Caetano Veloso x Lobão

Fernando Luna
Ivan Marsiglia

por Fernando Luna
Ivan Marsiglia
Trip #91

Ao longo de várias semanas, Caetano Veloso e Lobão trocaram farpas na imprensa. A Trip dispensou intermediários e colocou os dois frente a frente para acertar suas diferenças

Numa tarde quente de junho, o baiano Caetano Emanuel Vianna Telles Veloso, 58 anos, e o carioca João Luiz Woerdenbag Filho, o Lobão, 43, entraram na suíte Penthouse do hotel Copacabana Palace, no Rio de Janeiro. Os dois pareciam ansiosos pelo encontro anunciado há quase um mês. Caetano chegou a desmarcar, na véspera, a primeira data acertada com a revista. Disse que estava com um edema nas cordas vocais e fez questão de justificar a ausência: “Digam ao Lobão que não estou fugindo dele. Ao contrário: estava (estou) interessado e animado para fazer essa matéria”, escreve, num e-mail enviado à redação da Trip.

Lobão chegou vindo das gravações de um programa para o canal Multishow. Caetano saiu direto da terapia para a sessão no Copa. Como os dois tinham fome, a produção encomendou na recepção do hotel um “Café Romântico para Dois” – garrafa de espumante Chandon, suco de fruta, omelete com caviar, salmão defumado, queijos finos, pães, geleia morangos com creme. A conversa que veio a seguir também não foi nada indigesta.

Admiradores mútuos e adversários no teatro de símbolos da MPB, Caetano e Lobão vinham se espetando pelos jornais. A polêmica começou há algumas semanas, quando os dois se encontraram por acaso no Programa do Jô, na Rede Globo. Caetano cantou a música “Rock ‘n Raul’, de seu novo disco, Noites do Norte, que faz menção a um tal “lobo bolo”. Lobão agradeceu a “homenagem”, mas ficou desconfiado. Tanto que, dias depois, escreveria de supetão o rap-maracatu “Para o Mano Caetano” – uma declaração de amor um tanto ácida para o compositor baiano.

Dali por diante, a mídia meteu a colher nesse casamento tempestuoso entre duas gerações de rebeldes: o Caetano libertário do Tropicalismo nos anos 60 e o Lobão antropofágico do rock dos anos 80. Ironias e provocações saíram de suas bocas diretamente para as páginas de cultura dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, sobre assuntos aparentemente díspares, como João Gilberto, Xuxa, Fernando Henrique Cardoso, o funk carioca, a máfia do dendê e Antonio Carlos Magalhães.

A Trip colocou cara a cara o leão e o lobo. Entre tapinhas e beijos, o debate durou quase 3 horas e terminou num final de noite quente.

Trip. Vocês têm falando bastante um do outro pelos jornais e estão hoje aqui conversando. Como se conheceram?

CAETANO Quem começa, Lobão? Você ou eu?

LOBÃO Posso começar porque te conheço antes do que você me conhece. Lembro de Caetano em 67, 68, nos festivais da Record. Eu tinha uma família conservadora, que simpatizava com a Arena. Minha mãe adorava o Chico Buarque, embora ele fosse uma vertente de pensamento antagônica à dela. Chico refletia alguma coisa que talvez fosse mais conservadora… Já vocês, Os Mutantes, o Gil e o Tom Zé, não: minha família detestava aquilo, achava um escândalo. E eu achava sensacional.

CAETANO Conheci o Lobão como a maioria das pessoas, quando ele tocava [bateria] na Blitz. Mas fui alertado para a especificidade da personalidade dele desde muito cedo, pela Marina Lima, que falava: “Caetano, presta atenção nesse cara que ele é especial. Toca violão clássico, está interessado em Villa-Lobos e estuda música brasileira tradicional, embora tenha se interessado pelo rock desde menino. Ele tem uma agressividade pessoal muito boa e que, sem dúvida, vai resultar em alguma coisa”. Isso não se desmentiu: Lobão não só de fato se destacou na Blitz, como no próprio fenômeno do rock dos anos 80, com o qual estabeleceu diferenças agressivas, até. Tenho acompanhado tudo isso com muita animação e simpatia. E tenho muitas vezes recebido farpas agressivas delas.

E essas farpas incomodam você?

CAETANO Eu já falei pra ele uma vez, quando nos encontramos no [bairro boêmio carioca do] Baixo Leblon: “Cara, não adianta! Você fala o negócio e eu gosto do que você fala” [risos]. E é verdade. Há muito tempo, o Jornal do Brasil, muito “honestamente”, resumiu uma entrevista minha para um jornal de Salvador, dizendo que o Rio é somente “plumas e paetês”. “Paulo Francis e Ivan Lessa são umas bichas” e “o carioca não tem nada a dizer”. Como se eu tivesse querendo brigar com o Rio de Janeiro, pura e simplesmente. Não satisfeitos em fazer isso, telefonaram para Ferreira Gullar, Antonio Cícero, Lobão, Márcio de Souza, cariocas de nascimento e adoção, me responderam. As respostas eram, em geral, deploráveis. Mas o Lobão disse: “Não, pelo Caetano eu tenho um respeito geriátrico” [risos].

LOBÃO Lembra Nelson Rodrigues? “Vamos manter o respeito geriátrico” [risos].

CAETANO Adorei. Li aquilo e ri. Disse: “Pô, o cara é foda”. Os outros lá, respondendo com uma burrice danada, levando a sério o negócio, e o Lobão aparentemente agressivo comigo, mas tão engraçado! Todo lance que ele apresenta tem graça. Às vezes, fico impaciente com ele por causa de eu tremer que, com tanto talento e tanta libido (porque isso é mesmo manifestação de libido genuína), ele possa cair no conto do personagem da imprensa, sempre à disposição deles para reclamar.

LOBÃO Isso aconteceu muito. Acho que eu era muito reativo. Sinceramente, faço terapia e vejo que fui um cara que viveu a vida inteira de castigo, superprotegido e, de repente, conseguiu uma força extraordinária. Um dia, quebrei o violão na cabeça do meu pai: péééé! Eu tinha dois, evidentemente. Mas foi minha primeira vitória, assim, no teatro das coisas, o prazer inenarrável de ter aquele violão espatifado na cabeça do meu pai. Aí, adotei a reação como padrão repetitivo e continuei com aquilo desesperadamente na vida.

Que discos do Caetano você tem?

LOBÃO Tenho o Joia, o Muito, o Circuladô, o Estrangeiro… uma porrada.

Qual prefere?

LOBÃO Gosto do Muito. Ouvi bastante na época. Foi nesse disco que descobri que o Caetano cantava bem. Porque sempre me foi colocado que ele era muito desafinado, um conceito da minha mãe. [Pensa] Mas sabe uma coisa que me marcou muito na infância? Foi naquela série de televisão Combate, lembra? Muito antiga, sobre uma companhia americana na Segunda Guerra Mundial. Eu era criança, devia ter 5 ou 6 anos, e adorava os caras porque, evidentemente, tudo era direcionado para você torcer pra eles. E estavam falando minha língua, pois era tudo dublado. Aí, eles conquistavam, botavam uma bandeira e eu: “Mas aquela não é a minha bandeira!”. Está aí por que o brasileiro tem esse vínculo com o americano, atávico, muito mais do que com o português ou com o argentino. 

