"Netflix só serve para salvar o matrimônio"

por Emiliano Goyeneche

Os filmes da argentina Lucrecia Martel a transformaram em um dos principais nomes do cinema latino - ela lança no Brasil o longa Zama e diz o que pensa sobre séries, dinheiro e feminismo

A cineasta argentina Lucrecia Martel, 51, veio ao Brasil para apresentar Zama, que acaba de estrear por aqui. O filme, que tem os brasileiros Matheus Nachtergaele  e Mariana Nunes no elenco, se passa no século 18 e conta a história de um oficial da Coroa Espanhola que tenta chegar a Buenos Aires. Produzido por Pedro Almodóvar, o longa representou a Argentina no Oscar e recebeu o principal prêmio do festival Cinelatino de Toulouse. 

Lucrecia vem de Salta, uma cidade pequena no norte da Argentina, e fala com a sabedoria da simplicidade e de maneira bem objetiva, mesmo de temas complexos. Ela não gosta de fazer publicidades, se nega a dirigir séries, só filma por prazer e critica os produtores que só querem vender séries para Netflix. “Eu tenho uma ideia para Netflix? Mas quem é Netflix? Uma empresa que quer fazer grana!”.

Teus filmes não tem um argumento claro, mas eles tocam profundamente em um lugar que não é racional. Como é isso? Eu faço o esforço de filmar imersivamente. Depois acontece de algumas pessoas falarem que meus filmes são intelectuais, quando, na verdade, é tudo o contrário. A ideia é que sejam uma experiência em si. Não percebem que muito mais intelectuais são os filmes mainstream, onde o tempo todo você corre atrás do argumento. 

Você sempre explora tabus nos seus filmes, em muitos deles há cenas de incesto implícito. Como você constrói o desejo nos seus personagens? Para escrever, não penso se é homem, mulher, adulto ou criança. Acho melhor pensar como se fossem monstros. Para mim, o cinema de terror sempre foi revelador. E por quê? Porque o monstro você não conhece completamente, por isso são monstros. Por serem desconhecidos, não sabemos como vão reagir, eles podem te surpreender. Você pensa que o Alien já é uma coisa horrorosa, mas aí ele abre a boca e sai outra boca. Surpreende pela sua natureza. O monstro é um mecanismo que deseja sem nenhuma lei, não deseja os homens, não deseja as mulheres. O monstro deseja. E isso se parece muito mais com a ideia de um ser humano, do que pensar as mulheres como mulheres e os homens como homens. Se você pensa a personagem infantilmente, como um monstro, você pode escapar de muitos preconceitos.

Por isso teus filmes não giram em torno de um argumento moral? O monstro em si não tem moral, a moral é um contrato com os outros. O monstro não tem contrato. Para mim, as pessoas são monstros que fingem. Fingem que são adultos, fingem que são crianças, fingem que são mulheres, fingem que são homens. Dessa maneira, é muito mais fácil escrever.

É difícil viver de cinema fazendo filmes fora do padrão? É difícil ficar rico com filmes assim. Mas quem gosta de fazer filmes para ganhar dinheiro vira um escravo. Com o primeiro trabalho, compra uma casa na praia, uma piscina, começa namorar uma atriz mais jovem e você tem cada vez mais gastos e tem que fazer cada vez mais filmes de sucesso. É uma carreira perigosa, não sei se eles ganham mais do que eu no final.

E como foi o processo de fazer um cinema de autora, com um estilo próprio? Isso você não decide, vai acontecendo. Na verdade, você decide quando um dia te convidam para fazer um filme que não te interessa, onde você ganharia mais dinheiro, e você fala não. Ou te oferecem uma publicidade e você lê o roteiro e fala “não, isso aqui é muito chato”.

Você já falou não muitas vezes? Para publicidade, sim. Você tem que gostar muito de grana para filmar um roteiro que você não gosta. Ou você tem que ter muitos filhos, ou, como te falei, uma piscina ou uma casa na praia para manter.

