A praia é nossa: Regina Casé e Hermano Vianna no Piscinão de Ramos em 2002
Em 2002, a Trip 97 acompanhou a visita da apresentadora Regina Casé e do antropólogo Hermano Vianna ao Piscinão de Ramos, a sensação carioca do verão daquele ano. Na ocasião, Hermano escreveu uma bela crônica que fazia um paralelo entre os frequentadores das praias da zona sul e a da zona norte.
O texto do antropólogo, aqui republicado, enaltece a cultura do local e mostra que, praias, artificiais ou não, devem ser lugares democráticos e livres para manifestações culturais de todos, independente de cor, raça, classe social ou marca de biquíni. Seja no Piscinão de Ramos ou em Ipanema
Homens Invisíveis
Por: Hermano Vianna
Parece piada: no Rio de Janeiro, cidade conhecida em todo o mundo pelas suas belezas naturais, a grande sensação do verão – a estação carioca por excelência – é uma praia artificial. [...] Quem já teve o prazer de pisar nas novas areias escaldantes e artificiais de Ramos sabe que no planeta inteiro não pode existir lugar mais real, mais natural. A natureza ali é tão explosiva, tão transbordante que dá até vertigem. [...] Afinal, quem é essa gente, essa multidão indecentemente alegre, que lotou a novidade desde a inauguração? Essa gente sempre existiu. Mas era invisível. Ou a mídia fingia não vê-la. O Piscinão é um holofote que mostrou para o mundo que “essa gente” existe, e se diverte pra valer – basta ter uma oportunidade.
Na verdade, “essa gente” não era tão invisível assim. Era um pessoal – farofeiro ou desordeiro – que perturbava a imagem charmosa e de elegância internacional das praias naturais da zona sul. Era uma gente que só aparecia nos jornais quando improvisava um “arrastão”, quando se transformava em problema criminal ou quando se fantasiava para o Carnaval. Mesmo assim, mesmo incomodando quem queria ter uma praia amigável apenas para operações plásticas e óculos Gucci, era possível ignorar ou neutralizar a presença “suburbana”. E os próprios suburbanos, na zona sul, acabavam envergonhados, acuados, sendo obrigados a agir como se não existissem, ou como se fossem turistas noruegueses hospedados no Caesar Park. A etiqueta zona-sulista abafava as manifestações dissonantes da farofada.
No Piscinão, “essa gente” está em casa e não tem que prestar contas a ninguém. [...] É bom estar entre gente que não nos chama de “essa gente”, que entende nossos códigos do que é bom/belo/bacana, que não nos olha com aquele olhar ridículo de superioridade e reprovação, como se sempre estivéssemos no lugar errado, o lugar que não nos pertence e onde nunca deveríamos ter pisado (a não ser para limpar a sujeira que todo o mundo sempre faz). E melhor ainda é, só por estar assim entre colegas curtindo a vida adoidado, chamar a atenção de todo o país sem ter ido parar nas páginas policiais. Por isso, o Piscinão é só uma desculpa, e é muito mais que “o salto que o preto pobre tenta dar quando se arranca do seu barraco prum bloco do BNH” (como cantava Gilberto Gil em “Refavela”). O Piscinão é a pós-refavela, e pode muito bem significar um pulo do gato cultural para toda a cidade do Rio e para todo o Brasil, se o país assim merecer.
Nada ainda está estabelecido, pois não existia um lugar como esse, onde a cultura popular carioca pudesse se reunir e se exibir de maneira tão desinibida. [...] O Piscinão é um laboratório social em sua primeira fase, fora do controle de qualquer urbanista bem intencionado. Ninguém sabe que moda, que música, que festa vai sair dali. Chegou a hora de essa gente preta bronzeada e de cabelo louro mostrar o seu valor. O perigo é o Piscinão partir de vez a cidade. As praias da zona sul, apesar de tudo, mantinham as classes sociais no mesmo território, na mesma areia. O pior seria, a partir de Ramos, ter praias de ricos e praias de pobres, com realidades culturais independentes. Mas o Rio sempre soube driblar esses perigos. E as invenções culturais dos morros e subúrbios acabam virando manias nacionais. Então prepare-se: o Piscinão ainda vai invadir sua praia.