Milly Lacombe: ’Sem saber o que fazer para que os irmãos se dessem bem, fracassamos em todas as tentativas’
Sem saber o que fazer para que os dois irmãos se dessem bem, fracassamos em todas as tentativas de aproximação. Até que o destino se meteu na história
Quando Antonio nasceu, o mundo de Paulo implodiu. Depois de três anos de reinado absoluto – primeiro filho, primeiro neto – a chegada de um irmão não estava nos planos. Mas tudo pioraria quando Paulo entendesse que o novo morador da casa era praticamente um ET: não gostava de jogar futebol, nem de ver jogo na TV, nem parecia ter vindo equipado com sua finesse. Falava alto, falava com qualquer um no meio da rua, ria de qualquer coisa; estava, definitivamente, mais para o lado siciliano da família – o da mãe – do que para o lado suíço – o do pai. Em pouco tempo a existência de Antonio adquiriu a capacidade de elevar a irritação de Paulo para além da litosfera. Estranhamente, Antonio parecia não notar a falta de paciência do irmão. Ou fingia não notar, jamais saberemos.
À mesa, os hábitos ficavam ainda mais distintos: enquanto Paulo comia de tudo e gostava especialmente de melão e de saladas e de grãos, Antonio se recusava a comer coisas verdes ou frutentas, ou a comer comidas que encostassem umas nas outras no prato, ou a comer comidas que não fossem feitas basicamente de carboidratos. Sua preferência por macarrão e doces era notória e, como o garoto crescia em ritmo industrial, era muito difícil fazer com que ele comesse adequadamente. Aos 2 anos era capaz de matar um hambúrguer em três mordidas – eu sei porque fui eu que ensinei e hoje me arrependo. O tamanho descomunal fazia com que Antonio fosse muitas vezes tratado como alguém com uma forma leve de deficiência mental: “Como esse menino ainda não sabe ler, ou amarrar o cadarço, ou falar as horas?”. Ele não sabia porque possuía altura e peso de alguém de 10 anos, mas tinha apenas 4.
Atordoado com a presença de uma pessoa tão radicalmente diferente e que ocupava tanto espaço, Paulo fazia o que podia para se distinguir: na escola só tirava A e B, dormia cedo e sem reclamar, era a criança mais obediente e educada e gentil do universo. Tentávamos entender como meninos criados de forma tão idêntica podiam ser tão essencialmente diferentes, mas, mais do que isso, o que poderíamos fazer para que não se detestassem e fossem amigos como irmãos talvez devessem ser.
Não tínhamos nenhuma experiência, nem eu como tia, nem minha irmã e meu cunhado como pais, então era tudo um jogo de alquimia e nossas fórmulas não vingavam: os dois meninos cresciam a cada semana mais distantes. Até que um dia Antonio aprendeu a tocar violão e as coisas pioraram sensivelmente. Aos primeiros acordes, Paulo ameaçava arrebentar o instrumento na cabeça do irmão. Dizia que estava estudando e que aquele barulho, que em nada parecia uma música, o deixava maluco. Antonio então tocava mais uma nota, apenas para provocar, e conseguia.
Pouco antes disso, Paulo se convenceu de que a presença de Antonio na sala de TV em dias de jogos do São Paulo fazia com que o time sofresse gols. Bastava Antonio entrar, Paulo dizia, e o São Paulo tomava um gol. Em nome das vitórias de seu time, Paulo passou a expulsar Antonio da sala de TV aos domingos à tarde. Na dúvida, embora achasse a atitude de Paulo exagerada, eu mandava Antonio entrar outra vez. Como Paulo herdou de mim o amor pelo jogo, mas optou pelo time rival, não custava testar a teoria porque todos nós sabemos que superstições têm sim influência no resultado de uma partida, e, se Antonio era um tremendo pé-frio, que voltasse logo à sala. Hoje também me arrependo um pouco disso, e nunca confessei a ninguém que, nesse caso, concordava com Paulo: o irmão era um abençoado pé-frio. Mas a verdade é que, quanto mais cresciam e encorpavam e ficavam lindos e fortes, mais feias eram as brigas entre eles.
Diferentes, mas iguais
Mês passado Antonio prestou vestibular. Colocou na cabeça que queria USP e estudou feito um alucinado. Sem que ninguém o cobrasse por qualquer tipo de resultado, resolveu jogar toda a pressão do mundo nas próprias costas e no dia em que a lista sairia pediu que ficássemos ao lado dele. Eu não estava no Brasil, mas meu objeto de devoção passava uns dias em São Paulo e fez exatamente o que o menino solicitou. Era uma situação de emergência: Antonio não dormia havia algumas noites, já tinha roído todas as unhas das mãos e dos pés e dizia que não saberia suportar um resultado negativo.
Seria, isso estava claro para todos nós, a primeira grande dor da vida do garoto. Eu estava aflita e a um oceano de distância quando, antes mesmo que meu objeto de adoração fizesse algum contato, recebi uma mensagem de texto de Paulo que dizia: “Ele não passou”. A entrelinha era “liga para ele, faz alguma coisa”. O que eu fiquei sabendo depois é que ao tomar consciência do resultado quem chorou primeiro foi Paulo.
Ninguém se lembra de quando os dois meninos finalmente se enxergaram, mas o fato é que em um dia de um passado recente eles se viram pela casa e entenderam que mais do que diferenças havia entre eles semelhanças. Hoje deitam na cama um do outro para falar (ou reclamar) das mulheres, comunicam-se em código quando não querem ser entendidos, e confessam-se segredos que guardam com a lealdade dos mafiosos.
Quis o destino que Antonio tivesse vindo me visitar além-mar quando, dias depois, soubemos que seu nome, enfim, constava de uma terceira lista. O telefone tocou cedo por causa do fuso horário, e, como era uma chamada de vídeo, pude escutar o rápido diálogo entre Paulo e Antonio. “Cara, Tô, você passou, que orgulho. Parabéns.” “Valeu, Pá.” “Eu te amo, Tô.” “Eu também te amo, Pá.” Os dois trocaram mais algumas palavras e desligaram. Como quando fico sem reação tendo a chorar, foi o que fiz. Enquanto isso, Antonio apenas repetia: “Mi! Ele disse que me ama! Que fofo!”.
Se for abençoada com muita sorte, vou embora deste planeta bem antes de meus dois descendentes, essas pessoas que amo mais do que um dia sabia que podíamos amar outras pessoas, e que me fazem temer pelo amor de uma mãe porque se amor de mãe for meio grau maior do que o que sinto então é um amor capaz de enlouquecer. Mas vou embora com a certeza de que Paulo e Antonio ficarão bem porque, finalmente, reconheceram um ao outro como um sólido e confiável sistema de suporte afetivo – e eles vão precisar disso quando a vida endurecer aqui e ali. E, ainda que sejam pessoas apaixonantemente diferentes, sabem que compartilham de um mesmo passado, de algumas mesmas dores e de muitos mesmos amores. É o que nos une, afinal. A consciência de que somos fraternalmente iguais apesar de tantas e bem-vindas diferenças.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com