”Somos marginalizados e a sociedade não sabe, nem está pronta, pra nos acolher”, fala a ativista Daniela Andrade, criadora de fanpage sobre o tema
A paulistana Daniela Andrade não nasceu Daniela. Batizada com um nome masculino, nunca se sentiu ou se reconheceu menino. Nunca dividiu interesses com eles também. “Minha companhia preferida sempre foi a de outras meninas e eu não queria ser o que os meninos eram”, recorda. Acabou sofrendo em épocas da vida que costumam ser prazerosas por suas novas descobertas, como a infância e adolescência. Ela explica: "Enquanto outras crianças vivem uma experiência curiosa do descobrimento do corpo adulto, a criança trans, de modo geral, se aterroriza por desenvolver um corpo que luta contra ela mesma, que não faz sentido algum e traz novas características que ela deseja repelir". Só se sentiu “em casa” quando, já adulta, conheceu sua primeira amiga transexual, “Foi como se eu tivesse descoberto a pólvora. Encontrei o meu lugar, comecei a responder todas minhas perguntas e me encontrei”.
Hoje, aos 33 anos, Daniela além de trans, é feminista, ativista incansável e o nome por trás da fanpage Transexualismo da depressão e do blog Alegria Falhada. Com quase 8 mil seguidores, a página é um espaço de acolhimento e discussão e um veículo de informações sobre questões da transexualidade no Brasil e no mundo. Já o blog, atualizado constantemente, fala da rotina de uma mulher trans. Mas Daniela não limita suas ações à internet, participa de palestras, encontros e fala pra quem quiser escutar sobre direitos humanos, especialmente os dos trans, representados por travestis e transexuais.
Tpm. Como começou a história da fanpage?
Daniela. Resolvi procurar no Facebook e internet em geral, Google mesmo, material sobre transexualismo. Descobri que o conteúdo é escasso, e quando ele existe é discriminatório e preconceituoso. E descobri, ainda, que existem muitas páginas que falam de orientação sexual, homossexualidade, mas não se fala sobre identidade de gênero. O T da sigla LGBT é ignorado inclusive na comunidade LGBT.
E há quanto tempo existe a fanpage? Há pouco mais de um ano.
E nesse tempo, muita gente te procurou através dela? Muitas pessoas acabam me procurando porque estão se encontrando, querendo se aceitar e estão neste processo. Inclusive, muitos menores de idade. Recebo mensagens com as mais diversas perguntas: desde hormonização, sobre como começar a tomar os hormônios, até os primeiros passos pra conseguir chegar em uma cirurgia de transgenitalização; quem deve-se procurar primeiro, um psicólogo ou um cirurgião. O que sinto mesmo é que existe um vácuo gigantesco de informações quando o assunto é transexualidade. O mito é tão grande que evita-se o assunto. Acho muito importante o espaço e o diálogo aberto que temos na Transexualismo da Depressão. Chegam pessoas na fanpage do país inteiro, cheias de dúvidas.
E quais são as dúvidas mais comuns? São tantas e tantas. Mas uma das dúvidas mais frequentes de uma pessoa trans é como começar a tomar hormônios. Essas questões chegam a pessoas como eu porque faltam profissionais especializados em hormonização para trans. Então é muito comum acontecer automedicação, que com certeza não é o caminho ideal, mas é na maioria das vezes o caminho que existe. Muitas pessoas acabam tomando hormônios que deram certo com outras, o que nem sempre funciona igual pra todo mundo. Doses e tipos de hormônio devem ser ajustados de pessoa pra pessoa. E daí fica aquela coisa, não tem médico especializado em transgeneridade, os pacientes optam por meios e tratamentos que têm grandes chances de dar errado e causar problemas de saúde.
Tudo isso por discriminação? Sim. Trans são a identidade mais agredida e ignorada. Somos considerados não cidadãos no Brasil. Somos marginalizados e a sociedade não sabe, nem está pronta, pra nos acolher. Então é raríssimo encontrar serviços e profissionais aptos pra atender nossas especificidades. Como eu disse: é um completo vácuo em relação ao conhecimento da transgeneridade. Deveríamos ser instruídos no Brasil a lidar com todas as identidades de gênero.
"Transexuais são a identidade mais agredida e ignorada. Somos considerados não cidadãos no Brasil."
