O jornalista e escritor dispara: “A violência está na essência da sociedade”

(Musiquinha de suspense) O plantão da revista Trip informa: Caco Barcellos tem 58 anos. Como explicar a enxuta cara de 40 e poucos? A inveterada macrobiótica de que é adepto desde 1971, seus tempos de hippie? Não... considerando sua rotina de noites varadas em ilhas de edição, em checagens exaustivas e apurações rigorosas. Possivelmente sua aversão a drogas e álcool desde sempre. Hum... mas trata-se de um sujeito que vive em filas e saguões de aeroportos, em intermináveis dias cavando paranóico uma notícia que ele quer exclusiva no noticiário. Seu futebol religioso há décadas talvez dê pistas sobre o estado de pacata conserva que desfruta beirando os 60. Como assim, se Caco Barcellos é famoso por viver cutucando os mais ferozes vespeiros da violência brasileira? Os matadores fardados na PM e a estrutura do tráfico de drogas.

Seus dois livros campeões de venda, Rota 66 (que apontou em detalhes a ação dos matadores da Rota da PM de SP) e Abusado (em que conta a história do Comando Vermelho pela ótica do traficante Marcinho VP, morto pouco depois da publicação do livro de Caco), lhe custaram anos de investigação espinhosa e sérios boatos sobre juras de morte. Medo? Não é o caso. No fim de quatro horas de entrevista, só uma coisa resume a cara de moço do veterano: é que varando noites ou papando arroz integral, Caco adora tudo o que faz. E, enxuto que seja, as olheiras não mentem: Caco Barcellos é um homem esforçado. Ele sabe disso, uma das coisas pelas quais se gaba sem modéstia.

Modéstia, aliás, é algo que Caco mantém atado ao corpo baixinho. Sabe que precisa segurar o ego ao ser paparicado pelo povo, que lembra de suas matérias ao longo de décadas; ao combinar horário nobre da Rede Globo e prêmios de literatura como o Jabuti pelo best-seller Abusado, não-ficção mais vendida de 2003. Mas domar a ego trip não parece ser lá dos maiores esforços de Barcellos, de alma cicatrizada pela comunidade hippie. Em um arroubo de humildade, tão radical que beira a arrogância, desabafa: “Não há nada maior do que minha ignorância”.

Gaúcho de origem modesta, Claudio Barcelos está na rua desde moço. Taxista, era como se virava para as contas e a faculdade. Foi freelancer, se jogou na América Latina para reportar as guerrilhas setentistas na Nicarágua, trabalhou na Veja e na IstoÉ antes de ser seduzido finalmente pela televisão. Na Globo ganhou fama e uma boa renda, diga-se. Mas, pobre feliz que garante ter sido, nunca perdeu de vista o que mais gosta de fazer: achar na rua histórias de gente sofrida. E bater uma bolinha, pelo amor de Deus.

Vai ver que é isso, então. O tempo passa e Caco não muda. Se diz o mesmo repórter ansioso e com medo de errar do começo da carreira. Com a mesma gana de apontar o dedo para a brutalidade da polícia, dos bandidos e da sociedade que se acha vítima, mas carrega a violência no coração.

Nas palavras a seguir, a segunda Páginas Negras que ele concede à Trip, Caco conta o que aprendeu em quase 40 anos de rua, enfiado nas entranhas da guerra que assusta ricos e pobres do Brasil. Conhece os porões de delegacias e bocas de fumo, promotores e traficantes, pacifistas e matadores. Jura ser avesso ao risco e só não teme uma bala vingativa porque trata com respeito e imparcialidade seus alvos. Sem nunca ter pegado em arma na vida, dispara: “A violência está na essência da sociedade”. Eis o assunto de seu próximo livro, ainda em fase de gestação, muito cru para ser resumido ou ter um título. Só adianta que “é sobre a cultura da violência”.

Hoje as madrugadas de Caco estão condenadas por conta do Profissão repórter, programa que ele mesmo idealizou, em que chefia e apresenta uma jovem equipe de repórteres de TV. Com a inabalável fé na capacidade transformadora da informação, a mesma que, segundo ele, também alimenta a onipresente paranóia urbana, Caco segue de penteado impecável e microfone em punho atrás de histórias. De preferência do povão. Pois bem, o ex-taxista mais famoso do Brasil, aos 58 anos, ainda não deixou a praça.

