Uma tarde com minha mãe

por Milly Lacombe
Tpm #134

Um funeral, um jantar, uma disputa, algumas surpresas - e a inevitável troca de papéis

Um funeral, um jantar, uma disputa, algumas surpresas - e a inevitável troca de papéis que a vida nos traz

Naquela manhã fria de julho, saí do dentista e fui direto para casa remoendo a terrível notícia de ter que fazer um implante. Assim que cheguei, liguei o computador e mergulhei no trabalho, achando que a pressão de editores por textos atrasadíssimos me faria esquecer o provável e abominável procedimento cirúrgico. O celular tocou pouco tempo depois. Era minha mãe perguntando se eu não vi as ligações perdidas. Expliquei que estava no dentista, que tinha deixado o celular em casa e que as notícias eram péssimas: eu talvez tivesse que fazer um implante. Disse que a dentista havia pedido uma tomografia do rosto e que o simples eco da palavra tomografia já me parecia suficientemente trágico. E concluí: é um dia horroroso. Apenas nesse instante consegui perceber o timbre da voz dela. E ela então me disse que Ione, amiga há 55 anos, tinha acabado de morrer. A notícia, claro, colocou meu dente, com canais e raiz, em perspectiva.

Vi minha mãe chorar no máximo cinco vezes na vida. É um choro sem lágrima, que já começa querendo acabar, porque minha mãe sempre preferiu não mostrar as coisas tristes que sente. As coisas zangadas e muito bravas ela não se importa em colocar para fora, e faz isso com diabólica regularidade há 45 anos – pelo menos sob o meu testemunho. Já as tristes ela prefere engolir. Falei que iria ao velório, para que ela não fosse sozinha, e ela disse que passaria para me buscar.

Quase invisível

Quando entrei no carro, pelo lado do passageiro, dei um beijo em minha mãe e escutei ela dar aquela fungadinha clássica, que em meu imaginário significa uma ordem expressa para que as lágrimas não ousem. Como minha mãe não sabia o caminho para o cemitério, fui orientando. Já no segundo sinal, entendi que estava prestes a experimentar momentos de forte emoção. Minha mãe, que já foi uma grande piloto, hoje dirige como se não houvesse outros carros na rua. Quando quer entrar à esquerda, simplesmente entra, sem seta, sem bracinho para fora, sem aquela olhada por cima do ombro. Se quer parar e pedir uma informação, para onde estiver, a despeito da quantidade de veículos que venha atrás. Agarrada ao assento com uma das mãos e segurando no Santo Antônio com a outra, disse a ela que seria preciso entrar na próxima à direita, mas ela se manteve à esquerda. Achando que perderíamos a entrada e que teria que passar ainda mais tempo dentro daquele carro, soltei um berro primata. “À direita! À direitaaaa!” Meu grito a fez dar um pulo, o que, em condições normais de ira e grosseria, bastaria para ela me esculachar. Mas minha mãe estava imperialmente triste e disse apenas “ai, que susto”, levando uma das mãozinhas ao peito, o que serviu para me deixar ainda mais apavorada: ela agora tinha apenas uma mão ao volante. Sabe-se lá como, já que eu estava de olhos fechados, entramos à direita e chegamos vivas ao cemitério.

Depois de algumas horas, com o sol já se pondo, minha mãe, que treme toda e muito de levinho quando está emocionada, disse que não gostaria de ficar para o enterro (“que é sempre a parte mais difícil”), e perguntou se eu poderia levá-la embora. Entendi a deixa para pegar a chave do carro e dirigir. No caminho, ela explicou que não tinha nada na geladeira de casa, que ainda teria que ir ao supermercado, e eu decidi que iria com ela. Empurrando o mesmo carrinho dentro do qual um dia ela me colocou sentada enquanto fazia compras, a vi pegar frutas, pães e queijos – basicamente as únicas coisas que ela come há 76 anos. Quando estávamos indo para o caixa, minha mulher ligou para convidar minha mãe para jantar com a gente. Passava pouco das seis da tarde e eu imaginei que minha mãe falaria alguma coisa como: “Jantar? Quem janta às seis da tarde?”. Mas o que saiu de sua boca foi: “Eu quero”. Só que ela queria pizza – porque pizza é a refeição perfeita: massa e queijo – e a nora preferia peixe. Na companhia das duas, eu me torno uma pessoa quase invisível, recuperando a visibilidade quando uma delas, com apoio da outra, resolve falar sobre meu cabelo, minhas roupas, minhas unhas. Portanto, se eu preferiria peixe ou pizza não estava em questão. Naquela quase noite minha mãe não parecia ter muita força de argumentação e acabou cedendo.

“Você reclama muito”

No restaurante, depois de reclamar de todos os itens do menu, minha mãe empurrou o prato um pouco mais para a frente, como quem quer afastar de si a possibilidade de comer, e disse, derrotada, que não havia nada para ela. E eu entendi que preferia vê-la brava do que triste. Como minha mãe não come carne vermelha ou de frango, nem nada desfiado, ou cru, ou ensopado, ou acebolado, ou empapado, restringindo-se a peixes que venham em postas, despelados, e sejam, pela ordem, camarão, linguado, bacalhau ou salmão, o ato de “fazer o pedido” num restaurante flerta invariavelmente com uma tragédia grega. 

Por algum motivo ela sempre acaba achando que a culpa pela falta do prato perfeito para sua dieta de gorduras e carboidratos é do garçom, que, aliás, segundo ela, naquele fim de tarde estava mal-humorado (quem não estaria depois de escutar 10 minutos contínuos de críticas ao menu?) e dificultando a escolha. Essa é a rotina há mais de 40 anos. Rotina que meu pai seguia como seguem os coadjuvantes resignados, e que eu aprendi a seguir como fazem os figurantes conformados. Mas minha mulher não entende o teatro da escolha do prato e sempre encontra uma forma de acabar com o espetáculo antes da hora. “Nossa, você reclama muito”, eu a escutei dizer a minha mãe. “Pede o que quiser que eu garanto que eles fazem”, completou meu objeto de desejo. “Duvido”, disse minha mãe. “Eu garanto, pede.” Relato o diálogo usando o pouco da memória que me restou, porque nessa hora eu estava hiperventilando e já olhando para os lados para ver por onde poderia escapar. “Vocês gostaram do meu corte de cabelo?”, tentei, para desvirtuar o embate. Mas nem meu corte de cabelo, assunto sempre tão popular entre elas, foi capaz de tirá-las do duelo. E então, embasbacada, vi minha mãe sucumbir ao bacalhau, “desde que venha sem cebola”. Passada a disputa, ficamos por mais de 3 horas ali, conversando, rindo e bebendo. Para minha surpresa, minha mãe reconheceu que o bacalhau era excelente e decidiu que levaria o que sobrou.

Quando eu era pequena e, estando fora de casa, ficava triste e me sentia sozinha, bastava ligar para minha mãe ir me buscar. A sensação de aconchego que experimentava ao vê-la chegar por saber que ela estava me levando de volta para casa me habita até hoje. É, talvez, em busca desse mesmo sentimento que passamos pelo dia a dia de nossas vidas adultas. Mas naquela noite, ao ver minha mãe sair do restaurante com sua sacolinha de comida, tive a impressão de que era eu quem a havia buscado e a estava levando de volta para casa.

A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com
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