Ouça, Lola, ouça

por Natacha Cortêz

A blogueira Lola Aronovich, publicando e respondendo relatos de leitoras que sofreram abuso, ajuda centenas de mulheres a entenderem o que é violência sexual

A professora e escritora Lola Aronovich, 46, é autora do blog feminista mais acessado do Brasil, o Escreva Lola Escreva. Desde janeiro de 2008 coleciona leitores fiéis e um número de mais de 300 mil visitas e 420 mil pageviews por mês. O debate não se restringe ao post, e a caixa de comentários acaba virando uma área que abriga discussões acaloradas e muitas vezes confissões íntimas. A empatia é tamanha que muitas mulheres passaram a procurá-la pra dividir histórias e pedir conselhos. Isso a levou a criar os Guest Posts, uma seção dedicada aos e-mails que recebe e considera importante dividir. "Já publiquei quase 250 desde que comecei o Escreva Lola; 113 só em 2012", conta. 

A Tpm conversou com a Lola sobre a cultura do estupro, e de como se formou uma comunidade de leitores participativos em torno de seu blog, "Muita gente me diz que mudou por causa do blog, que superou seus preconceitos, que se assumiu feminista, que aprendeu a lutar". 

Seu blog tem muito engajamento, certo? Os posts são muito comentados e volta e meia você publica depoimentos de leitoras. Aqui na Tpm sempre o vimos como um espaço onde mulheres acabam se encontrando, seja pelos seus textos ou por outras histórias. Como vê isso?
Eu custo a acreditar que o blog seja um lugar especial, porque é só um bloguinho não-profissional feito por alguém que não vive disso. Mas o carinho das leitoras, e de vários leitores também, é impressionante. Muita gente me diz que mudou por causa do blog, que superou seus preconceitos, que se assumiu feminista, que aprendeu a lutar. E, realmente, recebo muitos e-mails com relatos dolorosos de gente que nunca contou aquilo pra ninguém, mas decidiu compartilhar no blog para ajudar outras pessoas que podem estar passando por isso. Há vários espaços para essa troca de experiências na internet. Fico feliz que meu blog seja um desses espaços.

Algum depoimento ou história que leitoras compartilharam contigo te marcou? Pode me contar um? 
Ah, são muitos! Todos são marcantes. Eu fiquei muito triste com o relato recente de uma moça que tinha um problema que a fazia ter um cheiro ruim e forte, apesar de todos os banhos que tomava. Ela havia abandonado a faculdade por causa dos chistes dos colegas. Eu tinha recebido um outro email relacionado a mau cheiro no mesmo mês. Foi uma incrível coincidência, porque foram apenas dois relatos baseados nisso em cinco anos, e ambos vieram no mesmo mês. O outro era de uma mulher que tinha uma amiga com mau cheiro, e não sabia o que fazer – falava ou não com ela sobre esse assunto tão delicado? Foi muito interessante porque a moça que sofria esse problema na pele pôde aconselhar a amiga. Depois dos dois posts publicados, outras pessoas quiseram entrar em contato com elas. Portanto, em muitos casos, cria-se um clima de camaradagem, de sororidade mesmo. E sempre recebo e-mails de gente que quer ajudar a amiga a abandonar um relacionamento abusivo, mas não sabe como conversar com ela. Outra dúvida bem comum é referente a “sou feminista?”. Uma leitora parou de trabalhar pra cuidar do filho, então ela é feminista? Outra é maquiadora profissional – ela é feminista? Outra voltou com o namorado que a tinha maltratado, e quer saber se ainda pode ser considerada feminista. Eu respondo que todo mundo pode ser feminista, e que feminismo tem a ver com escolhas, mas nem todas as escolhas que fazemos são feministas. Mas é bacana que tanta gente queira ser vista como feminista. E é divertido, porque eu não sou um Oráculo e nem tenho poder (ou vontade) pra cassar carteirinha de feminista de alguém.

