João Filgueiras Lima, o Lelé

por Fernanda Danelon

Discípulo de Niemeyer na carreira e nas ideias, ele ajudou na construção de Brasília

Discípulo de Niemeyer na carreira e nas ideias, Lelé ajudou na construção de Brasília e ganhou brilho próprio com inovações como as que tornaram a rede Sarah de Hospitais uma referência de arquitetura racional e sustentável. Ganhador do prêmio Trip Vida Transformadora do ano passado, o inspirador de toda a edição que você tem em mãos extrapola a arquitetura e dá lições também de política, música, economia e até feminismo

Bruno Miranda / Na Lata

Lelé aos 3 anos, no barco com a mãe e uma amiga da família, nos arredores da Ilha do Governador, no Rio; ainda bebê, morando no Engenho Novo; fantasiado de cigano no Carnaval de 1935; e com os pais, Maria Emília e João, em frente à casa da família

A epopeia da construção da famosa casa de Tom Jobim no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, é bastante conhecida e muito bem contada no filme A casa do Tom – Mundo, monde, mondo, de Ana Jobim. Mas há uma pequena história deliciosa menos contada. Depois de pronta, a despeito de toda a dedicação ao projeto, o compositor entra na casa e repara que o pé-direito está mais baixo do que desejava. O que fazer? Chama o Lelé que ele dá um jeito, é a sugestão. O arquiteto carioca foi até lá, estudou e resolveu o problema com um golpe de mestre. Suspendeu toda a casa com macacos hidráulicos.

 

Buscar a solução mais eficaz e elegante é uma marca do arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, 78, que recebeu em novembro o Prêmio Vida Transformadora, principal homenagem da terceira edição do Prêmio Trip Transformadores. Nascido no subúrbio do Rio, filho de um pianista que acompanhava a projeção de filmes mudos, Lelé – apelido que ganhou por jogar na mesma meia-direita que o artilheiro do Vasco – cresceu músico, tocando acordeão em bailes, “boleros, música brega mesmo”.

Arquiteto discreto, mais conhecido e venerado por seus colegas do que pelo público, Lelé – que escolheu a arquitetura sem saber onde estava se metendo, só porque fazia boas caricaturas – começou sua carreira ajudando a construir Brasília. Ao longo dos anos, criou projetos ultrafuncionais, imprimindo sua marca não pelos desenhos espetaculares, mas pela integração do ser humano com o meio ambiente, pelo uso econômico dos materiais e pela inventividade para criar soluções ergonômicas e sustentáveis. Entre seus projetos mais famosos estão os prédios da rede Sarah de Hospitais de Reabilitação, a construção dos Cieps (Centros Integrados de Educação Pública), ao lado do educador Darcy Ribeiro, e dos Ciacs (Centros Integrados de Atendimento à Criança), do governo Collor.

RÚSSIA E CHINA
Comunista quase tão histórico quanto seu mentor Oscar Niemeyer, Lelé foi à Rússia e à China conhecer tecnologias de construção. “Na Rússia, fui em 1962. Era supercomunista, achava tudo aquilo ótimo. Para a China, fui nos anos 80, fazer palestras sobre tecnologia de construção. Era uma coisa atrasadíssima”, diz o arquiteto, que hoje apoia Lula e Chávez e para quem a sociedade passaria bem melhor sem o lucro. “Quando havia o socialismo em prática no mundo, havia uma proposta. Era uma maneira de dizer não. Havia alternativa. Agora não há. Existe outro regime aí?”, questiona.

Embora quase sempre trabalhe para governos, “uns bons e outros péssimos”, Lelé é um arquiteto que em toda a vida passou ao largo da competição. Uma postura que cultiva desde jovem. “Nunca entrei em concurso. Aliás, entrei uma vez só, com um amigo. Vi o projeto dele e ele o meu. Detesto competição. Isso ficou marcado uma vez, no colégio militar. Sempre gostei de esporte. Competia em salto em altura. Éramos dois bons. Fomos para a competição e empatamos em 1,80 m. Deixamos empatados. Os coronéis ficaram indignados porque queríamos deixar no empate e nos desclassificaram. Ganhou um cara que saltou 1,54 m [risos].”

