A batalha pela luz

A guerra para conseguir ler dentro da prisão depois que as luzes eram apagadas

Na guerra para conseguir ler dentro da prisão depois que as luzes eram apagadas, valia tudo: velas que chegaram a incendiar livros, gambiarras para acender pequenas lâmpadas, TVs usadas como abajur...

Durante décadas luz foi privilégio para mim. Na fase mais fértil de minha luta por saber, a batalha pela luz foi um dos episódios que mais exigiu de minha paciência e criatividade. Havia tempo. Estava condenado a mais de cem anos de prisão. Os livros não eram tão difíceis. A prisão possuía algumas estruturas que permitiam crer em recuperação social do homem aprisionado. A biblioteca tinha quase tudo o que havia de melhor. Todos os clássicos, por exemplo. Ainda era costume que nossos familiares e amigos nos presenteassem com livros.

Um dos problemas eram os guardas. Quando revistavam minha cela, queriam examinar livro por livro. Eles não gostavam. Briguei por décadas para manter os volumes em minha cela. Eles se revoltavam e levavam. Eu ia à diretoria e trazia de volta. Virou rotina. Até se convencerem de que nunca diminuiriam meu ânimo. Então deixaram que eu respirasse em paz.

Disposição não me faltava. Durante o dia trabalhava, não tinha muito tempo para ler. Mas, às 21h30, batiam os malditos sinos. Nove pancadas simultâneas de cada um dos três. Detonava na mente. Era o silêncio. Apagavam as luzes das celas, e só as das galerias ficavam acesas.

Olhava fixo na lâmpada esperando apagar. Era mágico. De repente a realidade sumia. Não havia mais nada. E eu me perguntava se alguma coisa existia realmente. Questionava quão relativa é nossa percepção de mundo. Sem luz não temos ideia da realidade. Mas com a luz será que a realidade é exatamente como nos parece? Porque, de verdade, nós só captamos reflexos do que existe. Só vemos o exterior, a forma. O conteúdo nos foge. Precisamos recorrer a outros meios de leitura para conhecê-lo. Acabei concluindo que a luz media o diálogo entre nós e o objeto. O resultado é o conhecimento.

Quando apagavam as luzes, eu era apenas um ignorante que buscava saber avidamente. Havia pouco tempo no dia para domesticar minha estupidez. Era proibido ter qualquer tipo de arranjo ou aparelho que nos fornecesse luz na cela. Silêncio era para calar até a alma. Se nos pegassem com algum artefato proibido, seria um mês em cela forte. A reincidência pagava dobrado. E ia dobrando. Nunca desisti. Vivia comprando velas e pequenas lâmpadas dos funcionários.

Vela era perigoso. Iluminava tudo, e os vigilantes poderiam perceber. Era preciso dirigir o foco de luz. Às vezes o livro pegava fogo, eu tinha que abafar com o cobertor... Ou então juntava um monte de pilhas pequenas (era permitido rádio de uma faixa) e as adaptava para acender uma lâmpada. Em último caso, até uma pequena lamparina improvisada com algodão e cera de costurar bola quebrava um galho.

Tudo, menos parar de ler. Sempre sofri de insônia. Dormia de três a quatro horas por noite, no máximo. E ficar sozinho em cela individual, no escuro, sem nada para fazer, era desesperador. Depois de quase 15 anos preso, liberaram o uso da televisão. Mas apagavam também na hora do silêncio. A batalha era fazer gambiarra com a luz da galeria para mantê-la ligada à noite. Também era proibido e resultava em castigo. Aliás, nada podia e tudo podia, dependia da ousadia e da necessidade envolvidas. Só que a TV não era usada para assistir aos estupidificantes programas da madrugada e sim para que sua luz me permitisse ler.

A batalha por luz demorou até que acabaram as celas individuais. As coletivas ficavam iluminadas à noite por questão de segurança. Havia prisões em que podia até ser opcional. Quando apagavam a luz à noite, sempre tive uma gambiarra dentro de minha cama. Era o horário de ler, de imaginar e até de ser feliz por instantes no sexo manual (existe sexo oral, grupal, anal e outros; nós usávamos a mão).

Os companheiros dormiam, luz era fonte de conhecimento, de contato com o mundo extramuros, e o silêncio era de paz.

*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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