Você tá me ouvindo?

por Carol Sganzerla
Tpm #80

Já parou pra pensar em como é o mundo sem som?

Já parou pra pensar em como é o mundo sem som? Mergulhamos no universo silencioso de duas mulheres surdas e descobrimos como é crescer sem ruídos

 

 

Palavras ao pé do ouvido, água da chuva na janela. Risada de neném. Chamar de mãe. Ouvir um "mamãe". Comemorar um gol. Receber aplausos. Bocejo. Suspiro. Espirro. Oração. Uma roda de fofoca. Um desfile de Carnaval. A música preferida. A voz predileta. Hino nacional. Barulho de onda. De cachoeira. Apito de chaleira. Latido de cão. Miado de gato. Canto de pássaro. Bexiga explodindo. Parabéns cantado. Seu nome chamado. Champanhe estourando. Fogos assustando. Avião decolando. Helicóptero voando.

Você, ouvinte, que entende com clareza todas as sensações que as ações acima causam, não conseguiria imaginar como é não senti- las. É difícil entender o que se passa pela cabeça de quem foi privado de um dos mais importantes sentidos do corpo humano: a audição. Lembrando que muitos surdos não conseguem nem sequerouvir a própria respiração.

Segundo estimativa feita há três anos pela Organização Mundial de Saúde, 278 milhões de pessoas no mundo têm perdas moderada ou profunda de audição - ainda existem a surdez leve e a severa -, causadas pela hereditariedade, por viroses maternas ou pelo uso de drogas com efeitos tóxicos sobre os órgãos ou nervos responsáveis pela audição. No último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), realizado em 2000, o número de surdos no Brasil somava 166.400, destes, 80 mil mulheres. Vanessa e Sueli, que você conhece a seguir, fazem parte dessa estatística. Nasceram deficientes auditivas, fizeram barulho com suas histórias e agora buscam deixar vidas silenciosas menos paradas. Em comum, adoram falar, cada uma à sua maneira. Não conhecem a própria voz, mas querem ser ouvidas.Nem que seja por meio da Libras - Língua Brasileira dos Sinais -, reconhecida como meio legal de comunicação e expressão em 2002. Ao contrário da opinião comum, a língua de sinais não é universal nem nacional. Por conter muitos elementos regionais, ela chega a variar entre cidades de um mesmo país, o que dificulta a comunicação mesmo de quem tem a Libras como língua materna. Peculiaridades sobram no mundo dos surdos. Vale a pena chegar mais perto para ouvir.

Vida de miss

Nenhum homem ali escapou de conferir o 1,78 metro de altura que perfumava o restaurante logo cedo.Ou melhor, 1,85 metro. O relógio marca 9h e Vanessa Vidal já está 7 centímetros mais alta em um salto preto de strass, rosto com a trinca base-rímelgloss e cabelo impecável. Miss que é miss carrega a coroa aonde for. Mesmo num café-da-manhã de hotel em Curitiba, onde participaria de um evento. Em março deste ano, a modelo foi eleita Miss Ceará e, no mês seguinte, conquistou o segundo lugar no Miss Brasil, o que a qualificou para representar o país no Miss Beleza Internacional, disputado em novembro, em Macau, na China.

 

Os olhares que admiram sua beleza também transparecem surpresa. É difícil não se espantar que Vanessa fala e "ouve" com as mãos. É notável a interrogação no rosto de quem a vê: "Tão bonita e surda?". Sim. E entrou para a história dos 54 anos do Miss Brasil como a primeira deficiente auditiva a disputar o concurso.

 

Por mais que não escute - ela é surda congênita, de causa desconhecida - e fale com dificuldade, é expressiva nos olhos e no sorriso. O olhar forte - e a leitura labial - flagra toda conversa, como acontece na entrevista, que foi acompanhada de uma intérprete de Libras. A cearense adora falar. O que mais gostaria de ouvir? Uma voz ao celular e fofocas.

