A pátria de chuteiras já passou

Por que passar horas em frente à TV assistindo a um jogo de futebol?


Por que passar horas em frente à TV assistindo a um jogo de futebol, DO QUAL SE SAI SEM LEVAR NADA? Simples: porque a gente gosta, mesmo que isso pareça (E seja) UMA perda de tempo

No livro Here and Now (de 2013, ainda inédito no Brasil), que traz as cartas trocadas entre os escritores J. M. Coetzee e Paul Auster entre 2008 e 2011, o primeiro, a certa altura, se pergunta o que faz com que ele, mesmo tendo pilhas de livros para ler (e de textos para escrever), passe uma tarde inteira em frente à TV, assistindo a uma partida de críquete, e finaliza: “Então, por que perder o meu tempo largado em frente a uma tela de televisão assistindo a jovens jogando? Uma vez que, eu admito, isso é uma perda de tempo. Certo, eu vivo uma experiência (de segunda mão), mas ela não me traz qualquer benefício que eu possa detectar. Eu não aprendo nada. Eu saio daquilo sem levar nada”. A partir daí, seguem-se, ao longo de diversas cartas, uma longa sequência de digressões sobre o tema, que falam de beisebol e rúgbi, da diferença entre esportes por tempo corrido (futebol), tempo interrompido (basquete) e sem tempo (vôlei), do gosto pelas estatísticas nos jogos, dos sonhos infantis de serem atletas de sucesso etc. A conversa dos dois nada mais é, no fim das contas, do que a repetição de uma reflexão que quase todos nós já fizemos, eu mesmo não sei quantas vezes. E a resposta, à pergunta inicial, acaba aparecendo: eles assistem porque gostam. Mesmo que isso pareça (ou seja) perda de tempo.

Eu, como Coetzee e Auster, também não me furto a perder um tempinho em frente à TV, de vez em quando, acompanhando um jogo. E Copas do Mundo sempre tiveram um sabor especial. Mas, num mundo que vem mudando rápido, tenho a impressão de que as Copas, ou antes, a maneira com que a maior parte das pessoas as vive, também está em transformação. Afinal, as grandes mobilizações patrióticas (no sentido de oposição a outros países) parecem, hoje, peças de ficção. E há apenas algumas décadas elas eram parte da realidade cotidiana. Seriam impensáveis, hoje, nos países ocidentais, aquelas imagens da Primeira Guerra, com milhares de voluntários nas filas de alistamento, loucos para pegar em armas e ir para as trincheiras matar ou ser mortos por pessoas com as quais eles poderiam ter tomado uma cerveja no dia anterior. A cada dia mais globalizados, em São Paulo, Hong Kong, Paris e Bogotá, usamos os mesmos tênis, comemos as mesmas comidas, assistimos aos mesmos filmes, admiramos os mesmos ídolos. Estão sobrando menos símbolos que diferenciem um país de outro e transmitam, para as pessoas, a sensação de uma identidade nacional com a intensidade que havia no passado. Sim, as pessoas vão torcer por seus países na Copa, mas, quase tanto quanto, elas querem assistir a bons jogos (independentemente de que times estejam em campo) e ver belas jogadas de astros internacionais como Neymar, Messi e Cristiano Ronaldo.

Sem chuteiras

Enquanto escrevo, a Copa do Mundo está apenas em sua segunda rodada. Como vivemos uma situação atípica, com protestos de um lado e festas de outro, não sei que efeito ela acabou tendo sobre o país no momento em que você está lendo estas linhas. Ao que parece, está triunfando a velha magia do jogo de bola (com o nada desprezível apoio da mídia e de seus patrocinadores pesos-pesados). Mas, de um jeito ou de outro, tenho certeza de que as coisas não serão como antes. Não acredito que uma vitória ou uma derrota do Brasil vá exercer qualquer influência nos rumos da economia ou no resultado das eleições de outubro. Não acredito que a Copa tenha hoje qualquer capacidade de “unir o país”, exceto ao longo dos 90 e poucos minutos de cada jogo. O tempo “da pátria de chuteiras” já passou.

Milhões de brasileiros assistirão às partidas da Copa do Mundo do Brasil. Mas eles não estarão fazendo nada mais do que “perdendo um tempinho”. Passados os jogos e os inevitáveis e incandescentes debates que se sucedem a cada um deles, a vida voltará ao normal, e todo mundo estará, como sempre, vivendo as agruras (e as eventuais felicidades) do dia a dia.


*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com

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