Esse gênio inflexível em relação a suas convicções também transparece na arquitetura. Lelé não tem medo de recusar trabalhos com os quais discorde. Deixou de fazer um projeto para a IBM por achar a relação com a multinacional difícil. “Em outra ocasião, fui chamado para fazer a residência de um diplomata em Brasília. Mas o cara era muito machista, sabe? Na discussão do projeto ponderei que, se ele fizesse uma casa de três pavimentos com cozinha embaixo, precisava de uma copinha em cima. Aí ele disse: ‘Mas, se eu quiser água, minha mulher desce até a cozinha para pegar’. Desisti do projeto. Tem cabimento uma coisa dessas?”

Depois de morar no Rio, em Brasília e de passar uma curta temporada em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, Lelé se estabeleceu em Salvador. Mas mesmo na cidade não para quieto. “Gosto muito de mudar! Isso eu puxei de papai.” Hoje ele mora num apartamento na Barra, com seu piano, um bom sistema de som, um computador onde se diverte fazendo arranjos de músicas – seu “único luxo”. E até em casa seu gênio aparece discretamente. Os móveis são desenhados por ele. A casa é toda pensada com divisórias que transformam parte da sala em quarto para receber as filhas e os netos. Na área de serviço, há uma de suas engenhocas. Uma secadora de roupas feita por ele, com ventiladores. É lá que seca seus pares de calças que não precisam ser passadas e suas camisas listradas. Todos iguais, “para não perder tempo escolhendo roupa”.

Afinal, se tem uma coisa que não combina com Lelé é perda de tempo. Convivendo com um câncer na próstata há seis anos, o arquiteto não diminuiu o ritmo de trabalho e teve de inventar espaço em sua agenda para conceder esta entrevista à Trip em seu escritório em Salvador.

Você viveu em Brasília, Rio e Salvador. Por que escolheu morar aqui?
Fui escolhido por Salvador. A vida da gente, no fundo, é movida por questões acidentais. A gente planeja, planeja e tudo sai ao contrário. O segredo é deixar as coisas acontecerem. Essa coisa de eu ter vindo parar em Salvador foi completamente acidental. Assim como foi acidental eu ter virado arquiteto. Toda a minha vida foi acidental. Eu não conheço certas coisas radicais que mudaram minha vida. E não conheço nenhuma delas que eu tenha planejado. Nem a ida pra Brasília, que foi completamente acidental. Nenhum arquiteto queria ir embora pra Brasília. Num almoço um cara perguntou se eu não queria ir pra lá. Aí eu disse: “Eu quero”. E me pegaram pelo pé [risos].

Foi aí que você conheceu o Oscar Niemeyer?
Foi nesse período. Ele já era um arquiteto conhecido e relevante para a arquitetura brasileira, ele é 25 anos mais velho do que eu. E lá fui eu ao escritório dele, me apresentar, tremendo de medo. Mas o Oscar foi bastante gentil, como é da personalidade dele. E eu acabei me tornando discípulo e amigo. É a pessoa que mais me influenciou não só como arquiteto, mas também como ser humano. Costumo dizer que o Oscar tem verdadeiras obras-primas, já eu não tenho nenhuma. Pois não adianta querer fazer o que ele faz, eu não sou capaz. Eu acho que o ser humano tem que saber das suas competências, tem que ter essa noção de autocrítica e não querer dar um salto que ele não consegue dar.

Você chegou a Brasília recém-formado. como era?
Esse período de reconstrução no pós-guerra foi, digamos, muito simpático para a humanidade. Os chamados anos dourados, na década de 50, quando se acreditava que o mundo ia ficar uma maravilha! E a gente foi pra Brasília acreditando que ia mudar o mundo, havia uma solidariedade generalizada. Algo precioso que se perdeu com a globalização, com o estímulo ao consumo exacerbado e ao individualismo. Sinto falta do senso comunitário daquela época, quando as pessoas davam caronas nas estradas. O motorista não tinha receio de ser assaltado, nada disso.