Você está falando dessa necessidade de se diferenciar dele?

LOBÃO É. Eu falava muito disso com o Cazuza. Sabe, Caetano, eu não ia para a sua por isso. Ficava com muita curiosidade, mas achava que tinha que sair da sombra de vocês. Pensava nos seus versos em “Podres poderes[Será que apenas os hermetismos pascoais/ (...) / Nos salvam, nos salvarão dessas trevas/ E nada mais] e dizia: “As trevas somos nós, Cazuza! Isso é uma sacanagem!”. Interpretei isso.

CAETANO Mas foi uma interpretação errada, porque é no grupo dos hermetismos pascoais, miltons e tons geniais que você e Cazuza estão incluídos. Não nas trevas. De “Tinas e bens e tais”: o “tais” inclui vocês.

LOBÃO Sim, mas naquele momento… Não sei se eu estava muito inseguro com a morte do Júlio [Barroso, líder da banda Gang 90], no meio de uma elaboração, e pensei na coisa de o rock dos anos 80 se tornar uma bandeira, um batismo.

Existe algo de calculado nessa sua reação contra o Caetano, Lobão?

LOBÃO Calculado, não, porque não é exatamente contra o Caetano. Estou falando mal do rock pra caramba também, então sou um cara que atira para todos os lados. É como quando falo da bossa nova: fico sacaneando o João Gilberto, mas adoro ele, sabe? Só quero dessacralizar um pouco aquilo. Queria mesmo sacanear um pouco o Caetano, aquela coisa muito autoafirmativa dele. O que ele chama de minha libido e força vital é uma coisa em que acredito: o impulso.

Que discos do Lobão você tem, Caetano?

CAETANO Não sei. Você há de convir que, de qualquer maneira, iria haver uma discrepância desvantajosa para ele por causa de eu ser muito mais velho e de ele ter crescido me vendo. O Lobão cresceu, recebeu o impacto do Tropicalismo, ouviu os meus discos, reagiu contra mim, se sentiu negado numa letra de uma canção, achou que eu deveria ter feito coisas que eu não fiz. Mas vou lhe dizer que tenho uma visão, uma ideia do trabalho de Lobão muito vívida e interessante.

“Lembra Nelson Rodrigues? 'Vamos manter o respeito geriátrico'”
Lobão

De Cena de cinema [seu primeiro disco solo, de 1982] e de Me chama, que acho uma obra-prima. Disse outro dia no jornal, negando ele próprio, que vendia nas bancas, comprei e gostei muito. A vida é doce. Esse disco tem som! E essa música que você fez para mim. “Para o mano Caetano” é linda. A letra é espetacular, fiquei emocionadíssimo.

LOBÃO Que bom [sorri agradecido].

CAETANO A Paula [Lavigne, mulher de Caetano] ficou rindo de mim porque chorei um pouquinho. Ela falou: “Era só o que me faltava agora, você chorando por causa de uma música de Lobão”. [Risos.]

LOBÃO Acho muito bacana.

CAETANO Mas tem uma coisa linda na letra de “Me chama” que o João limou: [a expressão] “Mágica no absurdo”. É di-vi-na. O João limou porque é radical bossa nova e tem coisas que ele não diz. Mas é tão lindo o que ele fez que está tudo incluído, entendeu? Em “Sampa” também: a letra original é “ergue e destrói” e ele diz “faz e destrói”. “Ergue” é uma palavra muito pouco fluente para entrar numa canção, assim, na dicção da canção como ele imagina. Mas o João é surpreendente, merece toda sacralização.

LOBÃO Na verdade, nunca me liguei muito no fato [de João Gilberto ter omitido o verso]. Usei isso mais para fazer uma certa picuinha. Porque, apesar de ter dito que já me curei daquela coisa de ser uma pessoa reativa, acho que o humor... você pode provocar certas coisas, é algo de que nosso meio está precisando.

CAETANO Lobão, vou te dizer uma coisa que explica por que sempre simpatizo com suas reações, apesar de muitas vezes até reprovar. É que eu, quanto a isso, sou o oposto de você. Sou um dos maiores responsáveis por uma questão que no Brasil é motivo de orgulho, mas que pode ser acusada de uma insalubridade do ambiente: a aprovação geral que os artistas brasileiros têm um dos outros. Isso é muito bonito, invejado por estrangeiros, mas tem um aspecto perigoso.

LOBÃO É como se fosse uma ética profissional, né?

CAETANO Quase vira corporativismo. Pode ser uma coisa que não é boa. O meu primeiro disco tropicalista é dedicado ao João Gilberto. Tanto que todo o pessoal da bossa nova reagiu contra e detestou, menos o João. Ao contrário, ficou feliz da vida.

LOBÃO Mas ele é um ser lúdico. O João Gilberto parece que tem a delicadeza de uma criança que está sempre entre o sono e sonho.

CAETANO Mas ele é muito violento também. E, agora, você lê o crítico do New York Times dizendo assim: “João Gilberto e Frank Sinatra são os dois maiores cantores do mundo e talvez o João seja ligeiramente superior”. Tem que ser um monstro pra fazer isso, não pode ser delicado nem bonzinho. Eu defendo o João no que ele tem de diabólico, monstruoso.

Lobão, parece que sua relação com a música brasileira mais consagrada é semelhante àquela freudiana com o seu pai: é um respeito e, ao mesmo tempo, uma necessidade de enfrentamento.

LOBÃO Talvez, meu lado tenso em relação de que decodifique como impotência criativa as pessoas falarem assim: “Porra, mas que legal esse papauerará [imita som vocal de bossa nova]”. Ô, amigo, acorda! A minha geração tinha que dar um grande pulo, e era disso que eu falava com Cazuza, o Renato [Russo]... Tínhamos posições muito divergentes de vocês. Mas eram sempre referenciais interessantes para a gente trocar.

Como você sentiu quando ouviu “Rock'n'Raul” pela primeira vez? 

LOBÃO Ouvi “Rock’n’Raul” quando a gente estava no Jô [Soares]. Fiquei muito aflito porque a gente tem um ponto de vista parecido nessa cosia do querer ou não ser americano. Mas achei ambíguo [na letra] ele se colocar como qualquer Caetano, qualquer Zé Mané, e eu sou o “lobo bolo”. Lobo bolo por quê? Pra rimar com “Ouro de tolo” [célebre canção de Raul Seixas].

CAETANO É, pra rimar com “Ouro de tolo”.

LOBÃO Eu me senti naquele momento assim: porra, estou fazendo discos de música popular brasileira! Nesse momento, o Jô Soares ainda falou assim: “Pô, mas você não faz rock?”. E eu: “Não se grila, não, Jô. Rock é legal, mas não é isso, não. É mais complexo do que isso”. Então, o que acontece? Eu mesmo digo que faço rock’n’roll há um tempão e, ao mesmo tempo, vejo que é um dilema. A gente vê, desde Ernesto Nazareth a Chiquinha Gonzaga, todos eram criticados por estar imitando Chopin, imitando não sei quem. Mas a arte que o Brasil faz, a nossa grande virtude, é justamente metabolizar isso para uma outra coisa.

