Uma carta para minha mãe

por Nathalia Zaccaro

Thelminha, Bárbara Paz, Miá Mello, Lellê e Amara Moira escrevem cartas para suas mães e dividem com a Tpm a profundidade dessas relações

A culpa é sempre da mãe. "Já consegui te culpar por absolutamente todos os meus problemas e, ao mesmo tempo, te negar qualquer mérito nas minhas conquistas. Problemas ósseos que me impediam de fazer educação física? Culpa sua. Propensão à alergia? Também", confessa a professora e escritora Amara Moira sobre a relação com sua mãe, DuCarmo. Mas também estão na conta de nossas mães tudo que somos, que sonhamos e que conquistamos. "Lá na frente a gente vai começar a colher frutos positivos de toda ajuda, amor e carinho que você me deu", declara Thelminha, médica e vencedora da última edição do Big Brother Brasil, que foi adotada ainda bebê por Yara Assis, sua mãe.

O que vemos no espelho, nossos gestos, narizes, cheiros. É culpa da mãe. "Das três irmãs, eu tinha sido escolhida para vir a sua cara. Sentia que aquele era meu superpoder", escreve a atriz Miá Mello. O vazio que elas deixam quando partem é culpa delas também. A falta que faz uma mãe. "Aqui embaixo, mãe, hoje tem um vírus. Um vírus sem cor, um vírus invisível. Não podemos tocar em nada nem em ninguém, não podemos beijar nem abraçar. Mas podemos nos olhar. E olhar muito, tanto que acabamos entrando dentro de cada um. Estou tão dentro de mim que sinto tanto sua falta", conta a atriz e cineasta Bárbara Paz, que perdeu a mãe aos 17 anos.

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Só tem culpa quem tem ação, quem tem interferência, quem constrói. Ser mãe é gerar vida, amor, dor, tudo junto e misturado. Para celebrar todas as culpas de todas as mães, convidamos algumas mulheres que admiramos para escreverem cartas para suas mamães. Feliz dia da mães!

 Thelma Assis

"Oi, mãe!

Hoje não é a Thelma de 35 anos que vai te fazer essa homenagem. Quem vai te fazer essa homenagem é a Thelma com três dias de vida. A mesma que você pegou nos braços e colocou no seu coração. Se ela pudesse te dizer alguma coisa naquele momento, seria mais ou menos assim:

'Confia em mim. Eu só preciso que você me ame, que cuide de mim, que acredite em mim. Provavelmente, muitas vezes, as pessoas não vão acreditar. Vão colocar em prova o que eu digo e me subjugar, mas, se você estiver perto de mim todas as vezes que eu precisar do seu colo, isso já será o suficiente para que eu dê a volta por cima. E, lá na frente, daqui uns vinte e poucos anos, a gente vai começar a colher frutos positivos de toda ajuda, amor e carinho que você me deu. E, com muito orgulho, eu vou querer retribuir toda essa dedicação. Lá pelos meus 35 anos eu vou passar por uma experiência muito louca e você, mais uma vez, vai ter que confiar em mim. Mais uma vez vai ter que acreditar que tudo vai dar certo no fim. E dessa vez vai ser muito maior, porque você vai ter que provar para um país inteiro o quanto me ama e o quanto confia em mim. E aí você vai ter certeza realmente de que todo esse amor, carinho e investimento vão valer a pena. A gente vai ser muito feliz e você não vai se arrepender nem por um segundo de ter feito essa escolha. Um beijo da sua filha Thelma, que te ama muito!'"

Bárbara Paz

"Mãe, a ambulância chegou!       

Escuto aqui da janela aquele mesmo pássaro cantar.

Mas hoje não é para te levar.

Hoje as ambulâncias, mãe, estão por toda parte, nas estradas, nas ruas e avenidas.

Em toda cidade do interior há várias mães sendo levadas às pressas para o colo dos nossos heróis.     

Os hospitais estão lotados... Penso o que seria da senhora hoje, mãe! 

Como estarão os pacientes da hemodiálise e os transplantados?       

Hoje chamamos de grupo de risco.

Mãe, te protejo em cada pensamento. Rezo por você, mãe.

Vejo a senhora no olhar de cada mãe que me olha à procura de esperança.

Aqui embaixo, mãe, hoje tem um vírus. Um vírus sem cor, um vírus invisível.

Não podemos tocar em nada nem em ninguém, não podemos beijar nem abraçar.

Mas podemos nos olhar. E olhar muito, tanto que acabamos entrando dentro de cada um.

Estou tão dentro de mim que sinto tanto sua falta.

Tua filha caçula,

Bárbara."

Miá Mello

"Oi mãe, 

Que saudades! 

Deu certo lavar o pijama do Antônio daquele jeito mesmo. Você sempre acerta. 

Eu ando pensando muito na nossa relação (na verdade ando pensando muito em todas as relações, de um modo geral). 

Lembrei que, quando eu era pequena, todo mundo vinha espantado falar comigo: você-é-a-cara-da-sua-mãe. Me mostravam fotos suas pequena pra comprovar, tudo. 

Eu achava aquilo tão especial. Das três irmãs, eu tinha sido escolhida para vir a sua cara. Sentia que aquele era meu superpoder. 

Sempre admirei você ser o motor propulsor da nossa casa. 

Estudante (das boas), socióloga, empresária de logística, empresária do Cylla Studio Hair & Beauty, mãe de três, mulher forte que sempre todo mundo quer estar perto. 

Você vibra, mãe. E isso é tão lindo.