GUEST POST: MEU ESTUPRADOR NÃO SABE QUE ME ESTUPROU

"Ano passado aconteceu comigo uma coisa que ficou na minha cabeça por meses, mas que eu sempre espantava com aquela velha história do 'você que provocou!', 'ele é homem, e homens não aguentam mesmo'. (...)

Quando chegamos em frente a minha casa ele me beijou. Ficamos um tempo ali em frente de casa nos beijando. Moro sozinha, e ele já tinha perguntado sobre isso no caminho, inclusive. Aí ele ficou falando "Poxa, você não vai mesmo me convidar pra entrar? Não vai me oferecer nem uma água?" E eu respondia que não, meio rindo, mas certa de que não queria nada mais além naquele dia, e percebendo que o interesse dele era esse. Depois de um tempo ele pediu para usar apenas o banheiro então, já que tinha bebido muita cerveja. Acabei permitindo. Entramos, ele foi ao banheiro e depois que saiu ficamos nos beijando um pouco, mas ele foi avançando e quando eu negava, eu pedia pra ele parar, ele dizia: "eu sei que você também quer". Ficamos um tempo nessa, até que ele avançou com um certo grau de força. Eu não gritei. Não lutei fisicamente contra ele por muito tempo. Eu apenas resisti enquanto ele tentava tirar a minha calcinha. Pus força no braço, neguei. Disse que ele tinha que ir embora, que já era tarde, que eu queria dormir. Disse todo o tipo de coisas que vieram à mente. Ele não parou e manteve o papo de "eu sei que você quer". Eu parei de lutar. Como algumas pessoas dizem, me afastei do meu corpo por um tempo. Era como se não fosse o meu corpo ali. Como se eu estivesse assistindo tudo de fora. (...)

Hoje, depois de ler tantos posts do seu blog, sou capaz de ver que o que aconteceu foi muito errado. Mas ainda assim é difícil não me ver como culpada pelo que aconteceu. Não sei... É como se a partir do momento que você beija o cara, troca abraços e carinhos, você estivesse dando permissão para o sexo. E não é isso! Muitas vezes estamos com um cara e não temos certeza de até onde queremos ir, mas é como se, no momento que você abraça e beija, você desse uma permissão para que ele faça o que bem entender.

É doloroso. É forte. É muito tenso.

Você também fala muito sobre a "cultura do estupro". Como a vê no Brasil? Depende mais da mulher do que do homem, ou é um trabalho dos dois? 
A cultura do estupro é aquela que culpa a vítima, que acha que mulher inventa que foi estuprada, que só acredita que foi estupro se se encaixa naquele clichê de “homem estranho numa rua deserta à noite” - o que representa menos de 30% dos casos de estupro - e que ainda assim pergunta “o que ela estava vestindo?”. O pessoal que nega que exista uma cultura de estupro no fundo a reforça. Eles dizem: “O estupro é odiado no Brasil, tanto que estuprador vira mulherzinha na cadeia”. Eles vibram que estupro seja punido com... estupro. E ainda assim creem que marido forçar mulher a sexo não é estupro. E não sabem que menos de 2% dos casos de estupro acabam numa condenação ao estuprador. Fazem piadinhas com estupro, dizem “essa daí tá pedindo”, ao mesmo tempo que não querem pensar muito no assunto. Enquanto prevalecer essa mentalidade, ela continuará encrustada na sociedade brasileira - não só aqui, óbvio. É importante que haja reações e protestos contra essa cultura de estupro. Só assim ela pode ser desmistificada – fazendo com que as pessoas pensem nela, saibam de sua existência. É um trabalho tanto de homens quanto de mulheres, mas infelizmente muitos homens agem como se estupro fosse um assunto de mulheres. De fato, o temor do estupro faz parte do nosso dia a dia, é uma ameaça constante. Porém, mais que ensinar mulheres a não serem estupradas - o que é feito desde que nascemos, e que não funciona, pois o estupro continua acontecendo, é preciso ensinar homens a não estuprarem. Eles precisam se conscientizar do seu papel em terminar ou perpetuar a cultura de estupro.

