Um véu e duas rodas

por Sabrina Duran
Tpm #86

Areebah, Abrar e Baysan cresceram sem saber pedalar, mas hoje circulam orgulhosas em suas magrelas

Em alguns países, o islamismo impede que mulheres andem de bicicleta. Por isso, Areebah, Abrar e Baysam, londrinas filhas de muçulmanos, cresceram sem saber pedalar. Hoje, mesmo sob os olhares reprovadores, circulam orgulhosas em suas magrelas. Areebah Akthar é uma das centenas de filhos de bengaleses nascidos na capital inglesa. Muçulmana praticante, ela tem 19 anos e, em meio às modernidades com as quais convive em Londres, toca um curso no mínimo curioso – para não dizer revolucionário. Depois de anos com uma inquietação no peito e nas pernas, resolveu não só aprender a andar de bicicleta, tarefa proibida para quem segue os preceitos islâmicos, mas também ensinar outras garotas como ela a pedalar.

Fez questão de me encontrar para falar sobre suas aulas antes que eu entrevistasse qualquer de suas alunas. Começou dizendo que seu curso existe há quatro anos em Londres e já ajudou mais de 300 muçulmanas entre 18 e 65 anos – a maioria imigrante de Bangladesh, Índia, Irã e Paquistão – a pilotar uma bicicleta. Por causa das crenças patriarcais da cultura daqueles países, muitas mulheres asiáticas (e mesmo as inglesas que nascem em famílias de imigrantes) estão imersas numa realidade de repressões e imposições.

Na Índia, por exemplo, meninas são forçadas a casar ainda crianças, são alijadas da escola, do convívio social e, porque não podem trabalhar, dependem financeiramente do marido e dos filhos homens. No Irã, mulheres que protestam em público por seus direitos, mesmo que pacificamente, não raro são agredidas pela polícia, presas e julgadas pelos crimes de violação à segurança nacional e à propaganda contra o governo. Em Bangladesh, uma mulher que recusa o flerte de um pretendente corre o risco de ter o rosto desfigurado pelo ácido que o próprio lhe atira como vingança; em outras ocasiões, pode ser vítima, mesmo na Inglaterra, do chamado “assassinato de honra”: ao negar um casamento arranjado ou se apaixonar por um homem que não tenha sido aprovado pela família, é morta pelo próprio pai ou outro parente do sexo masculino.

EMANCIPAÇÃO
Uma faceta, digamos, mais “prosaica” da cultura patriarcal de alguns países asiáticos está relacionada ao exercício físico. As mulheres são “desaconselhadas” a andar de bicicleta e praticar outros esportes quando atingem a adolescência, e isso é regra até o fim da vida. Porque esporte não é coisa para mulheres. Simples assim. A própria Areebah só aprendeu a pedalar aos 16 anos. Nunca foi proibida pelos pais, mas jamais viu as mulheres de sua família pilotando uma bicicleta. Há apenas três anos ela ousou pôr as rodas nas ruas e conseguiu ir até mais longe que suas iguais: submeteu-se a treinos específicos de ciclismo e tornou-se uma instrutora qualificada. “Se eu posso fazer isso, imagino que outras meninas possam também”, diz, fiando-se no bom senso de pais como os dela, que, após absorverem a cultura inglesa, não se opuseram à “emancipação” da filha.

Jagonari, que significa “mulheres, despertem”, é o nome do centro cultural onde Areebah trabalha e que oferece, além do curso de ciclismo, capacitação e alfabetização para mulheres da comunidade asiática concentrada em Whitechapel, bairro londrino povoado por imigrantes praticantes do islamismo. “Elas
precisam ficar em casa cuidando dos filhos enquanto os maridos trabalham e quase não têm vida social. O Jagonari é um lugar bilíngue, onde elas aprendem inglês, exercitam-se e interagem com outras mulheres”, explica Areebah. Financiados com verbas do governo inglês, esses cursos são gratuitos para as alunas da comunidade. O de ciclismo ainda oferece empréstimo de bicicleta, mesmo após o fim do curso.


ESPORTES E VÉUS
Uma atividade que pode parecer corriqueira para qualquer mulher ocidental exige esforço e determinação dessas alunas. No curso, elas aprendem a desviar de obstáculos, guiar por lugares estreitos e sinuosos e entender placas de trânsito – para, finalmente, pilotar nas ruas. Tudo em meio aos olhares de transeuntes que nunca viram uma mulher muçulmana, com o véu a ocultar os cabelos e uma túnica negra sobre o corpo, andar de bicicleta em público.

Mas, afinal, o islã teria algo a ver com a proibição da prática de esportes por mulheres? Era preciso ser delicada na abordagem desse assunto porque, desde julho de 2005, quando atentados à bomba contra o transporte público de Londres mataram, pelas mãos de muçulmanos extremistas, mais de 50 pessoas, tocar em temas ligados aos costumes islâmicos se tornou uma tarefa espinhosa. Mas, como Areebah não tocava no tema, decidi ser direta. “Existe algo explícito no Alcorão proibindo as mulheres de se exercitarem?”, perguntei. “Absolutamente nada”, responde. “Senão, as mulheres não ousariam ter aulas de ciclismo. No entanto”, e aí Areebah foi mais precisa, “é fato que, no islã, meninas e meninos, em teoria, não devem se misturar sem necessidade, e isso se torna também uma barreira para a prática de esportes, que são, majoritariamente, praticados por meninos.”