Por conta do jornalismo investigativo, de descobrir o que os outros querem esconder, você tem muitos inimigos? Eu não sei. Imagino que tenha, considerando o veículo em que eu trabalho, que atinge sempre muita gente. Deve ter muitas pessoas irritadas. Mas, se você estiver um pouquinho mais atento, vai perceber que, de cada dez matérias, talvez oito sejam o olhar da vítima, de quem sofre, mais do que apontar o dedo para quem cometeu aquele dano. Tem colegas que fazem o oposto, não é?

E por que você não se interessa tanto por ir atrás do algoz? Não acha que isso seria mais útil? Primeiro eu tenho um problema com juízo de valores. Eu já acho que o cara que é um bruto é uma vítima também de alguma coisa. É tão estúpido que ele sofre também. Procuro buscar mais o contexto, as nuances. Tudo sempre é muito complexo quando envolve gente. O pai alcoólatra geralmente é um cara generoso. Bebe e perde o equilíbrio.

Mas eu estava falando mais em termos gerais, econômicos talvez. As pessoas e os mecanismos que são os grandes causadores de injustiças sociais. Em geral não é uma coisa que chega à grande mídia. Hoje é melhor, antes chegava menos ainda. Agora tem uns trabalhos legais, fortes, denunciando gente poderosa. Também há coisas muito boas no Ministério Público, na Polícia Federal, que a gente não via no passado. Como gente poderosa na cadeia.

O país está melhorando? Sim. Existem evoluções. Já na polícia, que lida mais com os pobres, aí o bicho pega ainda. Por exemplo, veja o caso da menina Isabella. Tem uma ação brilhante dos policiais. Mas a pergunta importante é: por que eles não trabalham sempre assim? Por ano, em São Paulo, 350 homicídios são arquivados por absoluta falta de investigação. Como é possível? A mesma polícia, a mesma cidade...

Mas não tem a ver com mídia também, com a comoção pública, a exposição do delegado? Eu acho que é preconceito de classe. Mas claro que às vezes a imprensa provoca esse interesse. Nesse sentido, a polícia é muito um reflexo da sociedade, ela reage como a sociedade reage.

A mídia cobre violência com exagero e ajuda a criar uma paranóia desmedida? Ver o noticiário vespertino dá a impressão de que tem um tiroteio em cada esquina. Alguns veículos sim. Mas em relação aos últimos 20 anos, hoje o assunto é tratado com nobreza. Repórteres de talento, com contexto, estatística adequada. Uma palavra fora de moda, mas atualíssima e necessária, é contexto. Se você põe as coisas dentro de um contexto, você não corre esse risco de falar de maneira exagerada de uma coisa que não tem relevância pública.

Mas mesmo no caso Isabella? A gente precisa realmente saber em que cadeira sentou o escrivão do caso? O caso da Isabella tem esse componente da cultura da violência. Eu acho que a polícia nos ensinou a pensar, o que é um grande erro, que, quem morre, morre porque deve. Coisa da cultura do esquadrão da morte, “estava no lugar errado na hora errada”. E, no caso dessa criança, Isabella, você não podia culpar a vítima. É uma inocente de 5 anos. A segunda coisa: família de classe média, com o pé no direito. Então a polícia não podia usar os métodos que usam contra os pobres, que não é de investigação e sim de tortura.

Você acha que a gente vive em um país que tem mais medo hoje do que quando você começou a ir pra rua? Sem dúvida. Na minha geração tinha aquele medo próprio da ditadura, mas em um segmento específico da sociedade. Hoje é muito mais intenso esse medo, mas não só pela violência, mas também pelo medo de acidentes, de tragédias. Acho que talvez a gente tenha causado esse mal. Uma mídia mais avançada, veículos dinâmicos... Hoje a CNN instantaneamente está com a câmera aberta antes de a bomba cair, gráficos e dados sobre todo tipo de doença, acidentes, tragédias. Isso aumenta a tensão em todo mundo.

Informação aumenta nosso medo? Quando as pessoas estão mais bem informadas sabem o risco que elas estão correndo. Antigamente você ouvia dizer que morreram 20 mil, e era um número. Agora você tem a imagem. E ao vivo... Cai um avião e quantos celulares registram a queda? Eu nunca tinha visto isso até 2006, quando caiu o avião da Gol. Hoje os computadores, aqueles programas, reproduzem os instantes finais. E põem o conteúdo sonoro da caixa preta, o cara gritando... você se imagina dentro.

Você se sente nessa paranóia ou fora dela, por ser da mídia? Me sinto inferiorizado mesmo [risos]. Se antes eu me achava perto do nada, agora estou quase no nada absoluto [risos]. Acho que dá uma sensação da consciência da nossa falta de importância.

