por Redação

’’Aceitar e viver a minha transgeneridade é entrar num país que eu reconheço como meu’’, diz o cartunista

Um dos homenageados do Trip Transformadores deste ano, Laerte Coutinho é um dos mais importantes cartunistas do país, cujas tiras, charges e histórias refletem tanto os momentos políticos e as mudanças sociais no Brasil e no mundo quanto as angústias particulares. É também personagem, homem, mulher, transgênero e, sobretudo, humano.

Depois de quase 40 anos de carreira criando personagens libertários – como os Piratas do Tietê, Fagundes e os Palhaços Mudos – e de 61 de vida, passando por três casamentos, pela trágica perda de um filho e por crises pessoais, Laerte finalmente se sente em casa. “Eu me sinto em casa comigo mesmo, e não me sinto em casa em mais nenhum lugar”, diz. 

Nessa longa jornada, entretanto, teve que se reinventar algumas vezes. Em 2009, decidiu conhecer o mundo pela perspectiva feminina e passou a se vestir e a se comportar como mulher adotando a transgeneridade. Sua atitude corajosa lançou um novo debate sobre papéis sociais. A seu ver, só cultura diferencia homem e mulher. “Quando a discussão chega num padrão popular, os clichês se amontoam: homem é assim, mulher é de outro jeito, isso acaba sendo uma espécie de veredicto e as pessoas precisam se conformar. 'Você é mulher, então vai ter filho, vai ter que criar e se conformar com a agressividade do padrão autoritário masculino', como se fosse algo da natureza”, explica.

Para ele, no Brasil as pessoas ainda acham que não são preconceituosas. “O discurso do homofóbico moderno sempre começa assim: ‘Não tenho nada contra isso, mas...’. Daí vem.” Militante, faz parte da Abrat (Associação Brasileira de Transgêneros), que busca estimular o debate justamente para que as pessoas percam o medo de se reconhecer e “para as pessoas não se sentirem ridículas, erradas, bizarras, como o ponto de vista conservador faz questão que elas se sintam”. Ao se transformar, Laerte transforma e coloca em xeque as definições de gênero e os limites da liberdade individual. Leia a seguir a conversa que o cartunista teve com a Trip.

Quando você passou a ouvir e a respeitar a si mesmo e decidiu encarar o mundo sob a perspectiva feminina? 
É tão cheio de surpresas. Às vezes eu acho que vou fazendo as coisas meio no faro, sem raciocinar, sem pensar muito. Porque é muito frequente eu dar uma entrevista falando que eu faço uma coisa e depois ver que eu estou fazendo aquilo, como uma percepção a posteriori. Quando comecei a me interessar em me vestir como mulher, primeiro vi que não era uma motivação de fim de semana, mas do dia a dia, e por que não? Aí declarei numa entrevista e isso se tornou público, inclusive pra mim mesmo, como se eu fosse um público de mim mesmo [risos]. Mas eu acho desprezível esse tipo de separação ideológica homem x mulher.

Você disse anteriormente que gênero é algo socialmente construído, uma invenção cultural.
Eu não manipulo bem os conceitos de sociologia, antropologia e essas coisas todas, então eu me guio por instinto, porque não me parece uma coisa muito bem fundamentada essas questões de comportamento. Os antropólogos parecem meio indecisos em relação ao que é genético e ao que não é, ao fato de o ser humano ter se organizado assim ou assado, então, na hora que isso chega a um padrão popular de discussão, é evidente que os clichês se amontoam: homem é assim, mulher é de outro jeito, isso acaba sendo uma espécie de veredicto e as pessoas precisam se conformar. “Você é mulher, então vai ter filho, vai ter que criar, se conformar com a agressividade do padrão autoritário masculino”, como se fosse algo da natureza. Parece argumento de um garoto de 11 anos quando joga futebol, “ah, você não pode por isso e aquilo”, “você usa óculos, então vai jogar no gol”.