Então, na falta de outras plataformas e veículos, sua fanpage acaba virando um serviço, não? Mais que isso, mas uma ferramenta emponderadora de pessoas trans. Um espaço pra sermos entendidos e um espaço pra ganharmos mais espaço, pra não ficarmos marginalizados e anônimos. 99% da população pensa que as pessoas trans "querem ser" trans por vaidade. Sendo que viver como trans hoje é uma das coisas mais duras que se pode ser. Somos considerados seres ininteligíveis e mal compreendidos, muita gente me diz: "Mas eu achava que vocês eram outro tipo de gay ou lésbica". E não, não somos. Eu posso ser trans e ser hétero, posso ser trans e ser gay. A sociedade não está preparada pra ver gênero diferenciado de genital.
Se você se propõe a mostrar uma outra ótica sobre gênero, distante ou diferente do que valores tradicionais propõem, você é julgado e marginalizado, tratado como bicho, como chacota. Ninguém nasce homem, ninguém nasce mulher. Como diz Simone de Beauvoir, “torna-se mulher”. Eu defendo isso, do mesmo jeito que defendo que torna-se homem.
E você é feminista também. Sou feminista. Trans e feminista. É tão prova que ser homem ou ser mulher é uma construção social, que na sociedade que vivemos hoje por acaso existem só dois gêneros legítimados. Mas existem sociedades nas quais existem mais gêneros.
Quais são essas sociedades? Na Samoa Ocidental, por exemplo, existe o terceiro gênero. Na Índia e em diversas tribos indígenas australianas existe o quarto gênero. A sociedade é que nos impõe que, para o homem ser lido como homem, ele deve se comportar, andar, comer, falar assim e assado. Na sociedade onde moramos, o homem que usar maquiagem e usar saia não será legitimado como homem, em outras sociedades sim.
Seu trabalho na fanpage vai pro ambiente físico também. Sim, por causa da fanpage e por causa do blog, eu acabo ministrando palestras, sendo convidada pra encontros feministas e debates sobre a questão trans. No meu próprio perfil do Facebook, faço esse trabalho também, tento aconselhar quem me procura. É muito importante não me limitar ao ambiente virtual. Quando conto pras pessoas a epopeia que temos que passar pra chegar até o judiciário e mudar nossa documentação, a realidade que é ser trans no Brasil, o vácuo de informações e leis que existe sobre nós, e quando falo isso em público, geralmente as pessoas abrem a boca e ficam incrédulas das nossas dificuldades. É muita falta de informação mesmo e muita falta de estrutura. Na verdade, uma estrutura quase inexistente. Por exemplo, existem apenas 5 hospitais que fazem a cirurgia de transgenitalização.
Sabe me dizer quais são eles e onde ficam? Sim. Um fica em Vitória, no Espirito Santo, é o Hospital das Clínicas da Faculdade Federal; São Paulo capital, que é o Hospital das Clínicas; Porto Alegre, que é o Hospital das Clínicas de Porto Alegre; Rio de Janeiro, que é o Hospital Pedro Ernesto e tem um em Goiás também, na capital.
Você considera, então, que ser trans hoje no Brasil é muito difícil? Não é nem questão de ser difícil. Primeiro que você não existe no âmbito das leis – no caso da alteração dos documentos, não existe uma lei específica tratando da transgeneridade e ficamos a mercê de interpretações que variam de juiz pra juiz -, segundo que a sociedade acha que você é outro tipo de gay ou lésbica. Vou te dar dados do Disque 100 (que é o telefone pra denuncias de discriminação), divulgados há um pouco mais de um mês atrás que dizem “cresce o número de violência contra homossexuais”. Mas espera aí, nem todo trans é homossexual. Por um acaso, sou heterossexual. Isso é você tentar colocar no mesmo grupo maçãs e laranjas. Quando você reforça a questão que dentro do grupo LGBT só existem homossexuais, você deslegitima a identidade das pessoas trans. Você reforça aquele estigma que a sociedade fica martelando o tempo inteiro de que “você não é uma mulher, você é um homem gay tentando ser uma mulher”, ou “você não é um homem, você é uma mulher lésbica tentando ser um homem”. E aí eu pergunto: onde está o movimento LGBT pra dizer que não é só de homossexuais que ele é constituído? Porque tem muitas pessoas trans morrendo e perfazendo esse número que só aponta o crescimento da violência “entre os gays”. E nunca vamos saber quantas são, nem quem são elas enquanto o próprio movimento LGBT continuar nos ignorando.
