Paula Dib em: Diário de Bordo (parte 2)

por Paula Dib

São tantos os tempos e as novidades que saltam nos meus olhos atentos durante todo o dia que, no mais profundo silêncio da noite, acordo escutando minhas memórias.

Os dias têm sido simplesmente lotados de cores, formas, fotografias perfeitas que os olhos correm a capturar, tentando armazenar lá no fundo, selando com um pensamento forte, para assegurar que de lá nunca saiam. A viagem Moçambique/Tanzânia foi assim, de muito pó vermelho, branco, marrom, impressionantes baobás, vilarejos de um tempo imprevisível, céu azul e meninos da terra que com intimidade rolavam e mergulhavam nas laterais da mais empoeirada estrada, rindo para o nosso volumoso automóvel.

No ir e vir da pista, uma rotina por mim desconhecida acontecia. Pingos de gente carregavam seus ainda menores irmãozinhos, mulheres com andar de carruagem me emocionavam caminhando com a mais digna elegância, levando na cabeça o de comer, o de beber, o de cozer, o de cobrir suas casas... Passamos por tudo isso, varrendo a estrada, levantando poeira, rompendo o ritmo com uma audácia e imponência que me incomodaram profundamente. Por várias vezes desejei que no potente 4x4 furasse um pneu para podermos parar também no tempo, escutando as folhas secas prestes a cair. Ou um sonho: deixar o ritmo daquelas pessoas, por uma vez, nos ultrapassar. Nosso veículo voraz deixou pra trás muitos vilarejos de pau a pique e palha, passamos por Chai, onde o primeiro tiro foi dado rumo à independência de Moçambique, em 1964, e posamos em Mueda, onde 600 pessoas, três anos depois, perderam suas vidas pela mesma razão. Tidos hoje como heróis, ganharam um gramado murado como cobertura para sua vala comum. Moçambique viveu dez anos de guerra civil. Desde 74 as cidades retomam a nova velha ordem. Os poucos prédios portugueses vão perdendo a pintura e o casario de palha e argila dos velhos tempos volta a sobressair na paisagem. Pouco, muito pouco do saber fazer português, que bem conhecemos, se manteve nessa região.

Depois de dois dias nesta viagem encontramos o asfalto para cruzar com pompa a fronteira Moçambique/Tanzânia. Fomos dos primeiros grupos a passar pela ponte de chifres que separa os países. Se tivéssemos chegado antes de maio deste ano (2010), teríamos que equilibrar o bravo 4x4 em tabuinhas de madeira e entoar orações ao longo do caudaloso rio Ruvuma.

Passada a fronteira, começou a mímica. A língua oficial é o swahili, idioma banto, puro, que não me dava nenhuma notícia, nenhum rastro das colônias que passaram por lá: primeiro a alemã, depois a britânica. Poucas regiões da África foram praticamente intocadas pelo mundo externo, e Mtwara, a cidade que nos acolheu no extremo sul da Tanzânia, é um desses lugares. Talvez o clima inóspito, a malária e as condições agrícolas pobres tenham desencorajado o assentamento dos colonos europeus; ou, eventualmente, a ferocidade mítica do povo Maconde. Quaisquer que sejam as razões, o desenvolvimento tardio de Mtwara deixou um rico reservatório de conhecimento empírico de uma vida africana "mais pura" e preservou uma cultura tradicional. Cheguei em pleno Festival Makuya, onde as tribos da região se reúnem para honrar as inúmeras histórias sobre como a vida era vivida e percebida. Sou um ponto fosforescente em meio a uma malha negra e linda de pessoas ornamentadas de suas crenças. Ando em direção aos batuques, encontro as danças em meio a nuvens de poeira levantadas pelos hábeis pés, me vejo entre rituais, fumaça, tambores aquecendo a pele no fogo, bichos. Vou tomada pelos cheiros – amendoim socado, ervas. Sem mais noção de tempo, vago conduzida por uma suspensão interna vinda de um frio na barriga constante. A senhora em transe se volta para mim, com ela, os olhos de uma multidão. A mão tremelicando me oferta uma pasta, me pede que coma. A expectativa se rompe quando coloco a mistura na boca e todos voltam a respirar. Com o portal de contato aberto, recebo toques curiosos dos que vinham verificar, com olhar sorridente ou nervoso, a temperatura da carne desta moça destoante. Experiência sem precedentes, visitar as raízes de nossas raízes me encheu de uma percepção ampliada, intrigante e importante da vida.Cansada como se tivesse viajado no tempo, busco as periferias deste centro tão pulsante tentando conseguir, em mímicas, um lugar pra dormir, um balde para o banho e uma refeição sem carne. Ahsante sana: Muito obrigada. Agradeço os olhos bondosos que acolheram esta esforçada Mzunga. 

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