Então nada diferencia homem e mulher?
Nada, só cultura. Porque a gente aprende, ensina, com aquelas primeiras frases com que os bebezinhos são recebidos, a diferença sutil, mas permanente que se faz pra saber que é menininho ou menininha, são pequenos detalhes que moldam isso. E essa construção não se limita à vida familiar ou escolar, ela é também presença decisiva, para não dizer essencial, na linguagem da publicidade, na educação, na cultura, na produção de literatura, enfim, em tudo que nos cerca e que nos diz quem tem que ficar onde e o que é normal. E isso rege até o modo como o próprio ser humano se vê. Quando você pensa em um ser humano, todo mundo desenha um homem, to-do mun-do! Inclusive as mulheres. Depois de dois séculos de revolução feminista. Se você desenhar uma mulher, não é um ser humano.

Acontece um embate entre conceitos da sociedade e desejos, que são tão íntimos. Não te aborrece tantos termos pra definir algo tão pessoal?
Olha, a gente não tá nem começando [risos]. Quando certos conceitos se estabelecem, quando se descobrem determinadas possibilidades, seja em relação à física, à química, à sociologia ou o que for, a quantidade de subprodutos culturais e conceituais dali se multiplicam. Quando uma coisa dá certo ela se espalha, se populariza, o que não é necessariamente um mal. Quanto à questão dos nomes crossdresser e travesti, eu sei por que algumas pessoas usam crossdresser, sei de que maneira elas usam crossdresser, combato algumas dessas maneiras ou faço questão de ser crítico em relação a elas. 

Quais, por exemplo?
Por exemplo, quando o termo [crossdresser] vem carregado de classismo, de sexismo também, quando usam o termo pra dizer que não são travestis, tipo “nós somos finas, não somos que nem essas barraqueiras que vivem dando a bunda”, esse tipo de coisa. É classicismo, né? Gente de classe média que se considera melhor do que outras pessoas quando, na verdade, são todas pessoas transgêneras. Muitas vezes o termo também é usado como escudo para a pessoa se defender da acusação de ser uma pervertida, uma criminosa, uma pecadora, alguém que trai a sua família, seus filhos e amigos. E serve pra pessoa alegar que ela faz aquilo à maneira de um hobby, como algumas pessoas fazem escalada, outras colecionam selos... Eu não "faço crossdresser", sabe. Se a pessoa “faz” crossdresser, o crossdressering passa a ser uma coisa que ela faz, não uma coisa que ela é. E o que ela é na verdade? Ela é uma pessoa com desejo transgênero.

O travestismo, ou a travestilidade, ou o fato de a pessoa se travestir vem como um recurso de expressão porque o gênero está marcado, entre outras coisas, pelo vestuário, que é uma forma muito evidente. Outra coisa que também marca o gênero é o formato dos corpos, que recentemente tem sido uma coisa possível para as pessoas conseguirem modelar seus corpos. Tem sido possível as pessoas vestirem formas, formatos de corpo, além de vestirem roupas. Aí tem cintura, bunda, peito que são até orgânicos, biológicos [risos]. Você percebe a confusão e a falta de nitidez que permeia tudo? Não é só a questão das roupas, dos modos, dos gestos, das maneiras, é também o próprio corpo; pelo menos ultimamente a tecnologia humana tem possibilitado isso. 

Você disse que transgênero quer parecer uma mulher o quanto for possível. Tem algo que você costuma fazer que te faz sentir mais mulher?
É uma resposta difícil. Porque, pra começar, ela depende do modo como cada um exerce a sua transgeneridade. Já foi dito por aí que existem tantos gêneros quanto seres humanos, quer dizer que a marca do gênero, a busca da identidade de gênero, vai acabar sendo algo como a impressão digital, uma coisa única. E, na verdade, existe sim uma busca por um modelo, e esses modelos muitas vezes são comuns. “Ah, eu quero ficar parecido com a Cléo Pires ou com a Lady Gaga.” Tem isso, mas ao mesmo tempo  tem um processo pessoal em que cada um se avalia e acaba descobrindo a mulher que tem em si. Ficar parecida com a Cléo Pires ou com a Lady Gaga qualquer mulher quer [risos], não é privilégio de transgêneros. A revista Tpm tem se esmerado nos últimos tempos e números em trabalhar essa ideia, de que não existe mulher ideal, que essa imposição de modelos é uma coisa cruel, pra dizer o mínimo. 

"Eu não 'faço crossdresser', sabe. Se a pessoa 'faz' crossdresser, o crossdressering passa a ser uma coisa que ela faz, e não uma coisa que ela é. E o que ela é na verdade? Ela é uma pessoa com desejo transgênero."

