Em cartaz no teatro e no cinema, a atriz relembra a fase difícil de sua carreira, fala do desamparo do setor da cultura e da intenção de nunca deixar de atuar. ”Me vejo assim até o último momento”
Niteroiense nascida em uma casa de artistas, Júlia Rabello começou a fazer teatro aos 9 anos. Mas foram os vídeos de humor na internet que a tornaram conhecida pelo grande público. Como integrante do grupo Porta dos Fundos entre 2012 e 2016 ela protagonizou vídeos memoráveis e de grande sucesso como o Sobre a Mesa, que hoje soma mais de 26 milhões de visualizações.
Descoberta sua aptidão para comédia, Júlia não parou mais de fazer o público rir em novelas, filmes e séries. Hoje ela integra o Fora de Hora, programa da Rede Globo. E segue fazendo humor na internet, como apresentadora do Fale Conosco, programa que completou 3 anos no YouTube do canal GNT. E mesmo em meio às condições adversas colocadas pela pandemia, com teatros e salas de cinema fechados, Júlia voltou aos palcos neste ano com a peça Romeu e Julieta (e Rosalina), que pode ser assistida ao vivo via streaming, e estrela também o filme de suspense Volume Morto. Em conversa com a Trip, ela falou sobre trabalho na quarentena, o descaso do governo com a cultura e o que pensa sobre envelhecimento e morte.
Trip. O início da sua carreira, assim como o de muitos atores, foi de muita ralação. Como foi esse período?
Júlia Rabello. Eu venho de uma família de artistas. Na minha família tem mais músicos, e eu tenho isso como influência. O meu irmão, que é dois anos mais velho que eu, descobriu aos sete que era pianista erudito. Hoje ele mora na Europa, faz concertos, mas desde os sete anos ele estuda piano oito horas por dia. E aí eu comecei, aos cinco anos, a tentar descobrir o que eu era. Me descobri aos nove no teatro, fiquei completamente apaixonada pelo ofício, por tudo. Não fui atriz mirim, eu estudava. Aos 16, entrei na CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), que era o curso profissionalizante. Amei, mas quando me formei, aos 18, entendi que não estava me formando uma atriz, estava me formando uma desempregada, pois o mercado era dificílimo. E eu nunca me enquadrei no perfil das meninas bonitas que eram chamadas para teste. Saquei muito rápido que eu estava lascada. Então abri, junto com duas amigas, uma produtora e resolvemos montar uma peça de teatro, que de início já foi muito grande, um musical em homenagem ao Cartola. A Dona Zica Gentil [esposa do Cartola] estava com a gente, abençoou o processo. Conseguimos um samba enredo inédito do Emílio Mello de Carvalho e do Paulinho da Viola para a peça, conseguimos patrocínios, fizemos uma produção super profissional. Então eu ia produzir para poder fazer os meus trabalhos como atriz. Só que o mercado absorve muito mais os produtores do que os atores. O perrengue era esse, eu tinha que produzir porque eu tinha que pagar as contas, porque eu já estava começando uma vida adulta, mas, ao mesmo tempo, eu não estava seguindo a profissão que eu amava. Nesse conflito foram dez anos. A gente produziu algumas peças muito interessantes, muito bonitas. Mas chegou uma hora que eu abri mão disso, que eu falei: "ou eu vou virar produtora, ou eu sou atriz". Resolvi desistir da carreira, fui estudar para concurso público. Durou duas semanas. Aí eu entendi o seguinte: que eu seria atriz nem que fosse para apresentar uma performance na praça pública. Quando eu assumi isso para mim, o vento começou a vir a favor. Eu montei uma peça de humor pela primeira vez, que ia pouquíssima gente. Mas na sequência o Jô Soares me chamou para protagonizar uma peça dele, e o Porta dos Fundos aconteceu. Foram uns bons 14 anos de vento contra. Essa profissão é complexa, é uma profissão que, de início, você faz investimento financeiro e não tem retorno. Para quem quer ser ator e não tem família ajudando, é bem difícil.
Fiquei curioso para saber... Que concurso você ia fazer? Do BNDS, porque eles tinham um programa sério, bonito, de patrocínio cultural. Eu pensei: "Tá, se eu for no BNDS posso, lá por dentro, cair em cultura de novo". Eu não tinha como fugir disso.