Mesmo sendo visto por milhões de pessoas? Sim. E é fascinante fazer isso, eu adoro. Mas faz bem ter essa consciência, assim a gente interfere menos nas coisas que cobre.

Então, fora criar mais medo... O que seu trabalho acrescenta para o mundo? Eu tento não causar histeria, tento hierarquizar, separar uma coisa da outra. É quase dizer assim: “Você está assustado, mas cuidado. Tem um serial killer solto por aí, mas o risco de você morrer é muito maior se você brigar com o vizinho...” [risos].

Então é criar uma paranóia informada, a paranóia certa... [Risos] É, sinta medo, mas com coisa certa [risos]... não perca tempo com medos indevidos.

Você se preocupa muito com sua audiência, com a opinião do espectador? Audiência sim... quando você escreve para uma revista, quer que a revista venda, quer que tenha gente lendo, né? Mas quanto à opinião das pessoas mesmo... A gente tem a crítica nossa ali dentro, que já é bem dura. Da nossa equipe em primeiro lugar. Depois as opiniões internas são importantes, porque são pessoas que fazem televisão. Mas na rua... na rua é legal. Essa é uma avaliação de que eu gosto, até porque na rua o leque é bem amplo. Você não imagina o que pode ser do interesse de uma criança ou de uma senhora bem idosa...

Profissão Repórter é um projeto seu? A idéia de fazer é. Agora, quando você coloca sobre a mesa, aí é tudo coletivo. E veio de uma necessidade. Eu estava sempre envolvido com outras histórias e sempre preocupado em ouvir todos os lados, fazer algo equilibrado. Aí eu pensei... “Pô, se fizermos reportagens em grupos, sobre o mesmo tema, com ângulos diferentes, de forma simultânea, fica mais completo e permite uma narrativa mais rápida.” E eu sempre fui bastante encantado por trabalhar com jovens, por perceber o quanto hoje eles são mais bem preparados.

Mas muito jornalista de outras gerações critica a molecada de hoje, que não sabe mais apurar, não suja mais o sapato. Eu discordo. O acesso à informação foi democratizado. Eu mesmo, quando tinha meus 20 anos, para me informar bem tinha que ir a uma biblioteca, enfrentar um burocrata chato. Hoje você faz isso em segundos. O cara com o sapato limpo está inquieto, procurando em todas as bibliotecas do mundo e não naquela em que eu ia a pé. E o pessoal adora ir pra rua. As coisas se complementam, não precisa escolher uma e abrir mão da outra.

Você se considera o melhor repórter da televisão? Sem falsa modéstia? Eu estou entre os melhores. No mínimo eu mereço estar entre eles. Tenho consciência de como as pessoas me vêem na rua. O melhor do trabalho é isso de carinho e de atenção. Adoro quando alguém lembra de coisas que eu fiz em 1989.

E você se preocupa de isso mexer muito com seu ego? Acho que sim. Às vezes eu me preocupo e tal, porque eu tenho consciência de que não sou nada, mas tem gente que acha que eu sou, né? E é melhor que achem que eu seja, porque senão eu não teria emprego, né? [Risos.]

Mas você acha que tem o ego grande? Acho que escondo bem [risos]. Eu às vezes me acho egocentrado, mas me policio. E a base do meu trabalho é ouvir, ser atento aos outros. Mesmo nas reuniões em grupo, eu sou bastante ouvinte. Mas nisso com certeza tem um componente de vaidade, mas acho que é voltado para o trabalho. Fico mal quando alguém fala que está uma merda, que eu errei a mão. Quando elogiam, acho normal, eu já esperava.

É uma expectativa de excelência, não? Quando você começa a fazer um trabalho bom você fica refém dele... Fica totalmente. Você quer que o trabalho seguinte seja sempre melhor. Mas acho bom, fundamental que não se perca isso. E também, às vezes, a gente tem que ter a coragem de ir contra a maioria. Eu já tive barras difíceis que enfrentei, mas fiz o meu papel.