 

"A cultura do estupro é aquela que culpa a vítima, que acha que mulher inventa que foi estuprada, que só acredita que foi estupro se se encaixa naquele clichê de 'homem estranho numa rua deserta à noite' e que ainda assim pergunta 'o que ela estava vestindo?'" 


Qual a importância dos espaços virtuais hoje pra atuações como a sua no "Escreva Lola escreva"? 
O espaço virtual é onde todas podem ter voz. Se considerarmos que, na imprensa tradicional, apenas 8% de todos os artigos assinados em jornais são da autoria de mulheres, veremos essa importância. A internet é um meio onde negras, transexuais, lésbicas, feministas em particular e mulheres em geral, poderem se expressar e ser ouvidas. Isso definitivamente não acontece na grande mídia. Além do mais, blogs têm uma dinâmica particular. Por ser um espaço mais pessoal, em que muitas vezes não há intermediários entre o leitor e o autor, muitos leitores passam a ver blogueiros como amigos acessíveis. Há blogueiras que se incomodam com isso, que dizem “Vocês pensam que sabem tudo sobre a minha vida, mas não sabem nada!”. No meu caso, eu sou bem assim como apareço no blog.

GUEST POST: REAGI À VIOLÊNCIA

"Sem que eu notasse a movimentação anterior, aquele homem bêbado, com uma camiseta de time de futebol popular e seus 30 anos, barba por fazer, alto e com uma garrafa de cerveja barata na mão, sentou-se ao meu lado de forma intimidadora, me pressionando contra a janela. Tomei um susto, porque foi uma aproximação muito brusca. (...) Aqueles olhos avermelhados e sádicos estavam a apenas um palmo da minha cara. Ele dizia coisas nojentas, dignas de um agressor sexual, e repetia constantemente 'Não vai nem olhar pra mim?', eu tentava empurrá-lo pro lado e ele não cedia. Eu não conseguia olhar novamente, meu coração acelerou, ele continuava me assediando e expandindo seu corpo em direção ao meu. Uma sensação de terror tomou conta de mim, ouvia as risadas daqueles moleques amigos dele ao fundo, pensava no que fazer pra sair daquela situação. (...)

Desci, e o motorista me aconselhou a tomar um café em um bar próximo antes de ir, pra não correr o risco de encontrá-lo. Atravessei a rua sem pensar, entrei em um bar, pedi um café preto e liguei para uma pessoa de confiança vir me buscar de carro, contando o que aconteceu aos soluços. Mais um cara ainda veio me encher o saco, se aproveitando do momento vulnerável: 'Uma moça tão bonita chorando? Posso te pagar uma cerveja?' Parece que quanto mais frágil você está, mais atrai homens dispostos a te abusar"

No seu blog também há muitas manifestações de preconceito. Pode me falar delas?
Aparecem quase sempre nos comentários, que passaram a ser moderados de um ano pra cá. Nos quatro primeiros anos do blog não havia moderação de comentários, mas os trolls chegaram a níveis insuportáveis e realmente estavam atrapalhando o debate. Todos os trolls do blog, sem exceção, pelo menos por enquanto, são, além de ignorantes, de direita e preconceituosos. E nunca é um preconceito só. Vem logo um combo de preconceito no mesmo comentário: machismo, racismo, homofobia, gordofobia, classismo... Esses comentários não mudam. Seguem sendo machistas e arcaicos. Aliás, me espanta a falta de criatividade desse povo: os insultos que eles fazem contra as feministas, por exemplo, são idênticos aos que eram feitos contra as sufragistas 170 anos atrás. Imagino que nem eles pensem que estão sendo originais ao chamar uma feminista de mal-amada, lésbica, gorda, histérica... Com troll não há conversa. Com grupos de ódio não deve haver diálogo.

Acha que as manifestações feministas, sejam no ambiente online ou físico, estão mais fortes agora?
Sim, acho. Há cada vez mais pessoas se assumindo feministas, e elas querem ser ouvidas. Não se calam, não têm medo: reagem. Não são apenas as manifestações feministas que estão fortes, mas toda a luta contra tantos preconceitos. Os conservadores se exasperam com isso, e culpam a “praga” do politicamente correto. Eles já notaram que não podem mais contar uma piadinha racista e receber tapinhas nas costas. 

