Há mais de 45 anos ela se dedica a buscar estados alterados da consciência. Diretora da Fundação Beckley, Amanda Feilding abriu a cabeça para mudar a relação com as drogas e o cérebro

O tempo anda em soluços enquanto as paredes de cinco séculos se movem levemente, e um filete denso de fumaça sobe dançando de um cachimbo de madeira deixado há pouco na mesa. Amanda expira, olha para o teto, que é tudo, menos plano. E segue a resposta a uma pergunta perdida lá atrás. “Enfim... você não sabe o que é o amor, até ser amado por um pássaro.” Não era uma novidade para ela tal pensamento nem uma frase para enfeitar conversas psicodélicas. Era uma antiga constatação, da hoje senhora Amanda, dos tempos em que Birdie, o pombo, era vivo.

Mais de 30 anos viveu a querida ave, todos sob as asas soltas de Amanda, e voando livre, sem aparas ou gaiola, sobre os jardins da mansão Beckley. Era um “anjo”, ela diz, “com quem eu tive o privilégio de conviver”. Um pombo, mas também uma metáfora encarnada que ela carregava no ombro durante os mais intensos anos de sua vida. Era o companheiro e o símbolo perfeito para sua busca: a libertação da consciência como uma conquista tanto mística quanto científica. Uma estrada psicodélica, evolucionária, que muita gente um dia decidiu seguir. Mas poucos, se tantos, foram tão resolutos quanto a mãe adotiva de Birdie, a diretora da Fundação Beckley, Amanda Feilding, condessa de Wemyss.

A casa onde estamos é a mesma onde ela nasceu. Ela e tantos, tantos antepassados. A mansão Beckley foi erguida em 1520, e pouca coisa mudou em suas dependências. As mesmas portas, trancas, a mesma escada de madeira e as pedras gastas no chão. Paredes onduladas, ângulos nada euclidianos e uma atmosfera solene que só uns 500 anos podem conferir a um imóvel. Uma casa de personalidade tão única quanto a da dona – as duas tão elegantes e de tão fino berço que aparentam carregar uma fortuna que, de fato, não há. Nem nunca houve em sua vida.

Amanda nasceu e foi criada ali na mansão e nos amplos jardins que a cercam. Foi uma infância doce, ela se lembra, mas rigorosamente pobre. “Não havia dinheiro nem para o aquecimento, e no inverno a gente tinha que ficar debaixo de casacos pesados dentro de casa”, diz sem ostentar, “mas era sempre tudo divertido. Não ficava bem se queixar do frio, entende?” Foi entre um inverno e outro, entre bem aparadas sebes, que ainda na infância teve suas primeiras experiências transcendentes. “Era um sentimento diferente que me acometia. De enxergar algo a mais ou de sentir a presença de Deus no meu jardim. Ou de me sentir voando quando meu corpo estava sentado na igreja.”

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Foi esse sentimento oceânico que a fez largar a escola aos 16 anos e viajar sozinha pelo Oriente Médio atrás de lições para o espírito. Que a fez voltar a Oxford e arriscar uma vida acadêmica em psicologia e história das religiões. Mas foram as drogas que colocaram a moça no caminho certo. “Naquela época eu fumei maconha e isso transformou minha consciência de uma maneira muito positiva. De repente eu estava vendo mais beleza, escutando mais notas nas músicas. E depois, em 1965, eu experimentei LSD...” Aí tudo, literalmente, mudou. Junto com os mais profundos e metafísicos insights do ácido, ela descobriu Bart Huges, um cientista holandês que se tornou seu amor e parceiro psicodélico. Eram trips e mais trips, ao lado de Birdie, dedicadas a um mergulho interno determinado, sessões psicanalíticas freestyle e leituras de Freud e Reich durante as incursões lisérgicas. 

“Proibir estados alterados é não só inviável como pouco inteligente do ponto de vista evolutivo”

Quero ver sangue

Foi nesse tempo, fim dos anos 60 início dos 70, que o pequeno e dedicado grupo de Amanda começou a levantar as hipóteses que até hoje ela luta para comprovar e difundir. A mais importante delas: a de que o cérebro humano tem um leve deficit de sangue, uma consequência negativa do processo de evolução que nos fez bípedes. Nós, os macacos eretos, acabamos por mudar o balanço entre o sangue e o fluido espinhal que irriga nossos miolos. O resultado, segundo Amanda, seria uma queda no número de células ativas no cérebro, menos cognição, menos energia disponível para atividades mais elevadas no cérebro. Menos potencial para estados místicos e percepções transcendentes da realidade. Reverter essa deficiência se tornou o objetivo por trás das infinitas sessões de ioga, meditação, psicanálise e LSD.

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“Claro que ninguém quer escutar que tem pouco sangue na cabeça”, Amanda repara, “ofendia muita gente. Então nossa mensagem científica não era muito popular nos anos 60. Mas eu queria realmente testar para ver se nossa ideia era verdadeira e como a gente poderia difundir isso pela sociedade. E eu descobri que é muito difícil quebrar um tabu.” Pudera. Para investigar a tese, a jovem Amanda tomou uma atitude deveras literal para abrir ainda mais sua cabeça: abriu sua cabeça.