E como a expressão “Lobo Bolo moveu você a compor uma música?

LOBÃO Eu queria fazer uma canção de amor para o Caetano. Eu fazia e achava piegas. Às vezes sonhava, escrevia. Ou para o [Gilberto] Gil também…

CAETANO Ele tem sorte de eu não ser ciumento [risos].

LOBÃO Uma vez, o Gil me convidou pra fazer uma coisa juntos no Hollywood Rock. Eu tinha recentemente falado mal do Caetano ou do Gil. Aí, toca o telefone, era ele: “Pô, Lobão, você ficou falando mal da gente outra vez?”. E eu: “Pô, Gil. Isso é uma maneira de homenagear vocês. Vocês ampliaram tanto a liberdade de expressão, estou mostrando que aprendi”. Sempre falei isso para o Cazuza.

CAETANO “Todo amor que houver nessa vida” [Canção de Frejat e Cazuza que Caetano gravou no disco Totalmente demais, de 1986] é muito bonita…

O Cazuza era outro que tinha relação tumultuada com você, não, Caetano? Até houve episódio da briga no Baixo Leblon. 

CAETANO Mas aquilo foi um episódio. Cazuza estava mamado, tinha bebido pra caramba e estava brigando com um namorado dele, o Serginho. Fez uma cena, saiu da mesa, sentou sozinho e pediu um espaguete com creme. Quando o garçom botou, ele fez assim [faz gesto de quem vira o prato na mesa]: plaft! Ficou sentado, com aquela mesa imunda, o espaguete todo esparramado. De repente, saiu e fez que ia embora. Mas veio pela rua e virou a mochila para picar na cabeça do garoto. Puxei o garoto para defender. Foi a grande sorte, porque a mochila tinha, entre outras coisas, uma garrafa de uísque daquelas quadradas, cheia. Aquilo bateu na minha mão e meu dedo ficou inchado. Mas não havia nem ciúme nem desconfiança.

Voltando a outra “briga’: o que você quis dizer com o “Lobo Bolo” na letra, Caetano? 

CAETANO Nada. “Lobo bobo” é o negócio da bossa nova e “lobo bolo” rima com “Ouro de tolo”. Queria mencionar o Lobão assim, de raspação. É uma letra de rock’n’roll, com flashes, sem aquela lógica intricada de uma letra de Chico Buarque. Ali é uma colagem. Letra de rock você sabe como é, “mágica no absurdo”.

Você ficou na dúvida se aquilo era homenagem ou crítica, Lobão? 

LOBÃO Não.

CAETANO Também me perguntaram por que digo que “a verdadeira Bahia é o Rio Grande do Sul” – os gaúchos, uns meio honrados e outros muito desconfiados. Por quê? Porque Rio Grande do Sul rima com Raul.

Mas não é só isso.

CAETANO Claro que não! Se o Rio Grande do Sul não fosse o Rio Grande do Sul e o Lobão não fosse o Lobão, eu não iria aproveitar essa gracinha. O negócio é mais rico, mais sério. O Rio Grande do Sul está longe, eles pensam que talvez queiram se separar do Brasil, que talvez não sejam o Brasil. Mas, ao mesmo tempo, é uma situação especial e interessante, porque eles têm governo do PT e querem ver se fazem disso uma experiência que conduza o Brasil. O avesso da fantasia separatista do Sul é justamente essa vontade intensa de ser mais nitidamente o Brasil do que todo o Brasil. Entendeu? 

E por que falar do Lobão nessa música, Caetano?

CAETANO O “Lobo Bolo” tampouco é uma mera rima. É a coisa do ouro de tolo. Porque eu falo nos manos, nos rappers, que dão continuidade a essa necessidade, em grande parte muito saudável, de reproduzir a experiência norte-americana no Brasil. Ou seja, de segurar aquela bandeira.

LOBÃO Esse é um momento muito esquisito. Porque entendo e, ao mesmo tempo, não sei se gosto.

CAETANO É algo necessário por um lado e inevitável por outro.

Você acha que o Lobão resolve esse jogo?

CAETANO O Lobão representa um ponto na geração dele – o ponto em que isso aparece como problema. Porque ele é da geração do rock dos anos 80, mas é o único que a problematizou. Ele foi a crise permanente dessa geração. Então, no “lobo bolo”, o bolo da geração 80 é representado pelo Lobo. Eu não podia perder, sou um poeta. Isso é coisa de poeta.

Lobão, quando você ouviu a música pela primeira vez, no Programa do Jô, ficou desconfiado dessa “homenagem”?

LOBÃO Fiquei prestando atenção. É um texto ancorado, cheio de coisas esparsas, que você não entende o significado de imediato. Fiquei olhando pra Regina [Lopes, esposa e empresária de Lobão], para o Caetano e para o Jô. Então, estava meio grilado, desconfiado. 

CAETANO Você fala na letra da sua música “tease me, tease me”. Se sentiu instigado. Eu vi na cara, na hora. Mas, depois, o comentário desmereceu: “Só pra rimar com ‘Ouro de tolo’?” Está certo, é procedente, porém é um comentário sacana. Um sujeito que faz letra de rock’n’roll não deve se espantar com essas coisas.

LOBÃO [Levemente irritado] Pois é, mas o problema é esse, Caetano. Será que sou “um sujeito que faz letra de rock’n’roll”?

CAETANO [Rapidamente] Você também é um sujeito que faz isso. Não que seja isso. Quis dizer um sujeito capaz de fazer letra de rock‘n’roll.

LOBÃO Mas eu não sei o que é uma letra de rock‘n’roll…

CAETANO [Impaciente] Esses aspectos de ser flash, de aparentemente não ser pensada, espontânea mas com muita força. Existe uma estilística do rock‘n roll, que você percebe desde Chuck Berry até o Nirvana.

Qual foi o trecho da letra do Lobão que emocionou você, Caetano? 

CAETANO O trecho que diz: “chega de verdade”...

LOBÃO [Completa, sorrindo] ... “viva alguns enganos”.

CAETANO Achei isso tão profundo, tão certo pra mim e pensado! Fiquei impressionado. O trecho é bonito e bem escrito. Então, quando recebi o CD e botei em minha casa, fiquei emocionado ao ouvir as primeiras palavras, o ritmo, a presença do maracatu… E a letra toda, o jeito como ele canta. Isso é, como eu tinha dito, o melhor do Lobão.

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Por que o “chega de verdade” tocou você desse jeito?

