O preço da liberdade

por Redação
Tpm #71

Aos 28 anos, fui obrigada a tomar a primeira grande decisão da minha vida. E entendi que segurança e liberdade jamais existirão ao mesmo tempo

 

Eu tinha 28 anos quando fui apresentada a mim mesma. Estamos em maio de 1996. Re­­cém-promovida a um cargo de ge­rên­cia no departamento de marketing pu­­bli­ci­tário de uma editora, ganhando bem mais do que ganhava meu pai à época (explica-se: ele era jornalista; eu ainda não), na­mo­­ran­do sé­­rio um rapaz há cinco anos, a vida pa­recia ter entrado no trilho. Empolgada com os be­ne­­­fícios do sistema, troquei de carro, com­prei uma moto, jantava fora todos os dias, pas­sava os fins de semana em lojas ou na
praia e não economizava em absolutamente na­­da – as delícias do excesso.
Mas é quando tudo parece perfeitamente organizado que o cosmo conspira. Sem aviso pré­vio, me apaixonei por uma outra mu­lher que, em pouco tempo, foi morar na Ca­li­­fór­nia. O que parecia a existência perfeita en­trou em um túnel de melancolia e dúvidas. O tra­balho passou a ser braçal, a cosmopolice paulistana perdeu o en­can­­­to, o sistema rígido de horários, tarefas, planilhas, prazos, re­­u­­­­­­­ni­ões, compromissos e satisfações latinamente familiares a­mea­­çava me en­louquecer. À minha frente, a primeira grande bifurcação: fi­car, acei­tar, casar, enriquecer, engravidar, me enquadrar ou jogar tudo para ci­ma, recolher o que sobrara de grana e me mandar para a Ca­li­fórnia a­trás do que era, até então, a promessa de um amor.

Bicicleta e vinho barato
Foi assim que, em maio de 1996, pedi demissão, vendi o carro e a moto e me mandei para Santa Barbara, Califórnia. Cheguei, me matri­culei em uma pós-graduação, consegui emprego como entregadora de pizza e, depois, como garçonete e me casei com uma mulher. Vivia com o pouco que ganhava, não tinha grana para jantar fora mais do que uma vez por semana, muito menos para comprar roupas novas. Tu­do o que pude fazer foi adquirir uma bicicleta com a qual ia e vi­nha. Troquei de lado e, em vez de ser servida, agora era eu que ser­via. Acor­dava às cinco da manhã para ir trabalhar de bicicleta, estuda­va à noi­te, de bicicleta. Em compensação, não precisava mais dar sa­tis­fa­ções a ninguém, não havia compromissos, reuniões chatas, tele­fo­ne­mas fora de hora, prazos, expectativas ou amarras familiares. O que ha­­via era, todas as noites, em minha bicicleta, voltar para casa, para a mulher que me amava e me fazia sorrir. Ali, na minúscula cozinha, fa­zía­mos o jantar e abríamos a garrafa de vinho de US$ 2.
Passávamos meses economizando uma grana para extravagâncias como um fim de semana em São Francisco, Palm Springs ou para aquele jantar no restaurante mais bacana da cidade. Meu primeiro Na­­tal solitário foi em Lake Tahoe, depois de uma longa road trip cheia de imprevistos, nevascas e perrengues a bordo de um Toyota quase tão antigo quanto eu. Na noite do 24, reservamos uma mesa em um restaurante da cidade e lá fizemos o que seria a primeira de nos­sas ceias de Natal além-mar. Uma cena que se repetiria no ano-novo por vários anos.
Foi em Santa Barbara, aos 30 anos, que comecei a escrever e per­cebi que aquilo me daria, para sempre, enorme prazer e quase ne­nhuma grana. Por centenas de vezes, me vi na mesa da cozinha, com mi­nha mulher, fazendo contas, tentando encaixar o orçamento à nova realidade. Uma situação que beirava, aqui e ali, o desespero.

Segurança e liberdade
Agora, olhando em retrospecto, entendo a piada cósmica: segurança e liberdade não existem simultaneamente. Podemos morar em casas ultra-seguras, dirigir carros blindados, andar com seguranças, aceitar a rigidez estúpida e sem criatividade que o sistema impõe, perpetuar detritos éticos e morais, mas jamais seremos livres. Ou podemos abandonar a jaula de exigências e padrões comportamentais que nos controlam, a obrigatoriedade de sermos assim e funcionarmos assado, a necessidade de preenchermos expectativas que outros têm a nosso respeito; romper com o formato e criar nossa própria realidade - mas jamais existiremos em segurança.
Oscar Wilde escreveu que viver é a coisa mais rara do mundo; a maioria das pessoas apenas existe. E minha amiga Paola Bianchi disse a seguinte frase, num fim de tarde na cidade, enquanto tomávamos café e conversávamos sobre ter coragem para ser livre, soltar as algemas e simplesmente amar: “Tudo é só isso”. De fato, tudo é só isso.
Tati e eu tínhamos economizado dinheiro suficiente para um jantar com direito a cerveja no restaurante bacana da cidade. Estamos em julho de 1997, numa noite quente de verão. Em nossas bicicletas, acompanha­das pela lua e pelas estrelas do deserto, deixamos que o vento nos le­vas­­se State Street abaixo, em direção ao centro, sem hora para voltar. Nun­ca mais me senti tão livremente feliz.

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