Aos amigos tudo, aos inimigos, a lei

Caramuru: ”Nenhum outro povo cuida dos amigos tão bem como a gente”

A frase de autoria incerta é repetida até hoje porque reflete direitinho quem somos nós, brasileiros, e como nos organizamos. Nenhum outro povo cuida dos amigos tão bem como a gente

É a amizade que faz de nós o povo em que impera o “aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei”. A frase célebre, às vezes atribuída a Getúlio Vargas (faria todo sentido), reflete muito bem quem somos nós, os brasileiros. Não faltou quem tenha tentado nos interpretar, de Gilberto Freyre a Caetano Veloso, passando por Oswald de Andrade, e até mesmo você e eu. Não é tarefa fácil, pois esse é um terreno repleto de armadilhas, ora pesadas e ideológicas, ora ditadas pela moda do último verão.

Já se afirmou que nenhuma civilização digna de respeito brotaria nos trópicos, e hoje o país tropicalista posa orgulhoso como modelo a ser imitado. E o que dizer da nossa famosa ginga, ora mãe orgulhosa de certo jogo de cintura, ora madrasta envergonhada do jeitinho brasileiro? Oscilando bipolarmente entre o orgulho e o preconceito de sermos nós mesmos, seguimos sem saber quem somos.

Mas algumas coisas sabemos. Sabemos, por exemplo, que não gostamos de regras e leis. Há alguns anos, Roberto DaMatta explicou por que tínhamos bons pilotos no automobilismo: éramos uma sociedade contextual, ao contrário das anglo-saxônicas, que seriam contratuais. Ou seja, diante de um semáforo vermelho o inglês não pensa, apenas para; já o brasileiro, numa fração de segundo, olha para um lado, para o outro, vê se vem carro, se tem guarda, se tem gente, e decide se para ou passa. Educado assim desde cedo, o brasileiro naturalmente levaria certa vantagem na hora de tomar uma decisão, no fim de uma reta, a 300 quilômetros por hora. Obedecer ou não é simples cálculo de custo-benefício.

Seja como for, o fato é que não gostamos mesmo de regras. Em nossa defesa, diz-se que temos uma tradição em que o Estado, desde os reis de Portugal até hoje, nos empurra leis de forma autoritária e arbitrária. Mas, em vez de nos mobilizarmos para derrubá-las, como fariam canadenses ou suíços, nós nos defendemos desenvolvendo a burla criativa. A lei do bafômetro, que virou unanimidade na mídia, é um exemplo. Ao criminalizar igualmente quem dirige após beber um chope e quem tomou um porre, a lei acaba criando um exército de burladores. E exemplos assim abundam. Somos o país onde o distinto pai de família, engravatado e católico, que educa seus filhos com rigor, que defende o direito à vida e condena veementemente a prostituição, vai aos bordéis com os amigos e paga o aborto escondido da garota que ele engravidou sem querer. Imaginar-se acima das regras fez de nós uma nação de corruptos e hipócritas.

Modelo tropical 
“Aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei” é frase tão repetida porque reflete direitinho quem somos e como nos organizamos enquanto nação. Ela diz muitas coisas. Diz que o Estado é privado, que legisla e governa de olho em quem está direta (os eleitos) ou indiretamente (os amigos) no poder. Diz que democracia, entre nós, não é entendida como o poder exercido pelo povo, mas como a possibilidade de usar o povo para conquistar, exercer e se beneficiar do poder. E diz ainda que os políticos estão sempre dispostos a fazer novos amigos, inclusive entre os inimigos de ontem. Ah, a beleza da amizade...

Não sei se a nossa civilização tropical deve ser tomada como modelo pelo resto do mundo, mas pelo menos num aspecto nós somos os mestres supremos: nenhum outro povo cuida dos amigos tão bem quanto nós.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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