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Você diz que o som é a duvida. Por quê? Porque a imagem é uma referência muito forte em relação ao objeto. O som precisa de tempo e a referência não é tão clara. Pode parecer que é um trem, mas é uma sirene. Você pode achar que é um cavalo, mas é uma mulher de salto alto. O som é muito mais ambíguo e obriga maior concentração. Ao mesmo tempo, é muito emocional, tem essa natureza mais complexa. A imagem é muito forte porque passa muita informação em pouco tempo, mas isso faz com que ela seja fraca, faz com que seja muito dura, que seja muito a coisa em si. Em Zama, todas as vozes são como um pensamento do protagonista e todos os sons da mata são muito eletrônicos. Escolhemos os que pareciam menos orgânicos, para criar uma ruptura. Tudo isso eu pensei antes, enquanto estava escrevendo o roteiro.

Já te convidaram para fazer séries? Sim, as empresas de publicidade me chamam falando que querem produzir conteúdo. Nem sabem qual é palavra correta. Conteúdo? Poderia ser arroz, poderia ser uma pasta de dentes. Ninguém se incomoda com as séries, não existe conflito com as séries. Quantas versões de Narcos existem? Meu irmão, que é fanático, já me falou que viu 15. Você acha que em alguma dessas séries existe algum pensamento complexo de como funciona o narcotráfico? Não. É uma competição para saber quem faz o crime mais horrendo, é uma competição de pouco caráter intelectual. Quem na América Latina fez uma série que tenha uma reflexão interessante, controversa e politicamente complexa desde que começaram a produzir para vender para Netflix? Ninguém. Sabe por quê? Porque os produtores trabalham para agradar a Netflix. Não para agradar o público. “Eu tive uma ideia ótima para Netflix.” Quem é Netflix? Uma empresa que quer fazer grana!

“Quem poderia produzir uma série sobre o crime da Marielle Franco? Ou sobre a revolta do movimento negro? Quem vai botar grana para isso?”
Lucrecia Martel

Temos que falar mais que não? Não acho que temos que falar mais que não. Mas não podemos ser tão tontos. Eu faço uma brincadeira de que Netflix serve para salvar o matrimônio, porque, não fosse pelas séries, as pessoas teriam que conversar e perceberiam que a vida sexual está ruim, que não estão transando o suficiente.

Você viu a série O Mecanismo? Não, mas ouvi falar que atribuíram ao Lula uma frase que não era dele. No mundo, a direita está se impondo sobre outras ideias políticas, o palhaço do Trump nos Estados Unidos. Existe uma relação entre isso e um sistema narrativo audiovisual que se impõe no mundo? Me diz: quem poderia produzir uma série sobre o crime da Marielle Franco? Ou sobre a revolta do movimento negro? Quem vai botar grana para isso? Isso desestabiliza. No máximo, vão fazer uma série sobre o MeToo, porque é a parte do feminismo mais aceita. Mas, por exemplo, quando na Argentina acontece um encontro de mulheres, arde Troia. Porque qualquer grafite na parede um pouco provocativo as pessoas ficam loucas. Ah!, são as feministas nazis. Elas botam frases do tipo “mate o seu namorado”. Mas que feminista vai fazer isso? É uma piada, uma provocação. Mas aí já fazem elucubrações de que as feministas querem matar os namorados. Existe uma falta de senso de humor.

Você é feminista? Sou filha do feminismo, eu não poderia existir se não fosse, porque as feministas mudaram o mundo. Não sou uma pessoa que reflete sobre a teoria de gênero, porque me formei a partir de outro lugar de reflexão, a filosofia, a física. Mas seria absurdo se não reconhecesse que estou neste lugar no mundo por causa do feminismo.

Em A menina santa, o protagonista encosta em uma menina de 16 anos e ela acha que aquilo é um chamado de Deus. Alguma vez te questionaram sobre essa cena a partir de um ponto de vista feminista? Não. As feministas não são tontas, quem questiona isso é outra gente. As feministas são inteligentes.

E os outros, os mais conservadores, o que questionaram? Não, não. Eu acho que é esse o fracasso do meu cinema, ainda não consegui que alguém fique bravo o suficiente. [Risos.]

Ter essa postura a margem de tudo, saiu caro? Eu sinto que saiu baratíssimo. Não tenho Facebook, não tenho Instagram, não tenho Twitter, nem fico sabendo quando falam mal de alguma coisa que eu falei. Não me vejo fazendo uma série para Netflix. Acho que estou no caminho certo.

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Imagem principal: Divulgação

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