Protesto desencadeado por repressão ao topless gerou até debate sobre mudança no Código de Contravenções da Argentina
*de Buenos Aires
Há uma semana, quando três mulheres decidiram fazer topless em uma praia de Necochea, ao sul da província argentina de Buenos Aires, alguém decidiu chamar a polícia, que veio. Parte do operativo de abordagem, que envolveu 20 policiais e seis viaturas, segundo a imprensa local, foi filmada e circulou nos principais meios de comunicação do país. As três mulheres optaram por se retirar da praia, mas ficou registrado em um vídeo que viralizou quando um dos policiais disse a elas “a cultura é machista, é assim”, enquanto pedia que cobrissem os seios e se conformassem.
Em resposta, centenas de mulheres com os peitos à mostra se reuniram ontem (07/02) ao redor do cartão postal fálico que se repete em diversas cidades do mundo: o Obelisco, no centro de Buenos Aires. O protesto ainda trouxe pra pauta o combate à desigualdade, o feminicídio e assédio sexual. Ao redor das manifestantes, ora solidários, ora expulsos, ora tolerados, homens formavam um cordão e observavam - muitos filmavam e fotografavam - o que as argentinas chamaram de tetazo (ou tetaço, em português).
Uma história parecida aconteceu no Rio de Janeiro, em dezembro de 2013. Depois que a atriz Cristina Flores foi abordada pela polícia por posar sem blusa para uma sessão de fotos na praia do Arpoador, um protesto - chamado de toplessaço - reuniu não mais que meia dúzia mulheres na praia de Ipanema. Infelizmente, lá como cá, homens que se aglomeravam ao redor das mulheres chamaram mais atenção que o protesto em si.
Em janeiro de 2015, a mesma ação reuniu mais mulheres na Argentina, mas um concurso de “musa do toplessaço” gerou incômodo nas participantes do primeiro ato, que declararam, à época, que o movimento havia sido esvaziado de conteúdo político.
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Na manifestação de ontem, convocada por diferentes coletivos feministas e com réplicas em várias cidades, Marta, uma socióloga de 80 anos, se divertia. “É uma oportunidade maravilhosa para mostrar os peitos no Obelisco”, disse à Tpm, posando para fotos. Para a senhora de cabelo curto e peitos de fora, jovens “são mais fortes. Quando eu era jovem éramos poucas, as feministas.”
Entre palavras de ordem, pintura corporal, bandeiras políticas e latinhas de cerveja, as mulheres circulavam, por vezes elevavam a tensão ao acusar algum observador excedido de “punheteiro”, outras se abraçavam e riam, como numa grande festa. Permitiu-se até uma pequena fricção com a polícia no final, quando algumas picharam e subiram no capô de uma viatura que acompanhava o protesto. O recado era: temos que poder mostrar o que os homens já mostram sem ser incomodadas por isso.
Muitas davam entrevistas para canais de televisão, outras se recusavam a fazê-lo, já que alguns jornalistas pediam que cobrissem os peitos para gravar. Alguns homens que trabalhavam na cobertura do tetaço foram retirados do perímetro informalmente definido pelas manifestantes para que ali estivessem somente mulheres.
“Precisamos milhões de marchas como esta, porque a mudança é cultural e política. Não à toa vemos homens que só vieram aqui para ver peitos”
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No outro extremo de idade, mas na mesma praça onde Marta mostrava seus peitos, Morena e Sofia, estudantes de 16 anos, tiravam uma selfie. Chegaram juntas e se sentiram intimidadas pelo público masculino, que em grande parte agia quase para confirmar as palavras do policial de Necochea. “Precisamos milhões de marchas como esta, porque a mudança é cultural e política. Não é à toa que vemos homens que vieram aqui só para ver um par de peitos.”
Um deles foi expulso por Gabi Cuneo, uma médica de 50 anos que, firme e gentilmente, sugeriu a um senhor por volta dos 60 anos: “por que você não sai daqui?”. Para ela, o que mais incomoda é que nem sempre os peitos à mostra escondem uma provocação sexual. “Tanto mulheres quanto homens acham que quando fazemos topless estamos provocando. Mas a verdade é que só estamos sem camisa.”
“Quem muda é a gente. As mulheres que participam de algo assim mudam. Faz a gente entender que o corpo é algo único. E é nosso”
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A brasileira Geisa Oliveira, estudante de medicina e garçonete, de 27 anos, engrossava o coro das argentinas. Em Buenos Aires há quatro anos, ela pondera que em ambos países existem dificuldades para as mulheres na hora de exercer o direito ao próprio corpo, mas fulmina. “Aqui também te chamam de puta. Mas você pode vir aqui e fazer isso.” Ela não acha que um protesto como o tetaço tenha força para mudar a percepção machista de quem desqualifica o protesto. “Quem muda é a gente. As mulheres que participam de algo assim mudam. Faz a gente entender que o corpo é algo único. E é nosso.”
O incidente em Necochea terminou na Justiça - e a causa foi arquivada pelo juiz que a analisou. Mario Juliano, magistrado com 18 anos de experiência, invocou a Constituição para questionar o artigo do Código de Contravenções, vigente desde 1973 e fruto da penúltima ditadura argentina, com o qual as mulheres seriam enquadradas por “ofender a decência pública”.
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Juliano já tinha sido centro de outro debate acalorado na Argentina. Em setembro de 2016, publicou em um site de jornalismo policial uma carta em que conta que sua filha cultiva e fuma maconha. No texto, defende a “despenalização do consumo” de drogas com a “progressiva legalização das substâncias”.
Em sua sentença, Juliano - que apoiou publicamente o tetaço - afirma que o conceito é vago e que o artigo 19 da Carta Magna garante que ações que não prejudiquem terceiros não dizem respeito aos magistrados. Segundo o juiz, a questão deve mesmo permanecer restrita - ou ampliada - ao debate público.
Créditos
Imagem principal: Aline Boueri