CAETANO Pensei numa pessoa falando comigo. Esse “chega de verdade”, pô, como isso sintetiza tudo! Diz muito a respeito da minha biografia pessoal e artística. O “Chega de saudade”, do João Gilberto, foi um marco que mantenho como paradigma. E essa minha ânsia permanente de manter a transparência, uma honestidade pública, é um negócio sacal. Isso já não é sinceramente. Aquilo falou comigo. Estou falando do meu modo de ser, que resulta na minha vida pública através dos meios de comunicação. Não vou mudar. Eu sou eu, mas posso melhorar. Senti que ali tem um comentário crítico que é profundo e realmente precisava ser dito a mim. As questões que Lobão levanta… Naturalmente, tenho resposta pra isso tudo. Posso responder, tim-tim por tim-tim a todos os itens do Lobão. Mas, chega, de verdade [risos].

Responda então a quatro estrofes: “Minhas narinas ao relento,/ Cumulando de bundões que por anos acalento./ Estes sim, um monte de Zé Mané,/ que sob minha égide se transformam em gênios”.

CAETANO Nesse momento ele usa, como eu em “Rock’n’Raul”, a primeira pessoa – como se fosse eu falando. E aponta para um negócio que talvez seja a pior parte do artigo que você escreveu no Globo. Ali você diz que eu chamei alguém de gênio.

LOBÃO Foi o Orlando Moraes [músico goiano casado com a atriz Glória Pires]

CAETANO O Orlando Moraes! Que eu nunca chamei de gênio!

LOBÃO Então foi um boato. Mas achei tão engraçado…

CAETANO Nunca chamei Orlando de gênio, nem privadamente nem pra ninguém.

LOBÃO Mas isso é apenas um apêndice.

CAETANO Mas na letra é como se você estivesse dizendo que eu chamo várias pessoas de gênio imerecidamente.

Faz pensar no fato de que você é uma espécie de embaixador de vários músicos baianos, muitos deles contestados pela crítica.

CAETANO Nem me ocorreu que pudesse ser isso. Tenho o Lobão em mais alta conta. Liguei a coisa ao fato de eu dizer que gosto de axé music. Daniela Mercury, Timbalada. Adoro os fenômenos comerciais e de mercado. Acho o show de Sandy e Júnior extraordinariamente bem-acabado, ela é afinada e aquilo, profissionalmente, é uma coisa muito boa para a indústria da música popular no Brasil. E tenho a impressão de que o Lobão está acima dessa gente imbecil que critica isso.

LOBÃO Mas eu não gosto [de Sandy e Júnior].

CAETANO Mas a questão não é gostar disso ou daquilo.

LOBÃO Ele [Caetano] pode ter total direito de pensar isso sem que eu fique indignado. Mas não concordo. Tenho horror quando vejo Sandy e Júnior, acho aquilo horroroso! É como heavy metal, caralho!

CAETANO Mas eu gosto de heavy metal.

LOBÃO Eu não gosto. Toquei muito antes, quando gostava de Black Sabbath.

CAETANO Eu gosto, mas não é o que mais gosto. Gosto mesmo é de João Gilberto.

LOBÃO Veja só, quando digo isso, falo sobre um movimento comportamental. Acho que o Brasil ainda vai estar escutando heavy metal daqui a cinco anos. Uma coisa muito esquisita.

Caetano, no show você emenda “Dom de iludir”, sua canção inspirada em “Pra que mentir”, de Noel Rosa, com “Um tapinha não dói”, da funkeira Mc Beth. O que você queria com isso?

LOBÃO [Interrompendo] Realmente existe um preconceito contra o funk carioca que é uma coisa esquisitíssima, né? Pô, o É o Tchan fala de boquinha da garrafa… Qual a diferença com a enfermeira?

CAETANO O tapinha eu boto no final, como um apêndice do “Dom de iludir” – que é uma canção transfeminista.

LOBÃO Transfeminista é ótimo [risos]. Você acha que “Dom de iludir” tem o mesmo impacto ambíguo do “Tapinha não dói”, já que, na verdade, quem está arbitrando é a mulher.

CAETANO Exato. A mulher é quem está dizendo ao cara [pra dar o tapinha]. A canção fala: “Você diz a verdade”. Está vendo? Chega de verdade. Olha aí, até isso esclarece um pouco o conselho do Lobão pra mim. Veja como calou fundo: não estava nem me lembrando que na letra do “Dom de iludir” a mulher diz isso pra mim. Então, muda o ritmo e eu canto o refrão de “Um tapinha não dói”, vou dando aquelas paradas e termino dizendo “dói”, um longo “dói”, um tapinha “dóóóói”! O resultado até seria feminista, se não fossem as vaias. Vaiam o funk só por ser funk.

A propósito: no primeiro ensaio aberto do seu show, você respondeu às vaias dizendo que o público parecia o Conselho de Ética do Senado. Deu a impressão de ser um contraponto favorável a Antonio Carlos Magalhães.

CAETANO Favorável ao Antonio Carlos?

Você disse à plateia que ela vaiava como o Conselho de Ética do Senado. Fica um paralelismo aí, como se os dois fossem patrulheiros: tanto a plateia em relação ao funk carioca quanto a comissão de ética em relação ao ACM.

CAETANO É um bom paralelo esse, não tinha pensado. Só que vamos nos lembrar de uma coisa: o ACM não estava sendo julgado sozinho. Não é porque eu sou baiano que tenho que responder por ACM. Sou um homem adulto e livre. Me respeitem! [Irritado] Por que você não pergunta se falei aquilo por causa do José Roberto Arruda? Eu não era até anteontem do governo FHC, mais ainda que o [jornalista Arnaldo] Jabor? 

LOBÃO [Rindo] Mais que o Jabor é ótimo…

CAETANO Quando o Jânio de Freitas me apoia [em sua coluna 3/6/2001, na Folha de S.Paulo] é porque pensa que estou contra o Fernando Henrique, e mais próximo, como ele, de Antonio Carlos Magalhães! Minha vida não é isso não, bicho! Se falo “vem cá, mas aqui tem uma Comissão de Ética?”, quer dizer que estou sendo julgado eticamente como os senadores [enfatiza o “s”]. Porque não foi um só. Que história é essa? Vocês querem forçar. O que vi de gente na imprensa se expressando contra mim! Desonestamente, todos de antemão pressupondo e torcendo pra que eu estivesse apoiando o ACM. Só pra poder esculhambar comigo. Essa é que é a verdade.

A imprensa tem má vontade com você?

CAETANO Sem dúvida. Nesse caso, não só comigo, mas em relação a todo um quadro de ideias, um mundo de cosias que vendem e fazem os preconceitos desembestarem. [Nervoso] O que queria que eu fizesse? Que telefonasse dizendo: “Boa tarde. Aqui é Caetano Veloso. Desculpem, eu não tenho nada a ver com Antonio Carlos Magalhães mandar abrir o painel de Senado”? Pelo amor de Deus, me respeitem! Não tenho nada com isso. Até esta entrevista, eu nuca antes dito que Antonio Carlos Magalhães era bom administrador. Nunca. Nuuuunca! Foi a primeira vez. Disse porque sou honrado e corajoso, ele estava em desgraça naquele momento e eu não queria fazer a gracinha para essa gente que queria que eu fizesse. Mas também não deixei de dizer que ele fez por merecer aquilo por que estava passando.

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Mas você não esperou tempo demais para se posicionar sobre isso?