Exemplo? Fiz uma matéria sobre a Escuderia LeCoq, do crime organizado do Espírito Santo. Era a Polícia Federal investigando a Polícia Civil, o Judiciário, PM... E eu também, fazendo as minhas por fora. Tinha um padre que havia sofrido vários atentados. E a gente contou a história dele. Dez dias depois mataram o padre. E eu fui pra lá e fiz a matéria. Cara, me vi diante de um malaco, chorando copiosamente, a mulher grávida ao lado... “Eu matei o único padre que cuidava da nossa favela...” Era um tiroteio com um grupo rival, o padre entrou com o Fusquinha dele, não deu sinal de luz e meteram bala no padre por engano. Aí foi matéria pro Jornal nacional, dizendo que o padre sofria diversas ameaças, mas quem matou foi esse cara arrependido. Aí a Igreja criticou: “Foi a Rede Globo que fez você falar isso...”. Aí eu falei: “Não culpem a ninguém, culpem a mim”. Eu apurei. E me frustrei pra caramba. Queria ter denunciado o crime organizado. Mas não vou para a rua buscar coisas de que já tenho certeza.

E as grandes publicações? Você lê a Veja, por exemplo? Agora eu não leio mais... Me atacaram muito nos blogs deles, ameaçando de morte. Acho que eles estavam com saudades dos torturadores e dos assassinos. Pensei em processar, mas fiquei na minha. Eu fico triste porque foi uma revista onde eu trabalhei, de que eu gostava tanto. Uma pena. Mas eu acho que isso se recicla, muda.

Você já se sentiu cooptado por algum veículo, antes de ter a independência que você tem hoje, de precisar reportar o que o editor pensava, e não o que você apurou? Eu tive sorte de sempre ter escolhido a reportagem de mais fôlego. E estrategicamente sempre sugeri muitas pautas. As que não estão de acordo com a linha editorial da revista, basta eliminar, vou correr atrás das outras. Porque a gente não tem liberdade. Tem, se possível, independência.

Então, você não se sente uma pessoa livre? Claro que não. Ninguém é livre. O fundamental, com toda sinceridade, é que não me envergonho de nada que fiz até hoje. Podem me culpar de tudo, assumo totalmente. É um conforto. Talvez desejasse fazer muitas outras coisas, mas aí precisa um dia eu ter meu veículo. Mas não tenho essa pretensão. Eu adoro trabalhar na televisão. Contar histórias pra muita gente. Acho que sou um privilegiado mesmo.

Você se considera um cara de esquerda? Se é que esse termo faz sentido hoje em dia... Talvez faça, mas eu nunca fui vinculado a nada. Nunca tive partido, ONG... não precisa. Talvez pela maneira de eu ver o mundo, sim, sou de esquerda.

Você tem medo durante suas investigações, medo de tomar um tiro? Esse medo não, porque eu acho que isso não vai acontecer comigo, embora eu saiba que possa ocorrer. Claro que na guerrilha de repente pode sair um tiroteio... aí acabou. Mas, quando você vai pra lá, esse componente está presente. Então tento ao máximo não correr risco. Não vou atrás de risco, vou atrás de uma história. Até porque se eu correr riscos demais não vou contar a história depois.

Escrever livros entregando matadores da Rota, expondo o Comando Vermelho, não é uma das coisas mais prudentes pra fazer da vida. Pois é, mas por outro lado eu pensava assim: “Eu não sou mais aquele moleque que eu era do Partenon, lá em Porto Alegre, que corria da polícia porque fazia parte do cotidiano de um menino pobre”. Eu era repórter de uma emissora reconhecida, um cidadão que não é perseguido.

Então agora eu entendi a sua fixação com a polícia, você fugia deles quando era moleque... Pode ser. É que pobre em princípio é suspeito. Se houve um roubo no bairro nobre, ninguém vai achar que é um morador dali. Tá vindo do bairro pobre, e os ricos estão exigindo de volta o que foi roubado. É assim que começa a perseguição nas comunidades pobres. Quem estiver na rua é suspeito. É como age a Rota, como sempre agiram as polícias. Hoje eu penso assim: “Não tenho perfil de um cara para ser perseguido por eles, então eu não vou ser perseguido, mesmo fazendo um livro”. Achava que era um risco calculado.

Mas e o risco de ser caçado depois da matéria? Você já denunciou gente muito perigosa. Por isso eu respeito muito. Se o cara é um agressor, você precisa ter muito mais respeito. Para esse cara ficar convencido de que eu não tenho nada, pessoalmente, contra ele, que estou em uma missão pública. Eu falei com 500 pessoas antes que falaram mal dele. Não sou eu que estou falando... “Mas eu estou aqui pra tentar dizer que essas 500 pessoas estão erradas, que não vou precisar te ferrar.” Agora, se os 500 estão certos... “Meu caro, me desculpe, é minha função.” Os bandidos entendem isso. Acho que, assim como a violência gera a violência, o respeito gera o respeito. O entendimento gera o entendimento.