GUEST POST: EU PRECISO TOMAR AS RÉDEAS DA MINHA VIDA

Antes do seu blog, nunca tinha tido contato algum com assuntos feministas. Fui criada em um lar extremamente machista. Escuto desde pequena da boca do meu pai que eu não tenho querer, e quando havia alguma briga ou discussão por algo que eu havia feito (ou não) só quem falava era ele; eu nunca tive opinião sobre nada em casa. (…)

Casei, aos 22. Engravidei, minha filha nasceu. Meu maridinho, até então um amor, se revelou o machista que é. Eu tinha que cuidar sozinha da casa, da minha filha e dele que, vamos combinar, parece aqueles adolescentes de 13 anos de tão bagunceiro. Fui chamada de inútil e burra por ele, pois eu não conseguia fazer essas coisas tão simples e ainda trabalhar fora! (…)

Segundo ele, eu sou tão inútil, mas tão inútil Lola, que eu mereci apanhar, pela primeira vez, no dia 2 de novembro de 2011, com a minha filha, de na época 5 meses, no colo. (…)

Ah, e todas as vezes que sou agredida é por minha culpa, eu que provoquei por que eu sou uma burra e tentei argumentar com ele. Não posso falar com ele quando ele tá com raiva. Ele diz que sou uma péssima mãe, uma péssima dona de casa, e no fim de tudo uma merda, não presto pra nada. E no fim do dia anda tenho que estar sorridente, doida de vontade de "ser mulher" pra ele! O dia que disse pra ele que ele precisava era de uma empregada e de uma boneca inflável que não fala nada, e não de uma esposa, levei um murro no nariz.

Sente algum progresso quanto aos machismos, ainda mais os cotidianos?
Sou tão otimista que uma leitora querida me apelidou de Polyanna Deslumbrete. Então sempre quero acreditar que o mundo está mudando. Claro, não com a mesma rapidez que gostaríamos, mas está. Pelo menos o machismo mais institucionalizado, que vem em forma de leis, da propaganda, da mídia, está mais reticente. Imagino que hoje passe pela cabeça de uma agência de propaganda se aquele comercial que ela está criando não será visto como machista. E vemos cada vez mais pessoas estudando e pesquisando gênero na academia. Hoje em dia é comum encontrar coletivos feministas em universidades públicas. Porém, o preconceito segue forte na nossa cultura, e se manifesta diariamente em nossos atos e falas. Mudar a cabeça das pessoas demanda tempo e esforço.

 

"Uma mulher que está sofrendo violência deve denunciar, não deve aceitar calada. Alguém que já passou por isso pode se valer da sua experiência para orientar outras sobreviventes. Acho que ajudar outras pode ser empoderador."


Qual a melhor maneira de uma mulher agir em relação a violências, sejam domésticas ou sexuais? 
Uma mulher que está sofrendo violência deve denunciar, não deve aceitar calada. Alguém que já passou por isso pode se valer da sua experiência para orientar outras sobreviventes. Acho que ajudar outras pode ser empoderador.

Quais foram seus maiores aprendizados com o blog até agora?
Eu aprendo algo novo toda semana. Gasto tempo demais com o blog, tempo que não tenho, mas o que recebo em troca é muito positivo. É toda uma gama de experiências diferentes das minhas. Fazer um blog me ajudou a estruturar todo o meu feminismo, que era – e creio até que continua sendo – muito difuso. Tive que aprender a enfrentar meus próprios preconceitos e prestar mais atenção no que digo. Aprendi que existe muita gente sem noção no mundo, gente que eu não imaginava que existisse nem nos meus piores pesadelos. Mas confirmei o que sempre desconfiei: que grande parte das pessoas é boa e quer mudar o mundo.

Vai lá: escrevalolaescreva.blogspot.com.br // www.facebook.com/EscrevaLolaEscreva

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