivar e mais atrativas para o consumo, com mais cores, mais nutrientes, com melhor sabor. Então, tanto da domesticação de plantas quanto de animais, a gente fez um processo de seleção genética, de domesticação genética.

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Mas quando faz essa domesticação você perde alguma coisa? O que de fato foi bom e ruim, o que a gente ganhou e o que a gente perdeu com a domesticação das plantas?

Augustin. Bom, isso é um julgamento de valor, então depende um pouco da opinião de cada um sobre o que a gente ganhou e o que a gente perdeu. O homem foi caçador, coletor, durante 99% da existência na Terra. A domesticação permitiu a existência da agricultura. Então, dez mil anos atrás, quando o homem começou a cultivar plantas e a criar animais domesticados, permitiu a divisão do trabalho, o surgimento das civilizações, das cidades. O principal efeito foi que a expectativa de vida aumentou. Os caçadores e coletores tinham uma expectativa de vida de 40 anos. Então, aqui e agora, em civilizações agrícolas que têm plantas como fonte de alimento fundamental, a gente tem uma expectativa de vida que é quase o dobro. O problema da domesticação é a falta de diversidade da alimentação, porque já se sabe que os caçadores, na dieta deles, se alimentavam de mais de 100 espécies de plantas diferentes, plantas silvestres que eles conheciam muito bem como preparar, como desintoxicar. Eles tinham muito conhecimento botânico. Hoje, no mundo, 90% das calorias que a gente consome vem de 15 espécies e a maioria delas vem de apenas três espécies, que são os cereais arroz, trigo e milho. Então, esse empobrecimento da diversidade também acaba refletindo em uma redução da qualidade nutricional. E aí a gente tem problemas de saúde que não eram frequentes nos caçadores, como problemas dentários, de obesidade, diabetes e até a própria doença celíaca. Um outro ponto é que como essas espécies foram transportadas ao longo do tempo para diferentes áreas do mundo, elas perderam muito das adaptações que tinham em situações climáticas extremas, como seca, enchente, calor. Então por isso se diz que a resiliência, a capacidade dos cultivos de resistir a essas situações, é muito menor. E esse é um dos objetivos do trabalho que a gente faz, de tentar recuperar essa resiliência para os cultivos serem mais resistentes a essas situações desfavoráveis.

Como é que vocês lidam com a questão da diversidade na alimentação? Vocês tem alguma estratégia para justamente aumentar essa diversidade no prato?

João. É meio complicado. Eu como sempre as mesmas coisas e isso me causa uma deficiência de vitaminas muito grande. Falta muita B12, estou anêmico pelo fato de comer errado. O pessoal fala: "O cara é gordo, o cara é vegano, só que é gordão". É muita ignorância pensar que vegano só come mato. Você tirando a parte animal, leite, ovo, queijo e carne, vira todo um leque de alimentação gigantesca. Você vai na feira e tem tudo vegano ali. Então acho que faz um pouco falta de estudo e coerência para fazer essa diversidade no prato, para que não me falte vitaminas. 

Vivi. Já no Solidariedade Vegan, com as marmitas, a gente acaba tendo um maior conhecimento e dando uma balanceada, justamente pela consciência em saber que são pessoas que estão nas ruas, propensas a um monte de doenças. Por isso, logo que começou projeto, chamamos a Maria Alice, que é da Sociedade Vegetariana, para que ela nos trouxesse esse conhecimento. A gente já usava algumas PANCs, mas foi com a orientação dela que conseguimos dar mais qualidade ao prato. A gente teve bastante conhecimento nessa pandemia fazendo todos os dias uma quantidade enorme de marmitas e tentando essa diversificação. E também trazendo aquela coisa da comida afetiva, sabe? Para que não fique muito distante do que eles estavam acostumados a comer com as outras ações solidárias que incluem carne. A gente acaba usando soja, que, embora tenha um monte de preconceitos, para a marmita solidária acaba sendo um produto super ok. E hoje tem estudos comprovados na parte de nutrição alimentar que a soja não é todo esse demônio que as pessoas acham que é, sabe? É bem fácil demonizar a soja e ser essa a desculpa para parar de comer carne.

Augustin. Eu queria aproveitar para fazer uma pergunta para vocês: o que acham da diversidade quando vão no varejão? Porque no Brasil a gente tem a maioria da biodiversidade do planeta, mas eu vi a maior diversidade de frutas, verduras, hortaliças e legumes no Japão, por exemplo. Vi no Japão coisas que eu nunca tinha visto e aqui no Brasil, que tem milhares de espécies e tal, você vai no varejão e é sempre a mesma coisa, são as frutas da estação. O que vocês acham de como a gente aproveita o que tem aqui no Brasil?