Vanessa nasceu há 24 anos em Fortaleza para ser a única deficiente auditiva da família de pais separados - uma dona de casa e um administrador -, uma irmã mais velha e dois irmãos, estes do segundo casamento do pai. A notoriedade da miss a fez trancar por ora o curso de ciências contábeis na Universidade de Fortaleza, na qual conseguiu ter um intérprete nas aulas. Segue nos estudos de letras (Libras) na Universidade Federal do Ceará e continua ativa na Comissão de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência (Compedef).Embora seu mundo pareça quieto aos olhos de quem ouve, em nada o é.Vanessa se mexe para que outros deficientes auditivos não fiquem parados. Porque ela não fica: dirige seu carro e dois meses atrás estava em um trio elétrico, no Carnaval fora de época da capital cearense. "Quando a música é muito alta, consigo ouvir um pouco. Dá para sentir a vibração e dançar. Todo mundo fica: ‘Uma surda consegue dançar?'. Consegue sim", conta ela, que não perde um pagode e adora sair à noite Foi numa festa, há nove anos, que conheceu o ex-namorado, também deficiente auditivo, com quem rompeu por causa de ciúmes. Também pudera, namorar uma miss que recebe tantos olhares, haja olho aberto e orelha em pé.

 Cursos da vida

Foi num olhar que Sueli Ramalho percebeu que seu filho, Felipe, recém-nascido, era ouvinte. A certeza de que seria deficiente auditivo, como ela, veio abaixo quando, no quarto do hospital, o som da batida de um copo na mesa acordou o pequeno. Sueli e a avó do garoto se entreolharam e bateram palmas perto dele. Bebês surdos não se mexem com tal ato. Felipe então piscou.

Ali bateu o desespero de ter pela frente a criação de um filho que, ao contrário de sua família - pais, tios, avós e bisavós paternos -, ouvia desde a barriga. Uma das aflições de Sueli era que fechar uma porta, arrastar uma cadeira, ruídos para ela inexistentes, poderiam ser irritantemente altos para ele. Hoje, o filho tem 24 anos, a mãe, 43. Felipe, que ainda criança se sentia fora da família por escutar, não trocaria sua condição de ouvinte. Já Sueli chora ao dizer que a voz do menino é o que gostaria de poder ouvir. E emenda: "Me contaram que voz de homem e de mulher são diferentes, né?".

Embora tenha surdez profunda, fala ininterruptamente bem. Não foi preciso intérprete, tampouco papel e caneta. Com a leitura labial e o aparelho auditivo (que controla o volume de voz e ajuda a identificar as vogais, exceto o "i"), o papo flui como se ela ouvisse as marteladas da obra próxima dali. Talvez por isso perdeu a conta de quantos CDs já ganhou.

 

Sueli carrega desde a infância a curiosidade em saber o que era falado no Pica-Pau e no Tom & Jerry."Ficava vendo desenho para tentar adivinhar", lembra. À televisão só assiste com legenda; por isso nunca viu um filme nacional. Nascida no interior do Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo ainda menina. Em pouco tempo na escola de ouvintes, tornou-se ponte entre o mundo e a família. Enquanto ensinava o alfabeto manual às amigas, aos 4 anos, aprendia que muitas coisas, que na Libras são descritas, ganhavam nome no português. O que assimilava, ensinava à família e à comunidade que não teve contato com a língua portuguesa. Na época, não havia escola especializada. Com reforço escolar, aos 17 anos Sueli pôde se oralizar.

 

Boas vibrações

Com a mesma idade foi descobrir que o corpo produzia som. Seu primeiro namorado, ouvinte - pai de seu filho, de quem é separada -, comentou um dia que o pai dela havia soltado um pum.Achando a atitude grosseira, Sueli terminou a relação. Porém, um segundo namorado confirmou o ato. "A descoberta foi um marco. Meu pai comprou uma placa de isopor e ficou mostrando a vibração que o pum fazia. A partir daí comecei a ir a escolas para ensinar às pessoas a não darem vexame", conta.

Sueli diz que nunca namorou um deficiente auditivo: "Muitos surdos me têm como professora, irmã, mãe, porque fui intérprete deles. aí fica estranho", solta ela, que é casada com um mexicano. Formada em letras (português e espanhol), Sueli dá aulas de Libras para professores, é intérprete, fala 32 línguas de sinais, é supervisora de intérpretes na Uni Sant'Anna, em São Paulo, e, com o irmão, também surdo, toca a Cia. Arte & Silêncio, com a qual se apresentam em escolas especiais, ONGs e empresas a favor da inclusão social.

Eles estão fazendo a diferença. E você?