Os braços de Abrar Khadim tremulam ao segurar o guidão. A pequena praça ao lado do centro Jagonari é o lugar perfeito para as pedaladas da iniciante de 13 anos, uma das mais jovens alunas do curso. Abrar diz não ter vontade de pilotar na rua, mesmo que um dia domine a bicicleta sem claudicar. “Há muitos carros”, diz a inglesa filha de bengaleses. Baysabum Chowdhury, outra inglesa com raízes em Bangladesh, tem 20 anos e pedala há quatro meses. Está visivelmente mais segura na direção do que a colega Abrar, ciclista há apenas duas semanas. Baysam olha sempre para a frente, não vacila e até ousa um pouco mais na velocidade. Ela, que tem pavor de coisas que se movem, de aranhas a carros, também diz que não pretende ir pra rua com a bicicleta por­que “as pessoas dirigem como lunáticas hoje em dia”. Já a instrutora Areebah é pura confiança. Ela pilota na praça, na rua e até acena com uma das mãos quando repara que eu a observo. Apesar da diversidade de experiências, as três jovens são unânimes em duas afirmações: a primeira, de que andar de bicicleta é agradável pela sensação de liberdade; a segunda, de que os olhares reprovadores de alguns homens asiáticos mais velhos ainda as deixam desconfortáveis e ofuscam a liberdade adquirida.

CORES DISTINTAS
Areebah, em nossa segunda entrevista, desta vez realizada num parque, usava um véu cinza que ocultava quase toda a testa, metade das bochechas, pescoço e até os cantos dos olhos. Sob uma jaqueta parda, ela vestia um jilbab, a túnica negra que cobre as muçulmanas até os pés. Abrar e Baysam usavam seus véus – mas não jilbabs – nos mesmos moldes que Areebah, porém, ousavam nas cores: o véu de Abrar era violeta vivo, o de Baysam, azul-celeste. Enquanto papeávamos, uma dona de casa bengalesa de 38 anos aproximou-se, atraída pelas meninas de véu, suas iguais, montadas em reluzentes bicicletas de alumínio. Areebah perguntou-lhe se queria pilotar. A mulher riu e disse que não. Desconversou, mas admitiu que, provavelmente, o marido não aprovaria. “Você viu? Ela estava interessada, mas ainda não tem coragem. Isso é porque está em Londres há menos de seis meses. As mulheres imigrantes, depois de uns dez anos aqui, tornam-se muito mais livres”, disse Areebah.

Uma década parece muito para que uma mulher, ali pelos seus 40 anos, conquiste autonomia para aprender a usar uma bicicleta. Areebah, Abrar e Baysam, por serem inglesas, “emanciparam-se” antes. Talvez por terem nascido num ambiente tão díspar daquele de onde seus pais vieram, as jovens ciclistas não têm ideia da importância de suas pedaladas. As meninas do Jagonari desfazem preconceitos, redefinem comportamentos, transformam o mapa social de onde vivem e reconquistam liberdades básicas para suas iguais mais velhas. Quando vestem seus véus e jilbabs e montam em suas bicicletas, estão incitando nada menos que uma histórica revolução sobre rodas.


ENQUANTO ISSO, NO BRASIL...
Se o sheikh Mohamad Al Bukai fosse casado, não veria problemas em sua esposa andar de bicicleta. Nascido na Síria, há dois anos ele vive em São Paulo e é líder espiritual da mesquita do Pa­ri, uma das maiores do Brasil. Para ele, as res­trições impostas às muçulmanas em alguns países não são totalmente
fundamentadas na religião. “Trata-se de política, uma decisão de governos extremistas confundida com ensinamento religioso pelos leigos. Imagine se existia bicicleta quando escreveram o Alcorão”, exalta. A interpretação do livro sagrado muçulmano explica por que mulheres de uma mesma crença têm liberdades tão distintas em diferentes partes do mundo. Alia Fayd, 17 anos, aprendeu a andar de bicicleta com os pais, libaneses que migraram para o Brasil. A tia de Alia, Nazek AlAttar, 47, se lembra de uma infância de pedaladas na Síria. Elas são exemplos da comunidade muçulmana brasileira, que tem cerca de 30 mil pessoas*. “E, em sua maioria, é formada por turcos, sírios e libaneses, vindos de países bem menos radicais”, completa o sheikh. Não é o que acontece no Reino Unido, onde a maioria dos mais de 1,6 milhão de adeptos**, que fazem do islamismo a segunda maior religião de lá, é imigrante de locais considerados mais extremistas, como Paquistão (320.767 imi­grantes), Bangladesh (154.200), Irã (42.377), Iraque (32.251) e Afeganis­tão (14.890)***. [por Paula Rothman]

*Último Censo do IBGE, de 2000, apontava 27.239 muçulmanos. **2001 Census England and Wales. ***Institute for Public Policy Research, do Reino Unido.

 

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