O diário de Noor, garota síria refugiada

por Bárbara Raffaeli

Noor é síria, tem 19 anos, e acaba de sair da Turquia rumo ao sonho de um país para chamar de seu

Terça-feira, 15 de setembro. Onze e meia da manhã em Istambul, a maior e mais pulsante cidade da Turquia. Noor Shakouj fecha a porta do pequeno prédio no centro da cidade e parte para uma viagem sem data para terminar. Nas costas da garota de 19 anos, uma pequena mochila com 10 quilos de roupa, um saco de dormir e uns poucos pacotes de biscoito. No bolso, o passaporte. O único par de calçados – um tênis surrado – vai nos pés. Mais uma vez, Noor deixa a vida para trás: roupas, documentos, amigos e o computador com todas as fotos da família. "Não sei o que pode acontecer nos próximos dias", pondera. "Posso ter que andar muito, posso ter que correr, talvez tenha que fugir. Quanto mais leve eu estiver, melhor." Ao seu lado, seguem Diala e Mulham. Os três são refugiados sírios. Estão prestes a começar uma jornada entre Istambul e algum porto seguro na Europa. A Alemanha é o gol.

A viagem começará de ônibus até Edirne, ainda em solo turco. Ali é o ponto de encontro para 5 mil refugiados da guerra que desde 2011 vem destruindo a Síria. De lá, todos vão caminhar juntos até a fronteira com a Grécia – onde, há quatro dias, mais de 700 pessoas foram barradas. A ideia é que com tanta gente junta, e o mundo sensibilizado pela atual situação dos refugiados, o país não recuse a travessia. "Esse é o melhor momento, não vão nos dizer não. Nossa ideia não é ficar na Grécia, queremos apenas cruzar o país", conta Noor. Uma vez no país europeu, o grupo deve se dispersar rumo a diferentes pontos no Velho Continente. Noor quer ir para a Sérvia, atravessar para a Áustria, entrar na Hungria e então chegar, finalmente a seu destino: Alemanha. "O mundo está falando só de fronteiras. Mas na verdade, precisamos falar de humanidade", diz Noor com a fé de uma jovem em busca de pátria. 

A situação dos refugiados virou papo de boteco e fez os líderes europeus levantarem da cadeira após a chocante foto do garoto sírio Aylan, morto nas areias de Bodrum, praia no sul da Turquia, tomar as redes sociais. A criança morreu após uma tentativa mal sucedida de sair do seu país com a família. Essa situação, no entanto, não é nova na vida de Noor. "Fico triste em dizer isso, mas aquela foto é apenas mais uma imagem pra mim."

Sua vida começou a mudar em Damasco em 2012. Ela estava na sala de aula, quando três bombas foram lançadas no pátio do colégio. "A gente estava na classe, ouvimos o barulho e os vidros das janelas quebraram", lembra. "Três crianças de 9 anos que brincavam do lado de fora morreram. Meus amigos se machucaram, tinham cortes no rosto e nos braços.", lembra. 

Foi nessa época que Noor começou a enfrentar a artida dos irmãos. Um deles foi como imigrante ilegal para a Holanda. O outro desapareceu depois de tentar uma fuga do serviço militar obrigatório – não conseguia mais conviver com a violência do governo de Bashar Al-Assad, com o qual não concordava. "Ele tentou sair do serviço militar para lutar pelas ideias que acreditava serem corretas. Depois disso, desapareceu", lembra. "Tenho esperança de que ele ainda esteja vivo, mas não o vi mais". Temendo represálias contra a família, o pai a mandou junto com a mãe para a Turquia, na intenção de protegê-las de qualquer vingança. 