CAETANO Quando me perguntaram, respondi o que tinha que responder, na medida certa. Mas não fazendo o número: “Agora vou meter o pé em Antonio Carlos Magalhães e esculhambar com ele”. Por quê? Eu nunca o apoiei, apoiei Waldir Pires. Agora, vou lhe dizer, Antonio Carlos Magalhães é um grande talento político. É como dizer que Sandy é afinada, entendeu?

Mas você acha que esse “talento político” é suficiente para o papel que ACM representa no Brasil?

CAETANO Foi muito suficiente para o que ele vem representando. Tanto que ele se manteve no poder. Salvador elegeu Lídice, e uma capital que elege Lídice não ia estar com essa simpatia toda por Antonio Carlos Magalhães. Nem estado que elege Waldir Pires, Antonio Carlos foi lá embaixo.

“Nunca pedi nada a ninguém, não quero ser famoso, rico, porra nenhuma”
Caetano Veloso

Mas o Waldir Pires e a esquerda baiana entregaram a Bahia de volta na mão dele, de bandeja. Quando chega nessa hora, vem todo mundo em cima de mim, umas pessoas completamente desmoralizadas, jornalistas cujas biografias não merecem o menor respeito, e escrever no jornal: “É muito curioso ver o silêncio dos baianos. Caetano Veloso…”.

No entanto, faz tempo que você vem sendo associado ao ACM. De onde acha que vem essa identificação? 

CAETANO Vem de quem quer dizer. Porque sou baiano, ele é baiano e as pessoas querem que a gente seja o papagaio deles. Que eu seja repetidor dessa oposição de esquerda muito mal articulada que existe no Brasil. Que nada propõe. Ou a gente repete os preconceitos deles ou está contra. Eu nunca repeti. [Dispara] A esquerda me vaiou o tempo todo durante os anos 60, fui preso pela ditadura militar de direita debaixo da vaia da esquerda. Saí, fiquei exilado dois anos e meio e, quando voltei, no dia que eu botei o pé no Brasil, O Pasquim já começou a meter o pé em mim. Em nome de uma posição de esquerda que eles queriam que eu assumisse. E eu não me assumo! [Furioso] Não sou obrigado a ter uma opinião que alguém quer que eu tenha. Tenho minhas próprias e sou responsável por elas. Quem não aguentar que vá à puta que pariu! Isso veio porque veio. Se viesse outra coisa, eu enfrentava da mesma maneira, tentaria ser feliz do mesmo jeito. E quem não quiser vá tomar no cu. É só o que eu tenho a dizer ao povo brasileiro, à oposição e à puta que pariu.

Lobão, a letra da sua música também faz uma associação entre Canetano e ACM: “Um beijo no seu lado superbacana/ Um borracha no dark side-macbeth-acima, por enquanto”.

LOBÃO Não. Eu falo do ACM porque vivi um episódio pessoal lá na Bahia. Cheguei para dar um show e tinha duas câmeras. TV Aratu e TV Bahia, transmitindo ao vivo. Aí falei, muito cara de pau: “Qual das duas o Toninho Malvadeza pagou?”. Nesse momento, pessoas amigas e populares falaram: “Você vai morrer”. Na hora do show houve uma vingança: não havia policiamento. Ele [ACM] deve ter tirado o policiamento, ficou satisfeito e ponto final. Outra coisa que me deixa grilado: teve uma época em que se a gente ia para a Bahia e só podia fazer show abrindo para o Asa de Água, Chiclete com Banana, essas coisas…

CAETANO Eu abri também, para a Ivete Sangalo.

LOBÃO A minha postura naquela época era assim: “Porra, não vou”. Não conseguia entender direito aquilo, achava impositivo.

CAETANO Mas é uma coisa que você aceita ou não. Ao Rock in Rio, por exemplo, eu nunca fui. Desde o primeiro, me recusei. Embora não veja problema que as pessoas façam.

LOBÃO Você tem uma coisa que acho muito legal, e não tenho. É esse lado mais relax, uma visão tranquila em relação a certas coisas, como o negócio da Sandy e Júnior. Ok, ela canta bem, mas eu fico: “Não é possível, imagine se fosse minha filha, que terror!”. Eu fico muito: “Porra, essa Xuxa, que merda! Isso é genocídio!”.

CAETANO Mas é bacana a pessoa que reage, Lobão. Você tem que entender o seguinte: quando reclamo, não reclamo contra esse tipo de reação – que, muitas vezes, é de sobrevivência. Você sente que, se permite que as coisas caminhem daquela maneira, o mundo como você aceita será esmagado.

LOBÃO Se tornará inviável.

CAETANO Inviável. Agora, você quer ver uma coisa? Nos Estados Unidos, num jornal grande como o New York Times, Herald Tribune, Wall Street Journal, Washington Post ou Los Angeles Times, se você escreve na página de música que o imbecil do Ray Charles é “intolerável”, o editor bota você na rua. Aqui, não. Escrevem: “O Chico Buarque é um chato, mas o Caetano é pior”. A crítica do disco do Chico Buarque na Folha de S.Paulo me xingava o tempo todo.

LOBÃO O interessante é que lá tem um conflito de ideias muito maior.

CAETANO Aqui, parece que é liberdade, mas é uma vontade de criar prisões de segurança máxima, ilhar as pessoas. Lá nos Estados Unidos, se o filme Titanic, aquele abacaxi imenso com o pessoal assim na proa [imita Leonardo di Caprio de braços abertos], aquele pôr do sol horroroso e aquela música intragável cantada por aquela mulher chata, vende 1 trilhão no mundo inteiro, veja se a imprensa esculhamba com aquelas pessoas! Nada, eles são americanos, não vão matar o país deles. Agora, aqui, qualquer episódio de mercado bem-sucedido, pagode, Sandy e Júnior, axé, o que for, tem que ser estigmatizado pela imprensa. Sou contra isso. Acho um emburrecimento total. A pessoa vai ao Canecão, vaia o tapinha e pensa assim: “Sou inteligente, aplaudi tudo, achei tudo chique, mas vaiei o tapinha”.

LOBÃO Não teve nexo a forma como a sociedade rejeitou o tapinha.

Você gosta do tapinha, Lobão?

LOBÃO [Sem jeito] Olha, cara, é engraçado. O funk já tem 28, 30 anos no Brasil. As pessoas se esquecem disso. Na Baixada Fluminense, o primeiro baile funk foi em 1970, com Ademir e Big Boy, o Baile do Grilo. Na época de “Vida bandida”, a gente ia para a Baixada Fluminense e fazia seis playbacks por noite. E o que eu vi na noite foi que as pessoas gostavam de mim porque eu tinha sido preso, mas a música que eles curtiam era completamente diferente, e muito mais legal.

Então você gosta do funk?