"Gosto do Lula. Ele fez o que pôde, é bobagem achar que ia fazer uma revolução"

E como era conviver com um bando de homens jovens, isolados numa região ainda muito afastada?
A cidade mais próxima era Louisiana, um lugar parado no tempo. Não havia automóvel, as estradas eram precárias, de terra. No primeiro ano em que eu fiquei lá, em 1957, no período das chuvas, a comida tinha que vir de avião, porque a estrada principal estava completamente interditada com atoleiros. Foi um período bem difícil e, ao mesmo tempo, fascinante. Quando eu cheguei lá, tomei um susto. Eu estava acostumado com o Rio de Janeiro, aquelas montanhas no meio da paisagem... E, quando vi aquele horizonte sem fim, nem entendia. De noite eu ficava olhando aquele céu despejado por cima do cerrado...

O que aprendeu por lá?
Tudo. Levei tudo quanto era livro pra estudar à noite, porque não havia especialistas. E eu ficava desesperado, estudando pra resolver os problemas de engenharia, fundição, elétrica, hidráulica... O único contato que a gente tinha era com o escritório do Oscar Niemeyer, no Rio, com quem eu falava uma vez por semana, por 15 min, através de um rádio cheio de interferência. Assim, também aprendi muito com os próprios operários, com quem eu trocava informações preciosas. Aprendi a fazer uma casa inteira nessa época e construí, sozinho, a casa onde morei com minha ex-mulher, a Alda, que, aliás, mora lá até hoje...

E como avalia Brasília hoje?
Tenho uma ligação afetiva muito forte com Brasília, até porque fui pra lá para ajudar a construí-la, e havia uma enorme expectativa de nós, arquitetos, em torno da proposta. Agora eu acho que, em essência, Brasília como piloto eu continuo admirando, e seria uma coisa fantástica se esse modelo de cidade pudesse ser reproduzido. Mas hoje Brasília tem mais de 3 milhões de habitantes, está cercada por cidades-satélites, e aquele planozinho que o dr. Lúcio Costa fez é uma coisa que está estrangulada por um monte de concessões desajeitadas e desordenadas em volta. Mas as pessoas que habitam na superquadra, junto com as árvores e os passarinhos, certamente estão muito satisfeitas. Eu acho que Brasília é um momento de orgulho da cultura brasileira, ainda hoje.

Em entrevista à Trip há dois anos, você disse que gostava do Lula, mas tinha algumas críticas ao governo. Agora com esse fim de mandato, o Lula com 80% de aprovação, qual é a sua opinião?
Gosto do Lula, acho sensacional ter uma pessoa como ele no governo. E acho que o Lula não podia ter feito diferente, talvez ele até quisesse fazer algumas coisas diferentes, mas se ele tivesse feito já teria dançado, teria sido deposto. Então ele fez o que pôde, é bobagem achar que o Lula ia fazer uma revolução... Esse é o caminho do mundo, é inexorável. O que eu vou fazer? Ser comunista? Já fui mais, hoje eu sou contra o lucro.

Vai votar nas próximas eleições?
Voto sim. Vou votar na Dilma... Votaria no Lula outra vez.

E o que pensa desse atual momento da América Latina, com Evo Morales, Hugo Chávez?
Do Chávez eu gosto! Pra mim ele é uma personalidade fantástica. Um sujeito que está comprometido com o seu povo, que enfrenta todas as coisas pra defender o povo, eu acho que isso é a essência, é a sua postura. Agora, que ele faça algumas coisas erradas, isso é próprio do ser humano... Porque se a gente vê a miséria da Bolívia, desses países, é uma coisa surpreendente. A Venezuela é tão rica em petróleo, como é que ela chegou àquele nível de miséria que existia lá? E, com o Chávez, de repente o povo está acreditando, eu acho isso tão bonito. Acho que isso é transformação. A transformação não necessita obrigatoriamente de ser uma coisa coerente, correta.

Uma questão que sempre foi associada à sua obra é a da sustentabilidade. Mas esse conceito virou certo modismo... Isso o incomoda?
Eu detesto, detesto... Mas está dando lucro ser ecologista. E, na verdade, o discurso da sustentabilidade disseminado por aí não está sendo praticado. Porque a gente precisa economizar os recursos naturais e utilizar o que a natureza nos fornece de mais barato. Sempre que eu falo sobre esse tema, uso a imagem da abelha. As abelhas lidam com uma coisa absolutamente sofisticada e escassa, que é o mel. A abelha retira o pólen das flores, faz um sacrifício enorme para transformar isso em mel. E o incrível é que a forma escolhida para fazer a colmeia, em hexágono, é a mais econômica que se tem. Seria mais fácil fazer uma casa redondinha, mas intuitivamente ela tem o cuidado de fazer hexagonal, que é a forma de juntar um casulo com o outro economizando o máximo de material. Então, quer dizer, o que o ser humano tem que fazer daqui pra frente construindo seus casulos, suas casas, suas cidades é usar a abelha como exemplo...