Estamos distantes, mas que lindo que foi o dia que a gente fez juntas, por chamada de vídeo, o bolo de coco gelado de aniversário do Lucas e você teve que ficar 6 minutos a mais porque a sua batedeira era velha. Eu quero te dar uma batedeira nova, mãe. Eu quero te dar o mundo. Eu quero retribuir o tanto que você me faz. 

Feliz dia, minha querida e amada mãe.

Volta logo pra gente se abraçar bem forte, dando aqueles pulinhos e risadas. Eu vou te chamar de véia e falar pra você não contar nada pra Lê, mas que eu não via a hora de você voltar. 

Te amo."

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Amara Moira

"Queridíssima mãe,

Hoje, olhando pra história de vida que estamos escrevendo, acho engraçado perceber o quanto já consegui te culpar por absolutamente todos os meus problemas e, ao mesmo tempo, te negar qualquer mérito nas minhas conquistas. Problemas ósseos que me impediam de fazer educação física? Culpa sua. Propensão à alergia? Também. Mas, além disso, ter que usar óculos, ser preguiçosa, não saber brigar, ser excluída na escola, a bendita educação católica e conservadora que você me deu (até o fato de eu ser travesti e bissexual já foi culpa sua, fique sabendo), tudo o que à época eu entendesse como problema, e sem qualquer contrapartida nos momentos em que eu me destacasse positivamente.

Faz já um tempo que não penso assim, ufa!, mas essa fase durou o suficiente para eu hoje ter bastante vergonha dela. E, bom, se ainda assim eu consigo achar graça nisso tudo, é porque estou na minha pele e não na sua, né? Não deve ter sido nada fácil, lá atrás, tomar as decisões que você tomou e ainda ter que lidar quase sozinha com essa adolescente birrenta, marido e os outros dois filhos.

Eu teria feito diferente se fosse você? Certeza que sim. No entanto, só de imaginar que, mesmo com todo o investimento racional e afetivo, eu poderia ter um filho machista, racista, LGBTfóbico e ainda eleitor do Bolsonaro, já desisto na hora do sonho de um dia ser mãe. Sério, fico pensando o quão doloroso seria ver um filho sofrendo discriminação na escola por ter uma mãe travesti. Pior, fico imaginando a possibilidade de um dia ele chegar a dizer que tem vergonha de mim, que preferia ter outra mãe ou nem ter nascido. Se eu tenho medo disso, mesmo sendo eu a principal responsável pela educação desse filho, imagino você, que teve que passar por cima dos seus próprios medos quando engravidou e, depois de todo o sacrifício, ainda encarar várias dessas porcarias.

Não quero dizer que não houve erros, mas sim que eles foram de mão dupla e também que eles fazem parte. O tempo passa e a gente vai tratando de ressignificar nossa própria história, aí acho hoje divertidíssimo ser travesti e ter sido criada na Igreja, adoro saber que não segui o caminho daqueles tantos manés que me excluíram na escola, amei ter usado meus problemas ósseos pra não ter que me alistar no exército e por aí vai. Como uma professora que admiro muito dizia, há pessoas que aos 15 anos são infelizes porque a mãe dava mais atenção ao irmão do que a ela, aí isso continua sendo o motivo de sua infelicidade aos 25 e aos 40, aos 65 e até o final da vida. Facinho, facinho, a gente pode se tornar reféns das narrativas que criamos pra justificar a nossa infelicidade, facinho, facinho, podemos nos prender a elas, nos acomodar a elas e deixar que elas moldem toda a nossa vida.

Hoje, eu olho com muito carinho e admiração para tudo o que aprendi com você, mãe. Hoje, eu penso inclusive que você teve sucesso na criação que me deu. Gosto muitíssimo da pessoa que me tornei e eu jamais teria podido me tornar essa pessoa sem a sua ajuda. Sei que você discorda de muitas das minhas escolhas, sei que às vezes pareço radical demais, com vários parafusos a menos, mas sei também que, mesmo com todas as nossas diferenças, você tem começado a se abrir para me ver com outros olhos. E essa abertura é recíproca.

Por ora, está completamente descartada a ideia de eu ter filhos, mas, caso um dia eu mude de ideia ou o destino bata na minha porta, saiba que eu vou querer sentar contigo para ter umas aulinhas de maternidade. Vou querer saber muita coisa, tipo como é que você conseguiu fazer com que eu saísse de esquerda, militante contra as opressões e opositora do Bolsonaro, mas vou querer saber, sobretudo, qual o segredo para ter uma filha travesti e bissexual. Nem pense que você vai esconder de mim esse segredo, viu?

Pois bem, tudo isso para dizer que te amo e que, hoje, tenho o maior orgulho de ser sua filha e de ter você como mãe.

Parabéns pelo seu dia! <3

Amara."

Lellê

“Mãe, sei que estamos distantes como em vários momentos na vida, mas dessa vez é diferente. Diferente por não ter escolha. A gente se fala por FaceTime, dá pra matar um pouquinho da saudade, mas não é a mesma coisa. Esse isolamento me trouxe muitas reflexões e transformações. Uma delas foi a nossa relação. Hoje estamos demonstrando afeto como nunca antes ou talvez essa relação esteja indo pro lugar onde ela deve estar. Estamos sendo maduras e carinhosas uma com a outra. Queria te dar um abraço forte e olhar dentro dos seus olhos pra te dizer o quanto te amo. Sei que a senhora sente e isso me alivia.

Feliz dia das mães de um jeito diferente! Não como eu queria, mas como Deus quer!

É incrível como sinto minha mãe de volta pra mim.
Te amo muito, Luana Aires ❤️”

Créditos

Imagem principal: Arquivo pessoal

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