LOBÃO Estou falando isso, mas é uma adaptação para as pessoas de classe média entenderem. Porque elas ouvem aquela voz [imita o canto das funkeiras] lá, lá, lá e não gostam. Mas não relacionam isso com o samba, a cantiga, todas aquelas coisas que formam o universo do folclore. Antigamente não cantavam “sambalelê tá doente”? É a mesma coisa. Claro que, no início, senti um choque. Mas percebi que eles [os funkeiros] importam a coisa eletrônica, mas incluem negritude, que é o som grave, o “chão”. Coisa que o Olodum, que eu adoro, também faz. Cantei na praça Castro Alves com eles e foi impressionante.

Já que você falou em praça Castro Alves, só para encerrar o assunto ACM definitivamente: você acabou não respondendo se fazia essa aproximação equivocada entre Caetano e ACM.

LOBÃO Eu não acho, não. A letra é assim: “Um beijo no seu lado superbacana e uma borracha numa especulação”. Assim como falei do ACM, falei do Victor Mature, do Glauber Rocha, do Barravento, uma série de coisas que estão dentro daquele universo.

CAETANO Acho que você botou essa coisa meio inopinadamente. Algo que você vê como o lado escuro da baianidade.

LOBÃO É verdade. De maneira nenhuma eu iria colocar uma coisa assim tão explícita. É um cenário do império do medo, aquela coisa do Antonio Carlos.

CAETANO A lembrança do Macbeth eu achei bonita. 

LOBÃO MC Beth.

CAETANO Macbeth. MC Beth… Isso é o máximo, genial.

Houve um episódio sintomático durante a gravação do Video Music Awards, da MTV, em 1998 os Racionais MC's, que não são muito afeitos a aparecer na mídia, foram à televisão e houve um mal-estar entre eles e Carlinhos Brown, o mestre de cerimônias da noite.

CAETANO Era visível.

Ficou clara, talvez, essa oposição de que vocês estão falando. Carlinhos Brown chegou a falar que os Racionais eram sectários, tinham uma pregação negra muito oposta à dele, que é mais integradora. Você nota essa diferença?

CAETANO A diferença foi visível na hora. Eu sentava na plateia e aquele foi um momento de grande importância pra mim. Sinceramente, me lembrei de “Sampa”, cuja letra diz, falando de São Paulo: “Túmulo do samba, mas possível novo quilombo de Zumbi”. O possível novo samba, mas possível novo quilombo de zumbi eram os Racionais. “E os novos baianos te podem curtir numa boa”, era o Carlinhos Brown. Essa tensão entre duas posições era muito bonita, e foi vivida como representação no palco por ambas as partes.

Qual das duas visões você acha mais viável para o problema racial no Brasil?

CAETANO Acho que a tensão entre elas é que nos diz alguma coisa. A gente não pode abrir mão de nenhuma das duas, não pode se dar ao luxo disso.

LOBÃO E vai ter sempre muito atrito. Os Racionais são uma coisa que fascina.

CAETANO Sobrevivendo no inferno é um dos discos mais importantes que saíram no Brasil.

LOBÃO É acachapante, da minha geração e uma coisa absolutamente linda da periferia, poeticamente inspirada, forte. É uma revolução cultural violentíssima, uma ferida que está aberta e um ponto de vista que a gente ainda não tinha enxergado. E poderia nos causar aflição por parecer uma rapinagem cultural, uma coisa semelhante ao rap americano.

Os Racionais representam uma integração da periferia à cultura brasileira. Vocês dois têm feito movimentos de aproximação com um público maior, seja Caetano dando um show com ingressos a preços populares, seja Lobão vendendo CD em banca de jornal. Existe um interesse de vocês em se aproximar desse público?

CAETANO O negócio do ensaio aberto a gente não tinha planejado. Foi uma solução que Paulinha encontrou porque nossos ensaios estavam atrasados e o contrato com o Canecão estava fechado. O público que foi é muito mais animado, dá muita gente jovem, mais pobre. Agora, interesse em reconhecer que as camadas frequentemente alijadas da opinião no Brasil estejam agora botando as manguinhas de fora, ah, isso tenho. E espero que o Lobão também.

LOBÃO Claro.

CAETANO Isso é de suma importância e é isso que aborrece muita gente. A reação contra o funk, o axé, Sandy e Júnior, contra os programas de televisão popularescos é pavor da elite brasileira, que foi muito pequena desde as capitanias hereditárias e não quer saber do resto da população. A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil – coisa que o Joaquim Nabuco escreveu no século 19 e ainda é nova pra nós hoje. Mas está posta em discussão prática e guerra pública. Essas pessoas não estão mais escondidas: elas consomem, produzem e têm um mundo que precisa se expressar, às vezes com grande classe e consciência, como é o caso dos Racionais MC´s: às vezes na mais solta espontaneidade e ingenuidade, como é o caso do funk carioca; às vezes no meio-termo da mera expressividade, como é o pagode ou a axé music. Aí, tem uma coisa interessante para comentar com o Lobão. Grande parte dessa “crítica” contra o “lixão cultural” que esse pessoal considera se apoia numa espécie de ortodoxia do rock’n’roll. Um negócio brutal!

LOBÃO É horrível isso.

CAETANO Se você lê a vida de Little Richard, de Elvis Presley… Eu me lembro dos anos 50, quando o rock apareceu. A reação contra ele era exatamente igual a essa que se tem contra MC Beth. Para dizer o mínimo. Porque aquilo era lixo, lixo do mais espantoso mau gosto: Elvis com aquela costeleta, roupa preta e cor-de-rosa de cetim, dançando daquele jeito, era o cúmulo do cúmulo da vulgaridade. Numa épca em que se ouvia Sarah Vaughan, Frank Sinatra, Chet Baker, aquilo era muito comercial, de mau gosto. Todo o mundo achava isso.

LOBÃO Acho que o rock’n’roll só se tornou alguma coisa com Bob Dylan.

CAETANO E com os Beatles e Rolling Stones. Quem deu respeitabilidade ao rock foram os ingleses nos anos 60. E, no Brasil, foram os tropicalistas, porque sem eles não haveria Raul. Raul era o máximo, mas ele não teria campo para fazer o que fez sem revolução tropicalista.

LOBÃO Nunca ouvi muito Raul. Achava ele um pouco caricatural.

CAETANO Mas estou falando é da história da respeitabilidade do rock’n’roll. Hoje, é curioso porque as pessoas estão defendendo alguma coisa chique em nome do rock, contra a vulgaridade da música comercial. [Irônico] Give me a break! Me lembro da fase do menino do Nirvana, que acho muito inteligente. “Porra, comecei a fazer rock pra me livrar de um tipo de pessoa que é exatamente com quem tenho que conviver porque me tornei um astro do rock [risos].

Você se sente um pouco como o Kurt Cobain, Caetano, integrado a uma estrutura que antes o afastava?

CAETANO Não, não, porque, quando aceitei e fui entrando, minha vontade era ser um Ari Barroso, um Cole Porter, alguém que faz músicas bonitas.

Ah, era modesto [risos].

CAETANO Não tinha vontade de me livrar das pessoas comuns, dos burgueses. Não tenho problema com essa gente, não.

Você fez um discurso em 1968 em que dizia querer “entrar e sair de todas as estruturas”. Hoje, parece que você entrou na estrutura e está muito sólido ali dentro.