Vivi. Super mal aproveitada. Tem uma coisa que eu fico passada no Brasil, que, claro, não é uma árvore típica do Brasil, veio da Índia, que é a jaca. As pessoas só sabem consumir a fruta doce. Não sabe que ela tem um monte de propriedades e é muito mais rica do que um pedaço de bife, se você consumir ela verde. A gente faz a nossa carne de jaca, palmito de jaca, carne desfiada, frango. A gente está com um projeto começando no Boqueirão para que lá dentro da comunidade o pessoal saiba que a mistura pode ser a jaca, que está caindo de maduro e eles não sabem. A banana verde da terra é riquíssima, tem uma fibra muito maravilhosa, a textura dela. O pessoal vai e come um monte de banana e joga fora a casca. Não, a casca não. Ela tem que ficar, tem um jeito de preparar que vira carne quase que de graça, porque você acaba usando tudo. Isso para mim é muito apaixonante, a comida vegana é tipo uma alquimia. Acho que a comida tradicional não te dá essa liberdade. 

João. E outra coisa, você falou sobre a diversidade no Japão. Acho que na Ásia o pessoal passou muita fome. Eles sabem que tudo dá pra comer, desde escorpião até sei lá... 

Augustin. Exato, exato. Inclusive, você vê que um hobby deles é cultivar no quintalzinho. Você passa de trem e onde tem dois metros de terra tem lá os velhinhos com a enxada cultivando melancia, pepino. Todo mundo cultiva alguma coisa em casa, todo mundo tem uma hortinha, uma estufinha, onde, no inverno, produzem morango. Você tem que ver o tanto de frutas que eles produzem! É impressionante. Não tem como ficar desabastecido, porque eles não dependem do supermercado.

João, vocês não só mudaram a dieta, como transformaram essa opção num estilo de vida. Contem como surgiu a ideia do programa Panelaço.

João. Eu peguei a ideia de um programa que a gente teve na MTV, que era o Gordo à bolonhesa, incluí as entrevistas e no começo eu cozinhava as comidas veganas. 

Vivi. A ideia era mostrar uma receita vegana feita pela gente, muitas vezes inventada. Foram 120 receitas. A gente fez empanadas de soja, empanadas de jaca, várias coisas. O atrativo era justamente o fato de ser na nossa cozinha. 

João. E também fazer para uma pessoa não vegana. Acho que 90% das pessoas que foram em casa eram carnívoras, nunca tinham ouvido falar [de veganismo] ou mal sabiam.

No programa vocês conseguiram converter quantos?

Vivi. Eu não sei, porque a gente não fica com essa história de tentar enfiar goela abaixo o veganismo nem o vegetarianismo. Acaba acontecendo como uma coisa natural. O fato das pessoas virem na minha casa é muito importante também, porque a gente sempre tenta que faça todo sentido, então adotamos bichos, já fomos lar temporário de bichos, já fizemos voluntariado em algum centro de adoção. 

Augustin. Acho que tem um pouco desse preconceito que vegano, se você sentar junto, em dois minutos ele já começa a falar que você tem que virar vegano e que está fazendo tudo errado na sua vida. 

Vivi. Não temos essa intenção de "tem que ser vegano, virar vegano". É meio natural. Durante os cinco anos do Central Panelaço, a gente teve uma peregrinação de pessoas que tiveram essa passagem da alimentação desregrada, sem consciência, para uma alimentação vegana ou vegetariana. Famílias inteiras vindo agradecer porque conseguiram reverter quadro de saúde e tal. 

E João, como foi essa transição para ser dono de restaurante? 

João. O restaurante basicamente acabou. Atualmente a gente usa o espaço para fazer comida para o Solidariedade Vegan.

Vivi. A gente continua com delivery. Seria muito bom poder abrir a porta do restaurante, porque traria uns 40% a mais de lucro pra gente. Só que assim, 40% a mais significa deixar de produzir, mais ou menos, umas cinco mil marmitas por mês. São cinco mil pessoas que vão deixar de comer por 40% a mais pra gente, então não fecha a conta. 

Aproveitando, conta um pouquinho mais do movimento Solidariedade Vegan. 

Vivi. A gente produz marmitas todos os dias e trabalhamos com vários parceiros, como Matilha Cultural, Centro de Referência da Diversidade. Fora isso, temos ações pontuais em comunidades e uma troca muito grande e rica com a Aldeia Tekoa Porã. E para todas essas ações a gente depende muito das doações, seja de dinheiro, roupas, chinelos. Quando a gente faz lives no @solidariedadevegan, falamos que cada comentário, cada like é super importante porque acaba mudando os algoritmos. Estamos com uma frente na comunidade do Boqueirão para oferecer comida vegana para as pessoas. E agora, cozinhamos três vezes por semana na cozinha da comunidade para que depois eles continuem nesse projeto sozinhos, tendo essa entrada de verba, da favela para a favela. É maravilhoso que eles consigam ter esse conhecimento e ferramentas, para não ficar esperando sempre que venha alguém de fora para validar. 

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