Ruth era a prova de que pessoas prendadas e educadas transcendem
Ruth costurou meu primeiro biquíni e bancou minhas aulas de alemão. Era a prova de que pessoas prendadas e educadas transcendem
Ruth tinha 16 anos quando seu próprio país virou as costas para ela. Primeira aluna da escola, sentava na frente e almejava encarar uma faculdade de química e física. Mas a jovem estava no lugar errado, na hora mais errada ainda: a Alemanha nazista, na década de 30. Ela era judia – e os judeus foram banidos das universidades.
Sua mãe, dona de um armarinho famoso na cidade de Allenstein (hoje Olsztyn, na Polônia), teve a sacada do século: para sobreviver em qualquer canto do mundo, Ruth e a irmã, Yutta, de 14 anos, teriam que cozinhar e costurar. Matriculou as filhas em cursos, enquanto seus passaportes foram feitos às pressas. Pouco depois, ambas embarcaram no Kindertransport, um trem que tirava crianças da Alemanha. Foram para a Inglaterra e nunca mais viram os pais, mortos no Holocausto.
Cozinheira trilíngue
Depois de quatro anos em Londres, trabalhando como cozinheira na casa de uma família e, posteriormente, de camareira no Dorchester Hotel, o mais requintado da cidade até hoje, Ruth emigrou novamente. Ela conseguiu localizar seu namorado, que havia fugido da Alemanha com a família para La Paz, na Bolívia. Depois de uma intensa troca de correspondência, eles se casaram por procuração. Mais 35 dias de navio, e ela estava nos braços de seu amado. Na foto do casamento, Ruth vestia preto: acabara de saber sobre a morte dos pais.
Da Bolívia, onde tiveram sua única filha, eles emigraram para São Vicente, no litoral paulista. Sem falar português, abriram a pensão Gaby (nome da filha), e Ruth passou a cozinhar todos os dias para 60 hóspedes durante anos – o marido arrumava os quartos. Ruth cozinhava como ninguém. Além disso, ela costurava todas as roupas dela e da filha. E, assim, eles sobreviveram à guerra e se mudaram finalmente para a rua Augusta, em São Paulo. Fluente em três idiomas, ela devorava livros na língua original, não perdia um filme e amava concertos. A química e a física ficaram na vontade.
Ruth costurou o meu primeiro biquíni, com um chapéu combinando. Era de tricô, sua outra especialidade. Ela era a minha avó materna, a minha oma, como falamos em alemão. Ela ainda me ensinou tapeçaria e a preparar gulache e biscoitos amanteigados. Patrocinou meus cursos de alemão e de francês. Ela é a prova de que pessoas prendadas e que focam na educação sobrevivem, vivem e transcendem qualquer episódio da história. Ela, que perdeu tudo, costumava dizer: “O que tem dentro da nossa cabeça ninguém pode nos tirar”.
Tania Menai é jornalista, mora em Manhattan há 17 anos e é autora do livro Nova York do Oiapoque ao Chuí, do blog Só em Nova York, no site da Tpm, e também do site www.taniamenai.com |