Mas e em relação a você? 
Não sei. Tem certas coisas que são naturalmente tidas como masculinas, como, por exemplo, engrossar no trânsito, que uma grosseria e uma estupidez, e eu duvido que a pessoa faça aquilo e fique contente por estar se reconhecendo nisso, a não ser idiotas e animais. Mas as pessoas fazem isso condicionadas por suas educações também. Essa resposta que você me pede muitas vezes entra na intimidade mesmo, me refiro a intimidade entre quatro paredes, e aí não quero entrar. Porque o desejo pela feminilidade, o desejo transgênero é muito amplo. Eu atualmente não sonho mais que estou me vestindo de homem, nem tenho mais essas roupas. No meu sonho eu já apareço vestida como tenho me sentido. Não sonho que sou mulher, quer dizer, algumas vezes, sim, mas aí é uma coisa que fica clara no sonho. Sonho como tenho sido nos últimos anos, e incorporei isso no sonho. Então, no sonho, às vezes eu vejo um vestido que eu tô muito a fim, sabe [risos].  

Na entrevista ao Trip FM você fala do sentimento de ter um corpo sem pelos...
Quando eu depilei completamente pela primeira vez foi a minha primeira epifania [risos]. Eu olhei aquilo no espelho e falei: “Nossa!”. Eu tirei uma roupa, foi como se eu tivesse me vendo realmente.  

Sua história da esfinge, de certa forma, fala de alguém que teve que perder muita coisa pra botar o foco em si mesmo. O que você aprendeu com as suas perdas? 
No caso do meu filho [em 2005, Laerte perdeu um de seus três filhos, Diogo, então com 22 anos, em  um acidente de carro] eu nem gosto muito de pensar em aprendizado, porque passar por isso é tão atordoante, é tão maluco, que pensar em aprendizado parece uma coisa até  meio cínica. Várias coisas aconteceram. Mudanças e transformações na maneira de ver e de pensar em relação ao meu trabalho também. Eu tinha me decidido a começar a explorar a minha transgeneridade antes da morte do Diogo. A morte dele veio até como um inibidor, porque eu fiquei passado, mas não cheguei a desistir. Só adiou o processo. No trabalho, eu abandonei personagens, abandonei o modo tradicional como eu trabalhava as piadas e como construía o discurso humorístico, não abandonei o humor. Então eu passei a construir histórias com outra dinâmica, com outro modo de pensá-las, e, de um jeito, abre aspas, mais literário e poético, mais livre. Porque a construção do discurso humorístico, além de possibilitar o trabalho, ela é em grande medida também um procedimento que aprisiona o autor. 

 

 

 

E seguindo a história da esfinge, que pergunta te fazem que te dá vontade de arrancar um pedaço da pessoa? 
[Risos] Perguntas carregadas de maldade ou agressividade, ou coisas assim. Quando eu mal tava começando a me produzir publicamente, uma jornalista, que eu não vou dizer o nome, virou pra mim e falou: “Por que você tá fazendo isso? Você tá de calcinha agora?”. Sabe? Essa pergunta nem foi num tom agressivo, mas o jeito como ela perguntou era  claramente agressivo, como se a frase “que palhaçada é essa?” estivesse por trás dessa pergunta. Essas perguntas são as que me deixam alterada ou sem vontade de responder, porque são feitas com maldade. Fora isso, não tenho problema com pergunta nenhuma. Até com perguntas meio ardidas, como as que aquela mãe, na pizzaria, colocou (no começo deste ano Laerte foi impedido de usar o banheiro feminino numa pizzaria em São Paulo após uma cliente, que estava acompanhada de sua filha menor de idade, alegar constrangimento ao vê-lo entrar no banheiro).“Você acha que o mundo já mudou? Você acha que o mundo é diferente?” “O mundo não é diferente”, isso foi mais uma afirmação, porque eu tava discutindo meu direito de ir ao banheiro feminino e ela tava contestando dizendo que a filha dela tava lá [risos]. “O que você acha que eu vou fazer com a sua filha?”, aliás, “O que você acha que qualquer travesti vai fazer com a sua filha?”. Essa polêmica toda do banheiro pra mim deixou evidente a fragilidade dos argumentos e o modo claro como eles estão defendendo uma tradição pela tradição mesmo.