CAETANO [Irritado!] Mas que estrutura é essa? Não me sinto instalado em porra de estrutura nenhuma. Eu não era tão inquieto, me sentia livre dessa porra e continuo. 

Lobão, você falou agora há pouco que acha um genocídio o programa da Xuxa. Já Caetano esteve lá no mês passado, com os filhos.

LOBÃO Olha, a Xuxa sempre me tratou com o maior carinho. Mas, num determinado momento, comecei a verificar que existe uma coisa semiológica perigosa no programa dela. Uma vontade inerente a toda a cenografia, a vontade de um mundo higienizado. Há uma não complexidade da vida e uma competitividade muito exacerbada para as crianças. Já participei do programa e tive que me distanciar, não quero mais, aquilo estava me fazendo mal. No entanto, eu seria o primeiro a defender a Xuxa caso ela fosse censurada, por exemplo. Não estou a fim de varrer ninguém.

CAETANO Não vejo muito problema na Xuxa, mas não sou bom paradigma pra isso. Entendo a reação contra coisas que se afirmam na sociedade e são ameaçadoras da possibilidade de vida tal como alguns indivíduos veem. A gente precisa muito de gente como você, de outros que não são como eu. Mas sinto como se aquilo não me ameaçasse. Uma vez perguntaram a Andy Warhol o que era arte pop e ele falou: “Arte pop é gostar das coisas”. Eu gosto das coisas.

Mas isso não é relativismo demais?

CAETANO Me dou o direito de ser tolerante com as coisas porque sou demasiadamente exigente nas minhas decisões críticas fundamentais. O meu apego a João Gilberto é de grande eficácia e nitidez. A diferença que faço entre ele e as outras expressões esteve sempre dentro de mim com muita clareza. Muita gente que não tem um décimo dessa nitidez crítica fica reclamando contra Daniela Mercury e contra a filha do Zezé di Camargo, mas não sabe direito nem o que quer esteticamente. Então, reajo contra esses pruridos. Mas não sou relativista, e muito menos acho que vale tudo. Sou diferente do Andy Wahrol. Concordo com a frase dele, mas não penso que ela justifica e nivela tudo. Eu ouço o João cantando “Pra que discutir com madame”, penso em quando ele repescou essa música, o que queria com a harmonia, a abrangência…

Essa é justamente uma letra que fala do embate entre alta e baixa cultura no Brasil.

CAETANO Mas é claro! Era uma canção que já existia, mas o grau de profundida e alcance que João deu àquilo é incrível. Aí, uma pessoa diz pra mim: “Puxa vida, você se renova sempre. O João Gilberto está há não sei quantas décadas repetindo o “Pato”. O cara que fala isso é um idiota, precisa calar a boca, não dá nem pra discutir. Então, não respeito essas pessoas porque sou criticamente superior e mais exigente que elas. É isso. [Enfático] Eu gosto de João Gilberto, João Cabral de Melo Neto, do poema de Drummond sobre a morte de Mário de Andrade, de João Guimarães Rosa nos textos mais radicais de Tutameia, Grande Sertão Veredas e Meu Tio Lauretê. Sei do que gosto. Então, tem gente que diz: “Ah, não ouço Daniela Mercury”, mas fica lendo, sei lá, [Paul] Auster, esses escritores americanos, meio lá meio cá. E achando que o filme de Win Wenders é uma obra-prima, que Woody Allen é um sujeito genial. Não sou dessa turminha.

Você não acha Woody Allen genial?

CAETANO Não. Acho Woody Allen engraçado, mas em algumas coisas muito estreito, careta. Valoriza a neurose.

LOBÃO É a carapaça da própria psicanálise, o cara usa aquilo como estudo.

CAETANO Ele tem talento, graça, é bacana. E, depois, é um homem importantíssimo porque, num país como os Estados Unidos, é livre para fazer seus filmes como quiser.

Talvez o Lobão seja hoje um artista livre também.

LOBÃO Eu sou o Woody Allen [risos].

CAETANO É. O Lobão faz as coisas como quer.

LOBÃO Caetano, tu é um cara livre.

CAETANO Eu me sinto livre, porque estou onde quero. Não saí da gravadora porque nunca quis. Nunca briguei com ninguém, não tenho problema nenhum.

Vocês dois, que são observadores culturais atentos, poderiam falar sobre essa mudança da bunda no Brasil? Ela, que sempre foi um símbolo sexual definidor do caráter brasileiro, foi politizada recentemente nessas manifestações dos estudantes contra o governo FHC.

CAETANO É. Eu vi a foto de uma bunda.

LOBÃO Bunda com bunda se paga, de repente é isso [risos].

CAETANO Eu adoro bunda, politizada ou não [risos].

LOBÃO Acho que existe uma coisa puritana contra a bunda. O rock começou com sexo, essa coisa de pélvis. Nada pior do que uma cultura higienizada, porque a grande fonte, o manancial, é o nosso cotidiano. Isso não pode ser extirpado. A gente precisa acabar com essa ciclotimia de gostar de se odiar. O Brasil se detesta.

Há alguns anos você declarou que o Brasil tinha jeito porque você queria, Caetano. 

CAETANO Justamente. Dá jeito porque quero que dê.

Como você está reagindo ao racionamento de energia elétrica, por exemplo? Dizem que está economizando bastante luz.

CAETANO Eu, pessoalmente, economizo muito e faço uma grande campanha com minha família para que eles sigam meus passos.

É como respeitar o sinal vermelho, aquela velha bandeira sua?

CAETANO Não é a mesma coisa, não. Respeitar o sinal vermelho é um princípio total, obrigatório. Isso [o racionamento] é uma questão de não dificultar as coisas. O governo agiu mal nessa história. O que falta ao governo Fernando Henrique Cardoso é profissionalismo, inteligência política. Sinceramente, venho achando isso há muito tempo. 

Mas você não apoiou o governo FHC?

CAETANO Nunca apoiei. Votei no Fernando Henrique no primeiro mandato. No segundo, nem isso. Gosto dele, o respeito, mas acho que ele deveria ter feito só o primeiro mandato e saído bem na história. Tem uma confusão aí desse pessoal de São Paulo, uma doença da USP também: eles pensam que só eles entendem o Brasil e podem resolver. O que é um erro total, uma bobagem horrorosa. Prova disso é que Fernando Henrique caiu nessa situação desastrada, de aparecer naquela compra de parlamentares pra que não saísses a CPI da corrupção. Foi o que parece na imprensa, e nada desmente isso. Eu não simpatizava com a CPI, não acho que devesse sair. Mas não gosto que tenha parecido que, de repente, as pessoas retiraram as assinaturas e verbas foram liberadas. Acho uma coisa feia, nojenta, desagradável, que ele e a equipe dele deveriam ter tido a inteligência de tentar contornar.

O filósofo José Arthur Gianotti saiu em defesa do governo num artigo na Folha de S.Paulo.