Em uma participação na Casa Tpm em 2018, você falou que foi velha desde que tinha 12, 13 anos, e que ia envelhecendo e as pessoas não percebiam. Como piada é muito engraçado, mas deve ter sido sofrido. Isso era um problema para você? Isso sou eu fazendo uma caricatura, tem uma brincadeira, um exagero. Eu nasci com cara de 40 anos. Se você pega uma foto minha aos 20, eu tinha cara de 40. Eu estou com 39 agora, quando eu estiver com 50 vou ver se a cara vai ser para sempre a de 40 anos, ou se Deus me fodeu e me colocou para envelhecer como todo mundo. Eu sempre tive um rosto que eu considero forte, grande, e uma voz mais grave, e eu falo as coisas de uma maneira muito incisiva, então eu acho que sempre fui muito intensa, sabe? Lembro que eu sempre achei que tinha cara de mais velha do que eu era. Aliás, isso foi uma coisa boa quando eu tinha 15 anos, que eu queria entrar nas boates para maiores de 18 e ninguém me pedia a carteira de identidade. Mas, uma vez, eu entrei num chat sobre o Porta dos Fundos e as pessoas começaram a falar sobre as meninas do grupo. Um monte de elogios e só tinha um comentário que era assim: "Júlia Rabello: cara de velha, voz de homem, sem mais". Eu fiquei arrasada com aquilo. Meu Deus do céu. Você vê, um monte de comentário legal, a gente guarda qual na cabeça? Esse.
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Como é que tem sido a sua vida nesse isolamento? Um dos meus problemas é o vício no trabalho. Eu faço um trabalho do qual eu gosto muito, e várias vezes ultrapasso o limite saudável, trabalho muito mais do que deveria trabalhar. E a primeira coisa que a pandemia cortou foi o trabalho. Ainda faltavam quatro episódios do programa que eu estava fazendo, o Fora de Hora, da Globo, e foram cancelados por conta da pandemia. No primeiro momento, ainda no susto, uma parte de mim pensou: "Vai ser bom poder dormir um pouco, descansar". Claro que apavorada com tudo o que podia acontecer. Só que no segundo mês eu peguei Covid-19, aí fiquei um mês doente, meio mal, mas não precisei ir para o hospital. Logo que eu me recuperei a Ana Beatriz Nogueira me ligou falando de uma peça, desse projeto que ela está fazendo, chamando várias pessoas para se apresentarem no teatro, com a bilheteria revertida para as pessoas da área que ficaram sem emprego. E eu tenho estado envolvida com essas coisas. Para além disso estou fazendo planos, projetando o que vem pela frente, mas também não tem como saber, é uma agonia enorme. No dia a dia eu administro bem as coisas. Claro que sinto falta dos amigos, mas fazendo essa peça eu tenho saído um pouco, para além de estar aqui em casa, já dá um respiro.
A peça é encenada no teatro mesmo? No Teatro Petra Gold, que fica aqui no Leblon, vou a pé. Funciona da mesma maneira de sempre, com exceção de que a plateia está assistindo de casa. A gente vai pra lá, tem um cenário, tem iluminação, tudo isso. Só que a plateia está assistindo através das câmeras.
Um dos impactos mais violentos dessa pandemia é grana. O dinheiro pra muita gente desapareceu. Claro que pessoas privilegiadas sofrem menos, mas boa parte da população foi impactada de alguma maneira. Como está sendo para você, com essa pausa nos trabalhos? Olha, se você me perguntar isso e eu me comparar com a população da Suíça, eu tô na merda. Agora se você fizer um recorte do Brasil, eu estou super bem. Quando você olha para além dos muros de onde a gente mora, é muito assustador o que está acontecendo. Quando eu comecei a entender que essa pausa ia durar muito tempo, eu fiquei assustada, porque além da pandemia a gente tem um governo que está indo completamente contra a cultura. É muita agressão ao meu setor, ao mercado de trabalho. Isso me faz ligar a luz amarela com certeza. Eu tento me planejar, mas ao mesmo tempo a gente não é só a gente, a gente é o nosso redor, a nossa família, nossos amigos; a gente é a galera que tem o mesmo meio de trabalho que a gente. Não dá para pensar que é só o meu e sentar em cima de um colchão de dinheiro. Não que eu tenha, tá, mas tem que se equilibrar nesses pensamentos. Não é simples pra ninguém, mas para algumas pessoas é sobre-humano. Indo ao teatro um moço veio me ajudar, e aí eu comecei a conversar com esse moço. Me lembrei que ele era um baleiro que ficava na porta no teatro, e ele me contou que ele está morando na rua. Conversando com as pessoas você vai vendo a proporção disso na vida de cada um. E tem quem fique mais rico, então vai entender.