Trepanation society

Por quatro anos ela procurou um médico na Inglaterra que se dispusesse a realizar um processo cirúrgico tão ancestral e seguro quanto chocante e tabu – a trepanação. Trata-se da abertura voluntária de um pequeno buraco no crânio. O objetivo é reduzir um pouco a pressão intracraniana e, com isso, facilitar a circulação de um volume maior de sangue pelo cérebro. No passado, xamãs, místicos e ioguins ao redor do mundo fizeram seus furos na cabeça com o claro intuito de ampliar suas capacidades meditativas, mediúnicas, metafísicas. Para Amanda, a razão é mais elaborada: “Se nossa espécie tem realmente deficiência de sangue para irrigar o cérebro, então ele precisa ser racionado. A prioridade é reservá-lo para as partes mais importantes para a sobrevivência. E o mecanismo que controla isso é o chamado ego. Que é baseado em reconhecimento de palavras e isso se tornou o modo pelo qual controlamos nossa função psíquica. E o centro verbal diz mais respeito ao lado esquerdo do cérebro e tende ao pensamento linear, em oposição ao pensamento holístico, não verbal, do lado direito”. 

 

Pender a balança sanguínea um pouco mais para a direita era seu objetivo. Na falta de um doutor disposto, em 1972 decidiu fazer sozinha. Conseguiu uma broca elétrica, um bisturi, anestesia e esterilizantes. Praticou suas habilidades como escultora perfurando um antigo crânio nos dias anteriores. Descolou uma câmera de 16 mm e fez seu primeiro filme, Heartbeat and the brain (Batimento cardíaco e o cérebro). A película é uma raridade, ausente de qualquer acervo analógico ou digital. Amanda apenas o exibiu algumas vezes, sempre para convidados em sua casa ou em seletas salas na Inglaterra. Para a Trip, apertou o play no porão da mansão. “Tenho muito orgulho desse trabalho, mas sei que choca muita gente”, explica enquanto uma sonata de Mozart acompanha os créditos.

Sua voz em off dá um breve histórico da trepanação enquanto Birdie é filmado voando sobre os jardins de Beckley e Londres. E logo surge a jovem e bela Amanda em trajes brancos, aplicando em si mesmo a anestesia logo acima da testa antes de abrir uma curta incisão com o bisturi. Pega a broca e, com uma expressão calma diante do espelho, começa a furar o próprio crânio.

O chocado repórter balbucia onomatopeias de espanto, e Amanda tranquiliza: “Parece forte, eu sei, mas é muito seguro na verdade, se você sabe o que está fazendo. A broca não chega nem perto do cérebro. Existem três membranas bem resistentes entre o osso e os miolos”. Enquanto isso, na tela, a recém-trepanada enfaixa sua cabeça, janta um bife para compensar o sangue perdido e traja um turbante oriental para ir a uma festa na cidade naquela noite.

Pender a balança sanguínea para a direita era seu objetivo. Na falta de um médico, fez sozinha

A causa e o efeito

Hoje, além do autoperfurado buraco, Amanda tem uma segunda trepanação feita por um médico no México no ano 2000. Algo que passa despercebido por quem vê a elegante condessa palestrando em conferências e painéis sobre drogas e as leis que as regem. Há 12 anos ela criou e dirige a Fundação Beckley, possivelmente a mais importante instituição para o avanço das pesquisas de estados alterados da consciência e da urgente reforma da política de drogas.

Ela resume: “No fim dos 90 eu criei a fundação. Porque eu sempre vi as drogas como um problema multidimensional. Primeiro de saber qual é a natureza da consciência e dos benefícios da alteração dela – e trazer a discussão para as instituições oficiais. Mas junto com isso eu sempre fui muito consciente do enorme sofrimento causado pela equivocada abordagem legal das drogas”. A seriedade de seu projeto, sua elegante educação de sangue azul e o alto nível dos cientistas envolvidos nos estudos garantem a respeitabilidade que falta a muitos ativistas liberais na discussão das drogas pelo mundo. Amanda é uma das poucas defensoras dos psicoativos que têm voz junto aos donos do poder.

De um antigo celeiro em Beckley, dois séculos e meio mais antigo do que sua casa de 1520, ela trabalha todo santo dia, contando apenas com uma assistente, alguns financiadores e valiosos parceiros científicos de alto calibre ao redor do mundo. Ela dá os recursos e a orientação de pesquisas para determinar o verdadeiro risco do uso regular de maconha. Entre muitos projetos, simpósios e papéis publicados, foi responsável pela aprovação da primeira pesquisa legal com LSD nos EUA desde o fim dos anos 60. Criou e viabilizou um estudo na Rússia sobre a relação entre circulação cerebral e trepanação. Participou de painéis de discussão da ONU sobre o tema e conseguiu abrir uma discussão aprofundada sobre maconha no parlamento inglês. E, hoje, está rodando as Américas financiada pelo fundo de George Soros para divulgar o livro Cannabis Policy, um aprofundado estudo socioeconômico feito por alguns dos maiores especialistas em criminalidade e a economia do tráfico.