Mas isso não é garantia. Você acha que nunca passou perto da morte, de ter sido jurado por gente que você denunciou? No caso do Rota 66, houve muitos boatos de que queriam me pegar. Mas eu acho que eles leram o livro e desistiram. É a minha esperança. Que perceberam que eu não tinha nada contra ninguém. Era um pedido, implorando: “Parem de matar, isso não resolve nada”.

E qual a saída para parar essa matança? Aí não é apontar só a polícia. Acho que envolve a sociedade toda. Polícia é ponta, última instância. Precisamos de respeito recíproco. Eu acho um absurdo não existir nenhum prédio da Justiça nas comunidades pobres. Eu acho sempre bom que os poderosos possam estar perto dos problemas nacionais. Ministérios públicos, imprensa, polícia. Senão o povo fica refém só de traficante, máfia, jogo do bicho.

Há alguns anos, na Tpm, você disse que não acreditava que o Abusado tenha sido responsável pela morte do Marcinho VP. Hoje você vê da mesma forma? Sim. Nada como o tempo... Mortes aconteceram depois, mas nunca se sabe por que mataram. Nem descobriram quem matou. Claro que fiquei chateado ao saber da morte. Depois entendi melhor o que estava acontecendo com o Comando Vermelho. Os matadores ganharam força nas organizações criminosas. E estão ganhando força em vários segmentos sociais. 

Como assim? Cansei de entrar em cadeias, e antes os matadores viravam picadinho. Eram indesejados na cadeia. Precisavam ficar isolados. E foram ganhando força, tomando conta de tudo. As cadeias são dominadas por eles, quase todas as polícias têm pelo menos uma unidade de elite cheia de matadores. O Comando Vermelho, no passado, jamais mataria um parceiro. Hoje é freqüente, e com tortura, com os métodos da polícia. Estão cada vez mais próximos os métodos dos dois. Isso mudou, e só estudando pra saber quando se deu essa guinada.

Você acha que esse livro seria possível de ser feito hoje, depois dessa mudança? Talvez não... porque o Juliano [codinome do Marcinho VP] era um mamão com açúcar. Embora também matasse, mas não nesse nível que está hoje. E o homicídio se tornou uma solução simples, porque a nossa Justiça pune muito pouco o crime contra a vida.

Então, é um crime seguro de cometer, não é? Mais seguro do que assaltar. O risco de ser preso em um assalto é muito maior. Em um crime de morte a chance de ser punido é de 2%, 3%.

Qual sua opinião sobre a legislação atual sobre drogas? Não tenho opinião formada, mas eu defendo firmemente o debate sério, público e conseqüente. Que busque soluções e que seja bem realista. Por exemplo, não adianta debater, no momento, a cocaína. Que envolve relações bilaterais, outros países. Se você legalizar a cocaína, como é que fica pra comprar? No tráfico internacional? A legalização implica a produção, e aí a gente não tem matéria-prima... Mas a maconha, por exemplo, eu sou favorável à discussão. Se legalizada, a gente transforma o traficante em comerciante. Sugiro que tudo fique dentro da lei, assim como vender cachaça é legal e causa um dano pra saúde. Eu detesto cachaça, acho que é a droga que mais faz mal no Brasil. Mas não deve ser proibida senão vai ter um traficante vendendo cachaça e de pior qualidade.

O “debate sério” que você sugere é uma coisa que todo mundo fala. Mas o que é exatamente isso, na prática? Acho que um fórum que iria em busca de solução. E passa por uma votação nacional: vamos proibir ou não?

Você já teve alguma experiência com drogas? Não. Eu lembro que meu pai fumava muito cigarro. Quando fiz 18 anos, ele falou: “Bom, chegou a hora de você fumar um cigarro”. Foi uma decepção quando eu disse não. Os meus amigos também: “Você não bebe, você não fuma... você é veado?” [risos].

Mas nem quando você era hippie? Imagino que naquela época fazia parte do pacote. E olha que eu morei em comunidade hippie... macrobiótico desde 1971. Bom, aí havia umas coisas que diziam que eram lisérgicas na comida... uns cogumelos... Mas eu nunca senti nada. Nem maconha ou cocaína. E meus amigos provocando... “Você não sabe o que está perdendo.”