Genialidade discreta

O Lelé é o Brasil que a gente queria ter. Numa época em que o arquiteto virou celebridade, ele resgata a profunda responsabilidade social da profissão”, diz Ciro Pirondi, arquiteto da Escola da Cidade. Lelé ganhou reconhecimento internacional por desenvolver uma arquitetura útil, sustentável e industrializada.

Nos anos 80, concebeu em Salvador a Faec (Fábrica de Equipamentos Comunitários) e montou uma linha de produção que possibilitava erguer creches em 15 dias e economizar até 50% em material de construção. “Essa tecnologia só não é reproduzida país afora porque não há interesse comercial nem político”, diz Ciro. Durante os dois anos que funcionou, a Faec construiu escolas, reformou avenidas e recuperou o centro histórico. “Em seus canteiros de obra, não há um único prego, um naco de cimento espalhado pelo chão. A obra é limpíssima e os operários muito educados”, conta o designer e arquiteto Rafic Farah.

Foi através da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação que Lelé concretizou seus sonhos arquitetônicos. Projetou prédios que aproveitam a luz e ventilação naturais, dispensando o uso de ar condicionado e diminuindo o risco de infecção hospitalar (“são os menores índices do mundo!”, conta Ciro, citando uma pesquisa suíça). Fora a conta de luz, que sairia em média por R$ 800 mil e fica em R$ 80 mil. Lelé também desenhou os equipamentos dos hospitais, como a emblemática cama-maca, que facilita os exames e a locomoção do paciente, levando-o para as áreas verdes que sempre permeiam seus hospitais.

Porque hoje se fala em uma maior conscientização e mobilização social...
Quanto mais se fala, mais se afasta. As pessoas falam em solidariedade e cada vez são mais individualistas. Então, o discurso é o oposto do que se pratica. Todo mundo sabe que o automóvel é uma coisa terrível em nossas cidades. E o que se faz? As fábricas produzem cada vez mais. Ao contrário de se criar restrições à produção, o discurso enganoso de que são as fábricas de automóveis que dão emprego é disseminado no mundo inteiro e assim eles recebem subsídios, proteções para fabricar cada vez mais automóveis. Então a direção é o oposto do que se quer, e isso me dá um susto.

Qual seria a saída para essa superpopulação de automóveis?
A grande alternativa seria investir em transporte coletivo, mas os investimentos são muito altos e a pressão que existe em torno do mercado automobilístico, da venda de automóveis, pelo sistema do neoliberalismo, da globalização, é muito grande, é internacional... A gente sabe que o discurso é falso, mas tem glamour. E, na medida em que tem glamour, a população está vendo televisão e comprando automóvel todos os dias. Como reverter esse processo? Isso aí é um mistério, é uma mágica que eu não sei como fazer.

Esse modelo de grandes metrópoles é irreversível?
Olha... Eu gostaria que houvesse uma retomada das pequenas cidades, que é a escala que o ser humano consegue conviver melhor entre si. Mas o próprio shopping é uma resposta de que esse modelo de megalópoles é irreversível. Enquanto houver a proliferação de shopping centers e os centros urbanos continuarem sendo centros de consumo desenfreado, a tendência é aumentar sempre. É claro que as grandes cidades têm algumas vantagens. São Paulo, por exemplo, é um centro cultural fenomenal. Nova York é uma maravilha, você chega lá e pode ir à Broadway, cada dia ver uma peça diferente, tem sempre um concerto. Mas eu acho que isso não é o suficiente, eu acho que as grandes aglomerações urbanas só servem para destruir mais rapidamente o planeta. Esse consumo desenfreado é brutal.