Toda linha de argumentação contrária aos direitos de as travestis usarem o banheiro feminino se apoia e se aferra à tradição, a um suposto direito adquirido pelas mulheres ditado por uma tradição mesmo, que é, na verdade, uma construção masculina, dentro da qual as mulheres se sentem num espécie de zona de conforto por inumeráveis motivos. Mas que levam a gente a pensar se representa realmente um ponto positivo você fazer um vagão de metrô só pra mulheres e, portanto, segregá-las? Em nome do direito delas de não serem assediadas? Então você tá liberando os assediadores, tá reconhecendo o direito deles. As pessoas não pensam nessas coisas, só pensam no imediato: “ah, eu quero ficar livre”. Eu também gostaria de ficar livre, mas não desse jeito, encerrado dentro de um vagão só pra mulheres, só pra negros, só pra gays. Esse tipo de pensamento é fascista, segregador.

"Eu também gostaria de ficar livre, mas não desse jeito, encerrado dentro de um vagão só pra mulheres, só pra negros, só pra gays. Esse tipo de pensamento é fascista, segregador."

Você acredita que pode servir de motivação para que outras pessoas se sintam à vontade para adotar essa liberdade de vida? 
Eu sou militante. Eu faço parto de uma associação, da Abrat (Associação Brasileira de Transgêneros), e a gente tá aí pra isso, pra discutir e estimular o debate. Justamente pra que as pessoas percam o medo de se reconhecer como transgêneras, como transexuais, como homossexuais, ou o que for. Para as pessoas não se sentirem ridículas, erradas, bizarras, como o ponto de vista conservador faz questão que elas se sintam. ‘‘Você quer que eu te aceite aqui? Eu te aceito, mas você é esquisito’’.‘‘Você quer que eu deixe você passear pela rua livremente sem ser presa como era 20 anos atrás? Beleza, só que você não pode entrar no banheiro que você achar mais adequado.’’ Então, as pessoas não reconhecem o direito mesmo e fingem que reconhecem. O discurso do homofóbico moderno sempre começa assim: ‘‘Não tenho nada contra isso, mas...’’. Daí vem. ‘‘Não que eu seja racista, mas...’’ Primeiro vem aquela salvaguarda negacionista e depois vem o discurso verdadeiro. ‘‘Travesti é palhaçada, negro é menos inteligente, mulher é burra, judeu é unha de fome, veado é inspirado pelo demônio’’, e por aí vai. No Brasil, as pessoas ainda acham que não são racistas. Uma pesquisa que foi feita no centenário da abolição [da escravidão], em 1988, que eu ainda acho que é válida pra hoje, perguntava às pessoas se elas se consideravam racistas e se conheciam alguém que era racista. A primeira pergunta teve resposta ‘‘não’’ em quase 100%. E na outra quase todo mundo respondeu “sim, conheço”. Ou seja, ninguém é racista, mas tá cheio de racista em volta [risos]. 

"A gente está aí pra isso, pra discutir e estimular o debate. Para que as pessoas percam o medo de se reconhecer como transgêneras, como transexuais, como homossexuais, ou o que for. Para as pessoas não se sentirem ridículas, erradas, bizarras, como o ponto de vista conservador faz questão que elas se sintam.

Você disse que chegou a uma fase da vida em que se sente em casa. Qual é a sensação?
É paradoxal, porque cada vez menos eu me sinto em casa no sentido do meio ambiente. A cidade do meu afeto, da minha juventude, das minhas experiências mais marcantes não existe mais. Existe uma outra onde eu tento surfar também, lógico, eu estou vivo aqui, moro aqui, pago meus impostos, ou alguns deles [risos], mas não é a mesma coisa. Tudo mudou de uma forma brutal. A rua onde eu cresci, pra onde eu me mudei quando tinha 5 anos e de onde saí quando tinha 20 e tantos, no Alto de Pinheiros, hoje só tem muros enormes e guaritas, e as ruas são frequentadas pelos guardas e vigias. Ao mesmo tempo, nenhuma outra cidade é a minha cidade, então eu me sinto em casa comigo mesmo, e não me sinto em casa mais em nenhum lugar. O meu sentimento é de que a cidade se acabou e eu preciso ir para um outro país. Mas me sinto em casa em relação aos meus sentimentos, pelo menos. Ter começado a aceitar e viver a minha transgeneridade é entrar num país que eu reconheço como meu.

 

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