Era falta de curiosidade ou medo? Medo e uma relação de causa e efeito. Eu estava lendo muito Nietzsche nessa época hippie. Que falava da importância do jejum pra mudar seu estágio de humor. Eu fiz experiências assim, ficar sem comer várias horas seguidas e descobrir o efeito de cada alimento. Eu já me achava um pouco maluco sem precisar de nada. Isso pode parecer até mentira, mas só tomei um porre na vida toda. Isso é grave, né? Vinho eu estou tentando, porque dizem que é preventivo pra câncer de próstata.

Você seria um bom policial? [Risos] Pelo lado da descoberta, sim. Mas, como isso leva a punição, eu não gostaria. Eu ficava mal ao constatar que as matérias levavam à punição de soldados. Acho que esse foi um dos motivos de eu ter feito o Rota. Quem deu a ordem, quem criou o esquadrão da morte, eu não vou tocar neles?

Que tipo de punição seria a ideal para os criminosos no Brasil? Infelizmente nossa cadeia não é boa idéia, porque elas são medievais. Se aplicassem a lei corretamente, sem preconceito de classe [risos], eu acho que já mudaria bem. Mas as cadeias estão lotadas de pessoas que roubaram, e não que mataram. Claro que não pode roubar, mas matar é muito mais grave. Eu vi uma pesquisa feita por uma agência de propaganda: 49% dos ricos entrevistados disseram que, se fossem policias, usariam a tortura, 19% dos pobres responderam da mesma forma. É uma sociedade dividida, que aprova tortura para um crime de furto, algo menos grave que tortura. Então a sociedade dita organizada tem a violência na base.

Mas não é exclusividade nossa. O patrimônio é mais protegido do que a vida no mundo todo. Tem razão. É um mundo movido assim. Mas aqui é mais, porque nunca uma bandeira dos direitos humanos virou política pública. Aqui é só a bandeira dos coronéis, de castigar quem agride patrimônio. Somando as nações que têm pena de morte no mundo todo, elas executaram 1.130 pessoas no ano. Só a PM do Brasil matou mais: 1.400 pessoas!

E como você vê o fenômeno social do Tropa de elite, logo você que se dedica tanto a conter a brutalidade policial? É triste a interpretação que fizeram do filme, porque é uma obra de arte.

Mas reduzir aquele filme a obra de arte é como chamar seus livros de romances. Bom... é verdade. Eu me preocupo, realmente, é com a interpretação das pessoas. Transformar um assassino em herói é triste.

A longo prazo você é otimista com essa sociedade? Eu sou! Quando vejo minha filha de 9 anos me dando a maior bronca porque eu uso a água quente pra me barbear e esqueço de desligar. E não é um exemplo isolado. E a informação é aliada das coisas positivas. Acho que a sociedade está cada vez mais bem informada. Eu acho que isso vai formar uma sociedade mais sábia.

Mas você disse, também, que a informação é formadora de paranóia, o que torna a sociedade menos sábia e mais arisca. É... mas acho que é uma minoria que pode ficar doente com o excesso de informação. Tem-se que superar a força dos músculos, usar o saber para contrapor a violência. Essa é minha vontade, não é uma análise bem fundamentada. Porque ainda vejo imbecilidades acontecendo nessa área de violência. O Bope reproduzindo o que a Rota fez. As mesmas técnicas que os EUA ensinaram aos coronéis aqui durante a ditadura.

Você acha que a gente vive em uma sociedade violenta na essência? Acho. A violência está em toda a sociedade e não é só no ato de dar uma porrada. A exploração no mercado de trabalho é uma violência. As palavras, humilhação. E a intolerância principalmente, há religiões por aí que praticam a intolerância.

Como você caiu na TV? Eu era freelancer e adorava correr atrás de histórias. Eu vendia história pronta, com fotografia e tudo. Um editor do Jornal da tarde, que gostava do meu trabalho, foi contratado pela Globo e me convidou. Eu recusei, achava um veículo oficialista. Aí, de tanto rodar, acabei morando em Nova York, e lá me apaixonei por televisão. Percebi que é possível fazer uns trabalhos maravilhosos na TV. Liguei pra ele e perguntei se o convite ainda estava de pé. Fiz os testes e depois de um ano, quando surgiu uma vaga, eu entrei.

A Rede Globo é uma empresa conservadora? Eu acho que é aberta. Se você analisar um telejornal é uma coisa, mas um conjunto é outra. Pô, tem coisas ali criativas pra caramba, minisséries, programas de humor. Tem programas que eu acho que são inovadores. Se a Globo fosse conservadora, não abriria espaços para projetos como o Profissão repórter.