"Na verdade, o discurso da sustentabilidade não está sendo praticado"

Qual a sua perspectiva para os próximos 50 anos? Você acredita nas previsões climáticas catastróficas?
Não sei. De vez em quando participo de reuniões científicas, e tenho ouvido opiniões tão diferentes acerca disso que a gente não sabe até que ponto a mídia está manipulando... Eu não sei se as previsões estão tão catastróficas quanto estão sendo colocadas lá. Agora uma coisa me parece clara, a de que o planeta e suas espécies estão sendo destruídos e o ser humano não tem esse direito. Me parece uma perda inestimável. O ser humano é deste planeta. Não pense ele que vai morar na Lua, no planeta Marte, pois não vai não! Ele tem que morar aqui, porque nasceu aqui, foi fabricado aqui. Essa migração é praticamente impossível do ponto de vista biológico.

O que acha da captação de energias renováveis, como a solar ou a eólica?
Me parece que realmente a energia eólica seria a forma mais econômica. No último hospital da rede Sarah que a gente fez, lá no Rio de Janeiro, a gente usou placas de absorção solar para aquecimento da água. Agora eu acho que essas iniciativas não podem ser individualizadas, porque elas requerem investimentos muito grandes. Então acho que as grandes demandas pelas quais passa a humanidade agora, em questões de energia, requerem que essas ações sejam institucionalizadas através dos governos. Têm que ser coletivas, não pode ser individual. O que pode ser feito do ponto de vista individual é a economia. Na medida em que a gente restringe, por exemplo, o uso de ar-condicionado, a mangueira para lavar o quintal...

Não adianta captar água da chuva pra dar descarga?
Não adianta, isso que me angustia...

Fazer xixi no banho?
É horrível esse negócio. Você transfere para o indivíduo e ele acaba achando que solucionou o problema e pronto, fica tranquilo.

E como surgiram essas ideias mais inovadoras, de aproveitar a luz e a ventilação naturais?
Sempre fui ligado à natureza. Pra mim é genética. Nunca imaginei abrir mão da luz natural, da circulação natural.

Em uma viagem recente à Finlândia, reparei que eles usam a luz natural de uma maneira muito próxima da que você faz nos seus projetos...
Exatamente. Isso vem muito do Alvar Aalto, um arquiteto finlandês bastante conhecido. Eu acho que a Finlândia tem um papel muito importante no panorama internacional e me sinto muito influenciado pela arquitetura dele. Tem outros arquitetos da região da Escandinávia que também fazem isso. Acho que pela escassez de luz que tem lá, um inverno desgraçado daqueles..., então eles valorizam demais a luz natural.

Foi na rede Sarah de Hospitais de Reabilitação que você conseguiu exercer de forma mais plena a proposta de uma arquitetura industrializada?
Foi, acho que sim. Graças, principalmente, a Aloysio Campos da Paz, que foi presidente da rede Sarah. Ele me deu muita autoridade, botava as coisas pra funcionar. Pudemos montar o CTRS [Centro de Tecnologia da Rede Sarah], produzindo todos os equipamentos e as peças necessárias para a construção e manutenção dos hospitais da rede. Uma tecnologia projetada em função da locomoção e do bem-estar dos pacientes.

Foi um acidente, aliás, que te levou à arquitetura hospitalar, certo?
Estava em Brasília, era 1963, e tinha ido com a Alda, na época minha mulher, passar as festas de fim de ano no Rio. Quando voltamos, sofremos um acidente horrível. A Alda ficou muito pior do que eu, com uma perfuração no pulmão. Ficamos 60 dias internados num hospital de Brasília. Foi quando conheci o Aloysio. Descobrimos o gosto comum pela música e depois começamos a conversar sobre esse negócio de hospital.

Qual é a relação da música com a arquitetura?
Encontro uma analogia enorme entre as artes, todas as artes têm uma ligação estrutural muito grande. Uma identidade arquitetônica se constrói com ritmo. O exercício que tive com a música foi fundamental para o meu trabalho. Música pra mim é um objeto concreto.

E você continua se relacionando com a música, de alguma forma?
Sim, eu gosto! Gosto de compor, faço uns arranjos no computador, faço todos os instrumentos... Eu sempre toquei vários instrumentos, flauta, saxofone, atualmente eu só toco piano.