E você acredita que o nível de agressão pelo qual pessoas trans são submetidas é muito maior do que gays e lésbicas. Também não tenho dúvida disso. A violência contra pessoas trans começa cedo, na família mesmo. Somos expulsos de casa e da escola logo crianças, ou logo que começamos a dar sinais de que não encaixamos nas regras de gênero. Não é que saímos da escola, Berenice Bento, que é uma doutora em gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, diz que pessoas trans são expulsas da escola, da universidade, devido ao nível de transfobia. Enquanto gays e lésbicas são ridicularizados e violentados pelos colegas de sala, trans são agredidos também pelos professores e gestores escolares quando na hora da chamada são chamados pelo nome do registro civil ao invés do nome social, mesmo pedindo para o professor. Sei disso por experiência própria, e por ouvir histórias assim diariamente. A pessoa trans inclusive é discriminada pela ciência, que nos categoriza como identidades transtornadas. A transexualidade e a travestilidade que fazem parte do CID (Catálogo Internacional de Doenças) e do DSM (Manual Estatístico e de Diagnóstico de Transtorno Mental); a homossexualidade não, foi retirada do CID em 1990 e do DSM em 1978. As pessoas discriminam as pessoas trans com o aval da ciência, porque a ciência diz que temos transtornos mentais. E aí a gente é expulso da escola e depois do mercado de trabalho, restando-nos a marginalidade. As pessoas travestis e transexuais aparecem na mídia pra duas coisas: serem ridicularizadas ou para serem vistas como criminosas. Então, imagina o nível de dificuldade e preconceito na hora de encontrar um emprego? Jean Wyllys disse uma vez: “gays e lésbicas podem morrer em seus armários, travestis e transexuais não tem essa opção”. As pessoas me veem como quase gente. “Ela é quase mulher, quase homem, quase gente”.
"A violência contra transexuais começa cedo, na família mesmo. Somos expulsos de casa e da escola logo crianças, ou logo que começamos a dar sinais de mudança"
E sobre os direitos dos trans no Brasil? Não temos. O único direito de uma pessoa trans no Brasil é sobreviver. A maioria esmagadora das pessoas trans precisa se prostituir porque são expulsas do mercado de trabalho e do ambiente escolar. Em consequência disso, muitas dessas pessoas são menos politizadas, com baixa escolaridade, tornando-se sobreviventes eternas na nossa sociedade.
E aqui no Brasil, qual primeiro passo seria importante quanto sociedade? Aqui é importantíssimo que se aprove o Projeto de Lei João Nery, que foi proposto pela Érica Kokay e Jean Wyllys em janeiro e é uma lei nos moldes da Argentina – em matéria de direitos humanos eles dão um banho no Brasil. O projeto de lei garante o direito do reconhecimento a identidade de gênero de todas as pessoas trans no Brasil, sem necessidade de autorização judicial, comprovação de cirurgias nem hormonioterapias.
Você já conseguiu mudar seu sexo e nome nos documentos? Estou no processo judicial, que se leva tempo e custo. Conheço pessoas que levaram dois anos e pessoas que levaram seis meses pra mudar a documentação. Depende muito da decisão e julgamento de cada juiz. Já vivo como mulher há muito tempo e meus documentos não confirmam isso.
E a cirurgia de transgenitalização? Você quer fazer? Quero. Estou na fila do SUS e também estou juntando dinheiro. O que eu conseguir primeiro, eu faço. O que acho que vai ser com o meu dinheiro. Tenho amigas que esperaram 10, 15 anos na fila do SUS.
E se for preciso pagar por uma, quanto custa? Entre 30 e 40 mil reais.
E existe um país melhor hoje pra ser trans? Com políticas mais igualitárias, por exemplo. Em primeiro lugar, as identidades trans são patologizadas mundialmente. O único país do mundo que “despatologizou” a transexualidade foi a França. Então, em qualquer outro lugar que você for, você será considerado doente por ser trans. Se você for travesti, você tem um transtorno fetichista; se você for transexual, tem um transtorno de identidade de gênero.
Mas isso significa que a vida de um transexual seja mais fácil na França? Não. Infelizmente ainda não.
Vai lá: a fanpage Transexualismo da depressão, www.facebook.com/transpatologico // o blog Alegria Falhada, www.alegriafalhada.com.br