Verdinho e amarelo

Lido e aprovado por Fernando Henrique Cardoso, a compilação acadêmica organizada por Amanda está, em poucos meses, se tornando uma preciosa fonte de subsídios para políticos repensarem suas posições e as leis em seus países. O Brasil é um dos seus alvos prioritários. Recentemente, no fim de fevereiro, Amanda passou pelo Rio de Janeiro para explanar na Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia, organizada por Rubem César Fernandes, do Viva Rio.

Desde os anos 60, ela tem essa convicção, mas que só agora, 45 anos depois, parece tocar os mal irrigados cérebros do poder: a absoluta necessidade de uma reforma no proibicionismo intransigente. “Eu tenho certeza de que não há nada no mundo que possa reduzir tanto sofrimento apenas por uma mudança de abordagem intelectual. A gente ficou tão cego com a visão de exterminar as drogas... e isso não funcionou. Claro que precisamos fazer tudo que podemos para controlar o abuso e os perigos que vêm do uso das drogas. Mas impedir, pura e simplesmente, a produção de estados alterados é não só inviável como muito pouco inteligente do ponto de vista evolutivo.”

Como assim, do ponto de vista evolutivo? Amanda toma fôlego e emenda: “Nós estamos em um período desafortunado, em que estados alterados da mente, exceto os produzidos pelo álcool, não são vistos como parte do desenvolvimento da civilização. Não acredito que essas experiências sejam algo que todos desejam. Mas existe uma minoria na sociedade que é exploradora das praias mais distantes da consciência, e a sociedade toda ganha quando permite e encoraja essas pessoas a trazerem ideias e insights desses estados”.

Do uso de drogas? “Não importa muito se isso vem de sonhos, meditação, de se apaixonar – ou do uso de substância psicoativas. Todos esses caminhos levam a um estado neurológico diferente que abre nosso pensamento para um modo de pensar não tão controlado pelo habitual sistema verbal. Isso pode significar, como já significou muitas vezes na história, um salto evolutivo.” Essa é a verdadeira missão por trás de toda sua longa e incomum trip. Se engajar, sem hesitação, na evolução da mente e da espécie humana. Fazer a difícil neuropolítica de mudar a mentalidade do poder sem perder sua credibilidade por conta de seu amor pelos estados alterados e as substâncias que os provocam.

Aos 67 anos, Amanda suspira de cansaço ao falar do trabalho. Lamenta a falta de companhia nessa luta. E se frustra ao perceber, depois de dedicar a vida toda a uma psicoativa cruzada pela lucidez, que muito pouca gente está interessada em discutir de frente a complexa relação entre a humanidade e as substâncias que a transformam. Mas parar, a essa altura do campeonato, está fora de questão. “Muito cedo eu percebi que era um dever da minha parte tentar trazer um pouco de racionalidade na abordagem do controle dos psicoativos. Para mim é inacreditável que alguém não seja livre para explorar sua própria consciência sem dano a ninguém mais. No futuro as pessoas vão ficar perplexas com a nossa época e entender o que isso realmente é: controle psíquico.”

Free as a Birdie

Enquanto a entrevista vai se derretendo em elucubrações sobre Deus e o cérebro parece receber mais sangue do que o de costume, ela me convida para um passeio pela propriedade da Beckley. Mostra o jardim das sebes cuidadosamente podadas. Uma delas como uma hélice de DNA, “que foi descoberto durante uma viagem de LSD pelo [físico e bioquímico britânico] Francis Crick!”, ela aponta. Passamos por uma ponte de pedras sobre um córrego enquanto ela conta das vantagens de criar seus dois filhos, Rocky e Cosmo, sem nenhum segredo sobre sua história de drogas e experiências radicais da consciência. “Eles são ótimos meninos! Tão cheios de boas maneiras”, gaba-se a condessa. E aponta finalmente para um morrinho.

Amanda mandou erguer aquele bonito monte de terra. O buraco resultante é um lago com uma ilhota no centro. Na ilha, Amanda sepultou as cinzas de seu namorado e parceiro intelectual, Bart Huges. O morro, no entanto, foi erguido para abrigar os ossos de Birdie, o pombo. É o mausoléu de seu grande amor metafísico, um animal com o qual ela tinha uma relação telepática, diálogos não verbais cheios de significado desde que ela o resgatou, filhote, caído de um ninho em sua propriedade. A criatura que, para ela, representava o que místicos ao longo dos milênios buscavam entender. O “Espírito Santo”, ela resume. A estranha ponte entre o espiritual e a matéria, entre o eterno e o mortal. O fantasma encarnado que une o sagrado e o trivial. A invisível e onipresente Consciência, que Amanda tanto ama e cultua.

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