Mas a Globo não é muito contestadora, no sentido de se contrapor ao conservadorismo, de bater mesmo de frente. Você nunca vê a Globo indignada, estilo Boris Casoy. Pois é, mas por outro lado tem comentaristas que fazem isso, não é? Arnaldo Jabor, por exemplo. É que o âncora é mais voltado pra leitura de notícias. E eu acho que uma empresa assim tem que falar com muita gente, então a imagem tem que ser uma que todo mundo entenda.

Você não está cansado de trabalhar tanto? É incrível, eu trabalho muito mesmo. Já foi pior. Eu jurei pra mim mesmo que não faria um outro livro como fiz o Rota 66 e o Abusado. Na décima quarta hora de trabalho. O Abusado devia se chamar “Cansado” [risos]. Eu abusei de mim mesmo. Eu escrevia um capítulo e reescrevia duas ou três vezes, porque tinha escrito com sono demais. Mas eu gosto, acho que por isso não canso. E tenho um projeto sério pro futuro: morrer trabalhando. Se conseguir ir trabalhando até o fim, que maravilhoso para a saúde.

E a sua família não se queixa, não? Minha mulher trabalha muito também. Ela é estilista de alta-costura, aquela coisa detalhada e meticulosa. E a gente se acerta muito por esse lado. Tentamos, claro, ficar uns dias juntos, com os filhos.

Mas você sente algum tipo de culpa por não ver tanto seus filhos? Tive muita culpa ao longo da vida. Cheguei a fazer análise, e o analista me ajudou dizendo que o importante quando se está junto é que a relação seja intensa, e que o seu filho saiba exatamente o que você faz e que a sua distância não significa que estejam desligados. E minha mulher e eu fizemos um projeto já contando com essa minha vida.

E você pratica esporte? Tô na esperança de o Dunga reconhecer meu talento... jogo futebol sempre. Umas duas vezes por semana eu tento. Tenho uma agenda de peladas em São Paulo e no Rio. Então quando me sobra um tempo eu sei onde tem um jogo rolando.

Você é cuidadoso com sua alimentação? Minha família brinca comigo dizendo que cozinho pra hospital. Macrobiótico, sem sal [risos]. E eu cheguei a ficar acho que quatro ou cinco anos, no mínimo, à base de arroz integral, frango, cenoura. Uma canja de galinha, levinha. Eu adoro arroz integral, sou dependente mesmo.

Acha que esse é o seu legado hippie, a alimentação? Sem dúvida. E eu gosto da idéia coletiva também, não sou chegado nas coisas privadas. Acho tão engraçada essa vida em cortiços, cozinha em comum. Alguns trabalhos, também, como os Médicos sem fronteira. Tem um pouco a ver com essa filosofia de o mundo não ter fronteira. Eu tenho um sonho, e acho que você vai me achar um pouco ingênuo, de que eu estou com um carro aqui, mas deixei a chave na ignição, alguém pega e vai. E tudo bem, quando eu sair haverá outro carro com a chave ali perto.

Você é vaidoso? Sou. Por gostar de manter a saúde e porque eu me esforço em ser agradável pros outros. Talvez por herança mesmo. De a minha família ser extremamente cuidadosa com a aparência. Eu tinha sempre umas roupas muitos limpinhas, passadas. Poucas, mas hiperbem cuidadas. O sapato sempre engraxado. Eu desenhava camisas iguais às dos Beatles, dos Rolling Stones, copiando das revistas. Depois levava pra costureira do bairro fazer para mim. E isso me influenciou, também, a achar que a aparência fala um pouco de você.

Falando nisso, você é muito paquerado? Porque na Tpm você faz sucesso... O pessoal brinca [risos]. Eu acho que tem uma mistura ali, vou parecer bobo demais, de uma certa admiração pelo trabalho. Eu acho que sou uma pessoa legal... pra deixar de ser modesto. E aí pode parecer assédio. Efetivamente é raro. Acho que as mulheres gostam de mim, mas não por esse lado. Até porque não sou galã, né? Galã tem outro perfil.

Com 58 anos, você sente ter a idade que tem? Quando estou bem, sem pensar na morte, eu não sinto cansaço. Às vezes aparecem dores musculares, mas é descuido, quando não faço alongamentos. No futebol dá para sentir a diferença. Antes corria harmonicamente, hoje trepida, umas pisadas que machucam o gramado.

E você está com algum livro novo no horizonte? Estou. Não é tão denunciatório, mas uma encrenca que vai incomodar muita gente. Eu não gosto de falar, mas, pra não deixar de te responder, diria que é sobre a cultura da violência. Mas está muito no início a apuração, e eu não sei o que vai dar.