Você costuma dizer que não é igual a Niemeyer e que isso não o frustra, mas que se sente frustrado por não conseguir ler partitura...
Eu fiz um esforço terrível para aprender, mas não consegui. Acho que existe uma região do cérebro que comanda essa coisa de leitura de partitura que eu não tenho [risos]. Só pode ser. Eu não acredito que pessoas despreparadas, que não têm concentração, consigam ler partituras. E eu, que consigo me concentrar, não consigo!

Tem acordeão ainda?
Do acordeão me desfiz anos atrás, doei pra alguém... Mas tenho um piano novo agora, um Yamaha. A minha filha Adriana se formou em música. E ela toca música erudita bem. Mas também é arquiteta, trabalhou comigo e abandonou a música também... Mas nós estamos sempre ligados à música, na família...

Sua relação com a música vem de seu pai?
Foi, foi... Meu pai tocava em cinema mudo, né?

O automóvel é terrível nas cidades. E o que se faz? As fábricas produzem cada vez mais

E no começo você tocava em boate, na zona sul?
Na Ilha do Governador. Tocava na zona sul também, mas de vez em quando. Tocava em baile. Contratavam o nosso conjunto, e a gente ia tocar... Mas a gente tocava no subúrbio, meu padrão era o subúrbio mesmo [risos], bem brega...

E tinha essa influência do soul, do jazz, essas coisas assim?
Era música popular, a música popular nessa época era ainda antecedente da bossa nova, devo ter começado a tocar em 46, 47... A bossa nova foi em 60. Então a música, o padrão de música, era diferente, né?

Quando começou a bossa nova você já estava abandonando, né?
Eu já estava... É engraçado como isso tem significado. Entrei na faculdade de arquitetura e comecei a abandonar a música em 54.

Acredita que a infância no subúrbio do Rio contribuiu pra você se tornar um admirador e conservador da natureza?
Não, olha, eu, como pessoa, eu era... O fato de eu ter nascido no subúrbio, próximo à linha férrea da Central do Brasil, os meus pais pobres... Tive pouco acesso à informação e à cultura, eu era um débil mental... [risos]. No duro mesmo, eu não sabia... Basta dizer o seguinte, quando eu fui entrar pra escola de arquitetura eu não sabia o que era ser arquiteto. E olha que eu tinha feito o curso da escola militar, eu tocava na banda, essa coisa toda... Então pra mim aquilo foi um horror e o papai queria que eu fosse mesmo assim, porque isso daria uma garantia, uma estabilidade. Ser militar nessa época, logo depois da guerra, tinha um status fantástico, ganhava bem... Eu trabalhava como datilógrafo, mas gostava de fazer desenho. Então um suboficial me disse: “Por que você não vai fazer arquitetura?”. E eu: “Mas o que é arquitetura?” [risos], eu não sabia... Pra você ver o meu nível de ignorância...

No vestibular você não tinha nem uma régua T, não é?
[Risos] Não, aí eu comprei uma desse tamanhinho, que era a mais barata. Quando cheguei lá, os caras debocharam: “Mas que porcaria!”. Aquilo me ridicularizou. Uma coisa deprimente, mas afinal me emprestaram uma régua.

Quando entrou na faculdade, como foi o contato com os estudantes da elite carioca?
Me sentia tão mal quando eu entrei na faculdade, então me juntava com os suburbanos. Eu não sabia nada, era ignorante. E então um amigo do subúrbio tinha um primo que era um arquiteto importante, o Aldari Toledo, com quem aprendi depois muita coisa. Ele morava em Copacabana e nós íamos lá ao fim do dia pra conversar. Foi a biblioteca do Aldari, que também era pintor, que me ajudou a sair daquela ignorância completa. Mas eu não perdi as raízes do subúrbio, eu sempre fiquei numa condição dúbia. Ao mesmo tempo eu queria voltar pra Ilha do Governador, voltar lá pro subúrbio...

Você tem três filhas e três netos. Como é sua relação com a família?
Eu sou separado, mas a Alda e eu continuamos em contato. Temos uma filha com paralisia cerebral. A Luciana hoje está com 49 anos e sobrevive por causa da Alda. Eu a conheci em Brasília, ela também é arquiteta. Aí nós casamos e a primeira filha foi a Luciana, que nasceu com esse problema. A deficiência dela é terrível. Mas a Alda se dedicou a vida inteira pra Luciana. Ela é uma excelente profissional, mas abandonou a carreira. Luciana vive deitada e se comunica pouco. Alda cuida dela o tempo todo, a vida inteira. É uma coisa que eu respeito muito, essa dedicação.

