Tivemos um filho, fizemos uma casa, conhecemos lugares
Tivemos um filho, fizemos uma casa, conhecemos lugares. E eu, estranhamente, ainda não sei se você prefere água gelada ou fresca, Godard ou Truffaut, praia ou serra
Foi no dia 1º de agosto de 2003. Eu havia sido convidada pra fazer uma peça, você estava no elenco, e era nosso primeiro ensaio. Com camisa jeans de manga curta e uma sandália meio hippie, uma coisa desculpando a outra, bati os olhos nos seus cabelos compridos e ali fiquei, pensando quem, afinal, era você.
Ok, eu já te achava bonitinho, mas isso era o de menos: o que realmente me desafiava era a sua fama de esquisito. Sim, você tinha essa fama, não vem dizer que não sabia. Essas famas, aliás, no plural: louco, alternativo, mulherengo, religioso. E eu te achava também pretensioso e confiante, embora tudo isso estivesse disfarçado de simplicidade, o que tornava tudo mais enigmático. Eu realmente não te decifrava.
É verdade que você viajava muito de ônibus, o que eu achava uma graça de tão ingênuo. Admito também que estar sempre lendo livros enormes e comer maçã desidratada pesaram pra que em uma semana eu mudasse a sua classificação de ator-que-cozinha-e-finge-que-entendeu-Ulisses pra ator-que-quer-um-dia-cozinhar-e-entender-Ulisses. O que muda tudo.
A questão é que ficamos meio amigos. Meio porque não dava pra ser inteiro. Meio porque assim conseguimos suspender um encontro que só aconteceria três anos depois, quando você me convidou pra passar o Carnaval em São Paulo, em um apartamento na Bela Vista, onde o maior sinal da folia era a TV de 10 polegadas do porteiro. E eu pude enfim me apaixonar, totalmente Colombina.
Peça de venda
Eu estava recém-separada e com aquele discurso cafona de não morar junto nunca mais. Mas aí você começou a jogar sujo, e fez coisas terríveis e imperdoáveis, como brincar com o meu filho e saber o número do meu pé. E eu fui te estudando desesperadamente pra descobrir seus defeitos, porque não era possível alguém acordar bem-humorado e ainda por cima fazer cappuccino com aquela espuma profissional. E assim eu fui ficando... uma semana, um mês, sete anos. E assim estou, sem planos de ir embora.
Os dias vão passando e eu percebo que tivemos um filho, fizemos uma casa, conhecemos alguns lugares. Mas eu, estranhamente, ainda não sei se você prefere água gelada ou fresca, Godard ou Truffaut, praia ou serra. Não importa. Seu lado B acabou aparecendo, você não era tão perfeito como aparentava: a versão do homem zen, conforme eu intuía, era uma peça de venda. E aí eu me apaixonei ainda mais.
Você acha que sabe tudo, o que é irritante. Você canta, não só em casa, mas no carro, em cima do Julian Casablancas, uma heresia. Você vira seus personagens, não importa se é um retirante ou um monge budista, e eu que me adapte. Você é irritadinho no trânsito, do tipo vingativo. Você é gêmos com gêmeos, um ser que quer conversar às nove da manhã. E o pior: você não gosta de ar-condicionado.
Mas por que escrevo tudo isso, pequenezas particulares que não interessam a ninguém? Ah, sim, porque essa semana fez dez anos que te conheci, e eu queria te dizer uma coisa seríssima.
É que acho que te amo e se você quiser renovar os votos de fingir que fevereiro não existe pelos próximos vinte anos, pode contar comigo.
Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com |