E você não pensa em escrever ficção? Eu escrevi uma peça não tem muito tempo. Chama Osama, o homem-bomba do Rio [risos]. Eu fui convidado para escrever. É um projeto do National Theater de Londres chamado Conexões. Envolve 12 países. E esse projeto está chegando ao Brasil agora. É um banco de peças que vão sendo montadas pelo mundo com países como Paquistão na lista. Imagina, minha peça encenada no Paquistão.

E como é a peça? É a história de um carioca e de um paulistano de classes diferentes. O carioca é um traficante aposentado aos 20 anos, chamado Osama, que resolve montar uma quadrilha pra salvar as mães dos traficantes, que estão sempre fora do morro, trabalhando como domésticas. Só que a arma do Osama é a bomba amarrada ao corpo. Porque ninguém se mete se você oferece a própria vida. Mas quando o pessoal descobre que era oferecer a vida pela mãe... Eles não concordam: “Matar eu até topo, é com a gente, mas morrer, nem pela mãe” [risos]. Mas isso é o começo...

Você se sente ameaçado por ter dinheiro, por ser uma pessoa rica? Não. E também não está no meu horizonte ficar rico. Acho importante ganhar grana, ter conforto, viajar pra onde eu quero. Mas isso não pode me deixar com medo de ser roubado toda hora, não confiar em ninguém ou de ir pra um trabalho que não me deixa feliz só porque representa mais grana. Eu não tenho o menor cuidado, paranóia. E sempre tive uma coisa muito forte na cabeça: fui muito feliz quando era pobre. Então não tenho medo de perder, sabe?

E sua família tinha pouca grana mesmo? Meu pai tinha que trabalhar em dois ou três empregos. A minha mãe garantia alimentação de alta qualidade, mas plantando no quintal. Tínhamos uma vida social intensa, nossas casas eram extensões da rua. E eu botei na minha cabeça que não podia ficar infeliz à medida que ia mudando de classe social. Até porque nunca pensei em ganhar tanto como repórter. Quando eu comecei na reportagem era o primeiro degrau da ascensão possível profissional.

E você, como repórter, mudou muito? Não. Acho que estou exatamente como era no primeiro dia. De achar que não vou conseguir fazer, de que não sou capaz, de sentir um desafio muito difícil. Aí começa a trabalhar, a apurar, ler, ir para a rua, o processo todo de novo. Basicamente é a mesma coisa. Eu sempre me surpreendo.

E por que você não se interessa tanto por contar histórias de gente rica? Vou copiar o Walter Sales. “Por que esse cara rico só faz filme de pobre? Porque rico não dá filme” [risos]. Porque é um país em que a maioria é pobre e você tem que ter isso na cabeça. Se eu morasse na Suíça seria obrigado a escrever sobre os ricos.

Você é religioso de alguma forma? De alguma forma sim... [risos] bem de alguma forma. Só fui praticante quando era coroinha da Igreja Católica. Isso lá no Rio Grande do Sul quando era criança. Mas nunca me convenceu. Sobretudo quando tive consciência do que era a Igreja dos poderosos... Não me fascina, nem me convence.

Mas você sente uma dimensão espiritual? Sim, respeito os mistérios. Penso bastante e sinto que tem forças difíceis de explicar. E na minha época de hippie, isso também era algo sobre que gente pensava e desejava. Desapego das coisas materiais. Ter muitas coisas não faz sentido. Eu lembro que a gente se vestia bem trocando roupa, comia muito bem sem gastar dinheiro, pensando na vida de um olhar mais amplo.

Há quem diga que o desejo de acúmulo é o sintoma número um do medo. Essência do capitalismo. Se desprender do medo de empobrecer é um grande avanço. Não tenho medo de perder. O que não dá é para ter um casamento infeliz, viver uma vida desagradável. Não pode ser o foco da sua vida. Se você está sendo um pouquinho infeliz pra ter alguma coisa, abre mão!

E qual um bom foco para a vida, então? Tentar ter uma história bonita para ser lembrada pelos outros e você continuar de uma certa forma vivo. Transformar sua vida em uma boa história, digna. É uma perda de tempo ser infeliz, se a gente pensar que cada segundo não se repete. Eu penso muito nisso. Porque medo mesmo eu tenho é de morrer.

Bom, disso não dá para escapar. Não mesmo, seja bonzinho ou mauzinho. Mas é fogo... eu não queria morrer assim, tão rápido.

fechar