Você ainda é muito jovem, acaba de completar 39 anos, mas os 40 para muita gente pesa, representa toda uma cobrança, tem uma mística em torno dele. Para a mulher, considerando toda a formatação machista da sociedade brasileira, a cobrança é ainda mais pesada. Existe todo esse movimento rompendo esse tipo de de cobrança, mas queria saber como tem sido para você lidar com essa ideia de estar chegando perto de certas linhas que têm supostos significados. Eu sempre tive um olhar para a fase da velhice, sempre foi um assunto que me interessou desde muito nova. A gente vive numa sociedade que descarta o idoso. O ser humano entra numa fase em que teoricamente ele não contribui mais e ele é descartado. O que importa para o homem é o poder, então é a cadeira que ele senta, o dinheiro que ele tem. E para a mulher é a beleza, e por isso a mulher é descartada muito mais rápido, quando ela começa a sair do período fértil e tem transições físicas. A mulher tem que parir, criar a humanidade e, quando já não tem a beleza para satisfazer os homens, ela é descartada. Eu acho que seres humanos não têm que ser descartados. A gente vive uma caminhada, cada parte é significativa, cada fase é importante. Eu gostaria de viver em uma sociedade onde a gente tivesse esse cuidado com todas as fases, mas a gente também não tem cuidado com a infância. São duas pontas importantíssimas, né? A maneira que eu lido é tentando entender, ler, para poder falar sobre. Mas a pressão estética é violenta. Essa brincadeira que eu faço de que eu nasci com cara de 40 anos, quase não é verdade, mas é uma pressão estética tão grande que a maneira de eu brincar com isso é essa. O humor me salva nesse sentido porque eu debocho, mas debochar não significa que não existe algum lugar me alfinetando. Eu não sei para onde a gente caminha, a gente está ficando uma sociedade cada vez mais visual, tudo isso importa. Mas ao mesmo tempo também a gente começa a ver um movimento de corpos livres. Tomara que a gente aprenda a entender o valor do que tem a maturidade. Eu não sou mais uma pessoa no início da fase adulta. E eu ainda tenho, teoricamente, estrada pela frente, mas já começo a ver o que a caminhada faz: a mente que eu tenho hoje eu não gostaria de trocar pela mente de ontem. O envelhecer é uma coisa que tem que ser trabalhada, você não pode se entregar ao tempo. Você também tem que se trabalhar para poder ter uma maturidade interessante.
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Em uma entrevista em 2018 ao Paulo Tiefenthaler você disse que pensa muito na morte. Você disse: 'Sempre pensei no fim da vida. Como isso é um pensamento muito recorrente e eu tento dar valor e significado à minha vida. Quando eu sinto que estou muito na rede social eu falo, caramba, daqui a pouco acaba a vida e eu estou gastando nisso aqui'. Um dos pilares do budismo tibetano é entender que é tudo transitório, tudo muito passageiro, nada é estável, nada vai ficar, e isso é um alimento para que você desfrute mais do momento presente para que você de fato tem é o aqui e o agora. Me fale um pouquinho mais dessa sua relação a morte. Quando eu saquei o lance da morte eu acho que fiquei tão desesperada que, ao invés de virar a cara para ela, eu quis olhar. Então eu lembro muito daquele filme do Ingmar Bergman [O sétimo selo], no qual a pessoa joga xadrez com a morte. Se você conversa com a sua morte, se você pensa que você tem finitude, começa a entrar no quanto que você está dando significado para o momento de agora. Eu fui criada numa família católica, então tem essa coisa de projetar o depois. Mesmo que tenha um depois, que tenha o Nosso Lar, o pessoal de branco me esperando para me abraçar, se eu estou aqui, eu tenho uma responsabilidade. Se eu pensar na minha morte vou lembrar que as outras pessoas também vão embora. Se não a gente fica anestesiado, você entra numa rede social e passa uma hora, muito rápido. É importante olhar para o tempo e como você significa ele. Lembrar que existe morte faz com que façamos boas escolhas no período que temos, e que a gente nunca sabe qual é.
A gente falou sobre envelhecimento, mas eu queria saber no aspecto do trabalho, como você se imagina em 30 anos? Nesse período em que eu estou fazendo teatro on-line o meu diretor recebeu uma ligação da Nathália Timberg, que já passou dos 80, porque ela está pensando na peça de teatro que ela vai fazer, e queria conversar com ele sobre o texto. Eu me vejo assim até o último momento, se eu puder. Esse é o meu sonho, estar que nem a Nathalia Timberg, se Deus quiser chegar aos pés dela de tamanho, mas pensando, apaixonada ainda por isso que a gente faz. Claro que com um teto, comida, mas tendo a oportunidade de trabalho. O artista precisa ter espaço de trabalho, isso é o que dignifica a gente. E aí volto de novo ao governo: se você vai contra a cultura, se você taxa livro, como é que se faz arte? Valorizar o artista não é um favor que você está fazendo a ele, é uma relação de troca. O artista vai oferecer alguma coisa importante também para a sua vida. A vida é uma coisa louca que tem um início, que tem um fim e no meio você tem que criar significado para ela, e a gente é profissional de contar história e de criar significado.
Créditos
Imagem principal: Chico Cerchiaro