A fuga, porém, não durou muito. Estavam há um mês no país quando descobriram que seu pai estava com um câncer em estado bastante avançado. Foi o tempo de voltar para casa e se despedir. Poucos dias depois, ele faleceu. Aos 18 anos, assustada e perdida, Noor voltou para a Turquia e resolveu se estabelecer em Istambul. Na época, quase um ano atrás, tinha planos de estudar, começar uma faculdade e ter a famosa vida normal. Com dois idiomas na ponta da língua, o árabe e o inglês, que aprendeu sozinha com músicas e filmes, conseguiu trabalho em apenas uma semana. Alugou um apartamento com Diala, a amiga que hoje foge com ela e que conheceu no curso para finalizar os estudos básicos interrompidos na primeira saída da Síria. "Aqui em Istambul, era tudo muito simples. Vivia longe demais do centro da cidade, mas tínhamos uma casa e eu estava estudando." De guia de turismo a controladora de qualidade em uma confecção, foram quatro empregos. Perdeu um deles quando precisou visitar a mãe que ficou em Damasco. "Via as notícias e ficava preocupada com ela. Fui para ficar duas semanas, mas na volta o preço da passagem de avião subiu demais e tive que vir de barco". Foram três dias de viagem. De Damasco pegou um ônibus para o Líbano e de lá zarpou de ferry para a capital turca. "Quando voltei ao trabalho, me dispensaram."

Foi nesse momento que surgiu a primeira chance de ir para a Europa. Para chegar à Alemanha, toda viagem arranjada ilegalmente custaria 4 mil euros. Sem grana, não pode ir. Por muitas vezes, precisou escolher entre pagar o aluguel e comer. Começou a trabalhar de novo, arrumou um namorado – o primeiro relacionamento de sua vida. Estava apaixonada a ponto de fazer planos. 

Foi então que o drama de milhares de refugiados começou a estampar as capa de jornal no mundo inteiro. As correntes migratórias começaram a ficar mais fortes e também mais baratas. "Agora eu posso chegar à Grécia sem pagar nada porque é muita gente fazendo a mesma coisa", diz entusiasmada. A decisão de partir foi tomada às pressas, quando soube que Mulham, um amigo de longa data, estava à frente da organização do enorme grupo que partiria em poucos dias. Era noite de quinta-feira, dia 11, quando ligou para a mãe contando a sua intenção. Com o apoio inclusive financeiro da família, resolveu encarar a travessia. 

Desde então, tem tido dias de aflição, ansiedade e medo. Levantou o dinheiro em três dias. "Minha irmã vendeu todo o ouro e as joias que tinha para me ajudar", conta. Isso lhe rendeu mil dólares. O valor foi suficiente para comprar roupas de frio "porque o inverno está começando e talvez precise ficar acampada" e itens de necessidade para o começo da viagem – é impossível prever quando chegará à Sérvia ou à Hungria. "Se tudo der certo, serão duas semanas", calcula. "Mas isso pode demorar muito mais." O dinheiro chegou até ela de forma ilegal para que não precisasse pagar ao menos 300 dólares em taxas.

Noor passou as duas últimas noites sem dormir, estudando os caminhos, se atualizando da situação das fronteiras, se despedindo, novamente, de uma vida que começara a construir. "Hoje por dois segundos eu pensei em tudo que vou deixar mais uma vez", disse às vésperas da partida. "Encontrei meu namorado e foi horrível. Não sei se vou vê-lo novamente, se vamos ficar juntos e nem se vamos nos comunicar. A gente não falou nada, tomamos umas cervejas e ficamos três horas juntos em silêncio. Chorei demais", desabafa.

A essa hora, Noor está na estrada, a caminho da Grécia. O que vai acontecer a partir de agora é obscuro, desconhecido por ela e por nós. Talvez ela esteja presa amanhã. Poderá, sem meias palavras, estar morta. Mas há de chegar sã e salva em algum pedaço de terra onde possa recomeçar, estudar e finalmente viver em paz. Se o que podemos fazer é lançar luz sobre os problemas, cá estamos, a partir de agora, na estrada com Noor, uma garota síria refugiada.

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