CAETANO Pois é, aí vem o Gianotti, que é o filósofo amigo dele, e escreve um artigo que, no fim das contas, era jogar areia entre o êmbolo e o oco da flauta de [filósofo austríaco Ludwig] Wittgenstein, para usar a imagem que o próprio Gianotti escolheu. Tentando explicar que o governo tinha que ter uma área amoral, que entre o êmbolo e o oco da flauta tem que ter uma área amoral. Porra, mas se isso é feito, não deve ser escrito! Fica a impressão de que eles estão dizendo: “Olha, nós somos da USP, filósofos, superiores, entendemos o Brasil, só nós podemos resolvê-lo. Agora, para fazer política todo o mundo tem que sujar as mãos. E somos tão inteligentes que até isso sabemos fazer”. Isso é burrice. E olha que o filósofo que o Gianotti estava citando ali é justamente Wittgenstein, que disse: “Aquilo que não pode ser dito deve ser calado” [risos].

Já que estamos falando de política e comportamento, qual a posição de vocês em relação à descriminação da maconha?

CAETANO Eu sou a favor da liberação de todas as drogas. As drogas devem ser livres e as pessoas adultas devem saber o que querem, podem e devem fazer.

LOBÃO Acho que o governo não pode tutelar a sua privacidade. 

CAETANO E que o desestímulo [às drogas] seja como o que existe para o tabaco e o álcool.

LOBÃO Faz penalizações casca-grossa. É simples: o cara fumou um baseado e cagou na patinete – dá-lhe um corretivo. Fumou e segurou a onda, fica legal.

Mas como seria isso? O melhor é descriminar ou legalizar a droga? E, no segundo caso, o traficante passaria a pagar imposto?

CAETANO Não, não.

LOBÃO Poderia ser, ué!

CAETANO O fato é que não tem esquema pior do que o que está. O preço, o que a cocaína fez com nossas vidas, individualmente com as pessoas que conheço e coletivamente com as cidades onde moro é imperdoável.

Você consome ou consumiu drogas, Caetano?

CAETANO Não, não tomo droga. Quer dizer, tomo droga legal. Lexotan na hora de dormir. Já fumei maconha e tomei ayahuasca [planta alucionógena de origem amazônica, usada em rituais religiosos] em 1967.

LOBÃO Minha mãe achava o Caetano o cara mais doidão da época.

CAETANO Mas eu não me dou bem, não posso. Nas poucas vezes que tentei fumar baseado, entrei em depressão, pânico, sofrimento total. Sou maluco, não dá certo mesmo. Aliás, acho que tem um negócio químico na minha família, porque meus três irmãos e um filho tiveram a mesma reação. Gosto de beber, mas me sinto tão mal na ressaca que acho que não paga a pena. Mas a humanidade sempre teve coisas que mudem o grau de consciência. O homem tem que brincar com esse estar no mundo, tem que ficar testando, botando ele meio longe e meio perto de si. As drogas são o meio pra isso. Essa descrição que fazem de que as pessoas tomam droga pra fugir da realidade acho muito primária, está errada. Porque a vida é difícil, então a pessoa toma cocaína?! Não acredito nisso.

LOBÃO Tomar droga é como ir ao parque de diversões. Você corre aquele risco, é calculado.

CAETANO Quando a gente é criança, a gente não roda pra ficar tonto e ver como é o mundo girando?

LOBÃO É muito parecido com a poesia também, que se apoia no lúdico, parecida com uma brincadeira. Agora, existem, em todas as sociedades, patologias. Quer dizer, o viciado é uma doença social. Agora, se você pegar estatísticas, tem muitas pessoas que experimentaram e não foram parar no fundo do poço.

CAETANO Agora, como organizar as coisas para legalizar o uso? Não sei. Mas levar do jeito que estão levando só faz as coisas piorarem.

Há quem diga que também a mídia funciona como um entorpecente para as pessoas. Você abriria sua casa para a revista Caras, como Caetano fez, Lobão?

LOBÃO Não sei, pô. Acho invasão. Quando me casei, eles foram lá e tiraram fotografias. Deixei. Assim como já fui fotografado por eles no camarim de fulano. Agora, tem coisas que tenho vergonha. Não me sentiria bem numa entrevista, sei lá, no banheiro.

CAETANO Não chegou a ir no banheiro lá na Bahia, não. A gente tirou fotografias na piscina, na sala, no quarto, na sala de ginástica. Foi a jornalista Regina Echeverria, minha amiga há muitos anos, que fez. E o fotógrafo, um sujeito simpaticíssimo, um amor. Mas eu não tinha interesse nenhum na Caras. Acho uma revista simpática porque dá aquelas etimologias [refere-se à seção da revista que trata da origem e da evolução das palavras].

Só você lê essa parte, Caetano! (Risos.)

CAETANO É sério! E publica aquela poesia moderna brasileira, Nelson Ascher, Antonio Cícero… As reportagens sobre pessoas famosas atraem o povo, que compra pra ver como as pessoas vivem, as mansões

LOBÃO É um conto de fadas.

CAETANO Mas não fala mal das pessoas, não tem fofoca. Então é uma coisa frívola, tola. Eu não tinha interesse nenhum naquilo e sempre achei aquelas fotos muito feias, com aquela gente que tem coisas douradinhas dentro de casa, outras com uma caras esticadas… é terrível, hilário. Agora, com a Caras eu falo, deixo entrar na minha casa. A Veja, não. Eu sou mais eu, bicho.

Vocês gostam de ser celebridade?

CAETANO Gosto, mas também adorava ser anônimo. Fui anônimo até os 25 anos e adorava. Depois, morei dois anos e meio em Londres, anônimo e adorando. Eu gosto das coisas.

LOBÃO Desde que me entendo por gente, sou um cara superpopular no quarteirão. Acima disso aí não sei informar [risos].

Para encerrar, uma pergunta que foi feita para o John Lennon naquela célebre entrevista à Rolling Stone: você se considera um gênio, Caetano?

CAETANO [Longo silêncio] Eu não.

E você, Lobão?

LOBÃO [Rápido] Acho que sim [risos]. Sim, ué! Estou falando sério. Eu me questiono sobre isso. Sempre me veio à cabeça a frase do Salvador Dali: “Não sei qual a diferença entre ser gênio e brincar ou achar que é gênio”. Então, nesse sentido, como já tive várias dúvidas se era ou não, concluí que sou, sim [risos].

CAETANO Falei com convicção que não acho que seja um gênio, porque um gênio precisa ter feito alguma coisa que justifique, criar algo excepcional, ter um grau de concentração que chegue a isso. Sou muito disperso para isso. Tenho certeza de que não sou gênio, mas tenho a impressão de que poderia ser, se tivesse me dedicado e se ainda quiser me dedicar – embora já esteja suficientemente velho para talvez desistir de pensar nisso. [Pausa] E isso é a confissão da pessoa mais pretensiosa que existe, o cara que diz: “Não sou gênio, mas poderia ser, se quisesse” [risos].

LOBÃO Só por diletantismo.

CAETANO Lobão, no fundo as nossas respostas eram iguais.

LOBÃO Eram iguais. Ser ou não ser, não é essa a questão [risos].

Créditos

Imagem principal: Bob Wolfenson

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