AUTONOMIA PARA TODOS

Como os surdos relatam a dor? Essa foi uma das perguntas que a vereadora Mara Gabrilli (PSDB) fez quando se deu conta da dificuldade que os deficientes auditivos têm de se comunicar com autonomia com quem não é familiar a Libras (Língua Brasileira de Sinais). "Apenas 15% dos surdos conseguem escrever o português. Comecei a conhecer vários deles e eu não podia me comunicar, pois não conhecia a Libras e, se conhecesse, não conseguiria falar por não mexer os braços", conta a vereadora, que ficou tetraplégica num acidente de carro há 13 anos. Lutando pela inclusão dos portadores de deficiência, Mara criou a lei - sancionada em junho passado pelo prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab - que determina na cidade uma central de intérpretes da Libras e guias intérpretes para surdos cegos, para facilitar a comunicação das pessoas com deficiência. A lei manda que intérpretes e guias intérpretes estejam disponíveis 24 horas em subprefeituras, delegacias, hospitais, entre outros órgãos públicos, atendendo às solicitações pessoalmente ou por meio de webcams. "Todo surdo que conheço reclama da falta de intérprete. E esse profissional é a porta da vida para eles. Imagine se tirassem a minha cadeira de rodas. Ou então a assistente que se movimenta por mim 24 horas? Consegui captar a dimensão da necessidade e, agora, eles terão acesso aos serviços da prefeitura e a oportunidade de ter qualidade de vida", conclui.

PAPO DE MULHER

MUITO BARULHO POR NADA

Sem menosprezar o sofrimento e as conquistas das pessoas que têm problemas auditivos, estamos ficando surdos de tanto ouvir

Na surdez há um silêncio imposto, obrigatório, uma dura privação. O não-silêncio do mundo contemporâneo também é imposto, obrigatório, dele também não há como escapar. Ao dizer isso, não quero menosprezar o sofrimento e as conquistas das pessoas que têm problemas auditivos. Mas, metaforicamente, estamos todos com problemas auditivos. Estamos ficando surdos de tanto ouvir.

Nosso modo de ouvir está comprometido pela quantidade alta e pela qualidade baixa do que ouvimos diariamente. Os ruídos do progresso formam uma massa sonora tão constante que nem notamos mais o seu impacto sobre nós. Os bate-estacas que trabalham pela expansão imobiliária, o ar-condicionado que disfarça o aquecimento global, os eletrodomésticos que promovem a inclusão social, a música ambiente, os motores, os apitos. A quantidade de lixo sonoro é devastadora e anestesia nossa percepção.

Quando minha filha era bebê, todos os sons chamavam sua atenção. Se ela estava brincando e um avião passava ao longe, ela parava e olhava para a janela. Eu, com meus sentidos já entorpecidos por alarmes de carro, ringtones engraçadinhos e escarpins de vizinhas decididas, só me dava conta de que tinha ouvido o mesmo barulho depois da reação dela. Com muita freqüência, ela tapava os ouvidos em lugares públicos para se proteger de tanta invasão. O tempo passou, ela se adaptou. Não há saída, é preciso se adaptar. Diferentemente dos olhos e da boca, os ouvidos nós não podemos fechar. Imagino que, nesse processo de adaptação, seu cérebro tenha estabelecido algum tipo de hierarquia entre o que é ruído inútil e o que é relevante. Caso contrário, seria insuportável viver.

Mas o que é ruído inútil e o que é relevante?

O barulho da relevância

No mundo do marketing - ou seja, no mundo - a chave é ser relevante. O pavor da indistinção faz com que idéias e mais idéias cantem, recitem, massageiem nossos sentidos num ataque polissensorial sem trégua. Estamos na era do marketing sensível, da experiência, do ambiente. Das marcas com vida, com alma, com DNA.

Aí você entra na loja de decoração, sente cheiros e ouve músicas cuidadosamente selecionadas. No fim, compra a poltrona, o perfume e o CD e pode levar um pouco do espírito da marca para baixar em sua casa. No supermercado, que tem uma rádio interna para dar dicas de saúde, você entope o carrinho de coisas que não planejou comprar, porque agora sabe dos poderes das frutas cítricas. Sem espaços sonoros desocupados, você ouve bem, ouve tudo, ouve demais.

Se, no fim do dia, você achar que precisa de um remédio que atenue o zumbido em seus ouvidos fatigados, não ligue para a farmácia 24 horas, porque, no lugar de um simples "boa noite", você ainda terá que ouvir: "30% de desconto nos produtos para cabelos em todas as lojas de nossa rede, boa noite". Durma com esse barulho. Fritas para acompanhar?

 

Denise Gallo, 38, é sócia da Uma a Uma, empresa de inteligência de mercado especializada em comportamento feminino: blog.umaauma.com.br/. Seu e-mail: denise@umaauma.com.br

 

 

 

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