Foi essa dedicação que acabou permitindo que você pudesse se aprofundar na sua carreira?
Claro. E ela sacrificou a vida profissional dela. No princípio ela até viajava comigo. Mas depois parou.

E, mesmo assim, você tiveram mais filhos.
Duas. Uma é jornalista. E a outra arquiteta. Mas eu sou muito ligado a elas. E elas também. São mais ligadas a mim do que à Alda. Sou muito mais doce [risos]. Sem comparação!

Você é uma pessoa mística?
Não, mas tenho uma porção de... Não digo superstição, porque não sou uma pessoa supersticiosa. Mas eu tenho manias. Por exemplo, o número 13. Sempre que eu olho no relógio tem algum número 13. E sempre puxo alguma coisa no subconsciente que me leva pro número 13. Já me acostumei.

E a camisa branca?
Visto todas as sextas-feiras. Mas aí é por respeito ao povo baiano daquela época. Jorge Amado se vestia todo de branco. Caymmi também. Eu imitei.

Mas acredita em Deus?
Não. Não acredito mesmo.

Já experimentou drogas?
Só uma maconhazinha, pra experimentar. Mas não aderi não.

Pegou essa fase de drogas e rock’n’roll?
Peguei, peguei. No escritório, quando eu chegava, era aquela fumaceira terrível. Cheiro da maconha, todo mundo drogado de maconha. Maconha virou moda na época.

Dizem que pra desenhar é bom, não é?
É. Eu de vez em quando fumava assim. Mas esses entorpecentes mais fortes eu nunca experimentei não.

E esporte?
Hoje não dá mais [risos]. Fui deixando por causa do problema no coração. Mas faço exercício sim. Até pelo problema no coração.

Falando em saúde, você tem câncer...
Tenho câncer de próstata há seis anos. Não fiz a cirurgia e passei por uma radioterapia violenta. Mas o câncer não foi embora...

E como vê as medicinas alternativas?
Tomo babosa todo dia pro câncer, não sei se tá fazendo efeito... Mas, por via das dúvidas, eu tomo... Tenho um pé de babosa em casa, então eu corto e faço uma receita, misturando com mel e um pouco de whisky pra conservar.

Isso é remédio fitoterápico para câncer?
É. Bem, eu li num livro dizendo que era. Nada comprovado.

Você se habituou à doença, chega a esquecer dela às vezes?
Acho que isso eu não esqueço nunca. Você sempre fica pensando, vai dar certo, vou ter tempo suficiente? E ainda toma esses remédios fortíssimos, fica apreensivo, com medo de ficar vegetal numa cama...

Nunca esqueço do câncer. Fico pensando: vou ter tempo suficiente?

E, nesses casos, é a favor da eutanásia?
Não sei... Não é que eu seja favorável porque, na verdade, se o sujeito quiser morrer, tudo bem. Posso até discordar, mas é um direito, se a própria pessoa puder expressar o seu desejo. Mas não acho que o médico ou a família possam julgar quando o outro deve morrer...

Tem medo da morte?
Não. Eu quase morri uma ocasião, por causa de um enfarte. E aí eu já estava pra morrer mesmo. Porque tinha que abrir uma veia e não conseguiam abrir. Aí fizeram cateterismo, angioplastia. Uma dor danada. Pensei: “Melhor morrer”. Já estava frio, gelado, senti que estava morrendo. Depois o médico confirmou que eu escapei por um triz, porque eles conseguiram afinal desentupir. Ninguém quer morrer, todos querem viver mais um pouquinho. Mas eu tenho a sensação de que quando está próximo o sujeito aceita. Eu acho que aceita. A não ser quando é uma morte violenta, assim, que você não está preparado. Se você está preparado, mesmo que em pouco tempo, aceita.

Se considera uma pessoa realizada?
Hummm, eu acho que não... Não acredito que ninguém se considere realizado. Essa insegurança que se tem em relação a si mesmo é importante pra você melhorar. Enquanto você achar que não está bom, você está evoluindo.

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