Miranda July quer ser normal

por Natacha Cortêz
Tpm #158

Ela segue sendo o que sempre foi: artista inadequada aos olhos mais tradicionais. Mas hoje se assume, antes de tudo, como uma mãe em busca de um projeto que não a afaste do filho

Escritora, cineasta, atriz e uma das artistas mais provocadoras da atualidade, Miranda July segue sendo o que sempre foi: estranha e inadequada. Mas hoje se assume, antes de tudo, como uma mãe em busca de um projeto que não a afaste demais do filho. Aqui, ela fala da importância de ter feito um aborto aos 26, de como a maternidade mudou seu trabalho e da dificuldade que tem em se desconectar.

Durante conversa de mais de uma hora e meia com Tpm por Skype Miranda July não parou, não sentou, não acomodou o corpo nem por um minuto. Falamos do seu primeiro romance e mais recente trabalho, O primeiro homem mau. Obra considerada ora bizarra, ora genial, pela crítica em que narra o drama de uma mulher excêntica e obsessiva com absolutamente tudo. Falamos também de cinema, maternidade, casamento, monogamia e machismo. Seus olhos de um azul profundo fitaram a câmera sem dar descanso. Nenhuma pergunta causou sorrisos, nenhuma causou desânimo. Desinteresse? Não, apenas Miranda sendo Miranda.

São pontualmente 10 horas da manhã em Los Angeles - 2 da tarde em São Paulo - quando ela nos atende. Miranda usa o próprio celular como câmera e avisa “aqui o sinal da internet não é dos melhores, não estranhe se eu precisar rodopiar pela casa”. A caminhada que faz em busca do melhor sinal revela a sala ampla, pouco mobiliada, de janelas enormes e sem cortinas. O cenário atrás dela tem cores brancas e um aparador imenso de madeira escura. Sobre ele, apenas um vaso de meio metro de altura cheio de folhas roxas de um palmo de extensão cada. “Tenho me preocupado mais com o jardim”, justifica, enquanto vira a lente para as janelas que dão vista para um verde vasto .“E casa com criança precisa ser um campo aberto”, completa. Ela se refere à Hopper, seu primeiro filho, de 3 anos. O menino é fruto do casamento com o cineasta americano Mike Mills (diretor de "Toda Forma de Amor", 2010) com quem está há dez anos. 

Miranda Jennifer July, 41 anos, é natural de Barre, cidade de pouco mais de 7 mil habitantes na costa leste dos Estados Unidos. Filha de escritores, mudou-se para a Califórnia ainda criança. Ali, começou a escrever suas primeiras peças para o teatro da escola. Nunca mais parou. Suas primeiras obras datam de 1995, e de lá pra cá criou dezenas de instalações artísticas, dirigiu quatro curtas e dois longas: Eu, você e todos nós, de 2006, que levou quatro prêmios no Festival de Cannes, e The Future, de 2011, indicado para o Urso de Ouro, maior prêmio do Festival de Berlim. Foi protagonista em ambos. Em 20 anos de carreira, só por sua produção no cinema, são 24 prêmios e 14 indicações em festivais no mundo todo. Ela também lançou projetos na internet (como o aplicativo Somebody) e escreveu dois livros, um deles em tom documental, onde entrevistou autores de anúncios da seção de classificados de um jornal local.

Artista plástica, performer, cineasta, roteirista, atriz, escritora. Miranda é uma questionadora de seu tempo. Percorre plataformas e as usa para repensar seus próprios comportamentos. "Quase sem querer", ela diz, também nos perturba. “Gosto de ter desculpas para fazer performances para estranhos.”

Tpm. Pra você, a tecnologia ajuda ou atrapalha nas relações de amor e sexo?

Miranda July. Toda essa tecnologia voltada para relacionamento veio depois que eu já estava casada. Mas se eu estivesse em busca de alguém acho que ela teria, sim, um papel importante na minha vida. É bom as pessoas terem uma ajuda para encontrar outras, facilita. Mas tenho ressalvas. Tenho amigos que têm relacionamentos que só acontecem por mensagens, sem nem telefonemas. Isso é perturbador. Jamais conseguiria levar uma relação que fica só no virtual. Se a pessoa se esquece dos contatos de pele, a coisa fica deturpada.

O seu aplicativo Somebody critica a frivolidade dos relacionamentos na internet e nos celulares. Sim. Quando o criei, pensei em como é difícil parar de olhar para o celular. Pra mim é algo viciante. Então pensei: “E se o telefone pudesse ser como um portal que te ajuda a sair dele?”. O app funciona dessa forma: é parecido com o Whatsapp, só que chega sempre para alguém que está geograficamente próximo a você e essa pessoa passa a mensagem ao vivo. Ou seja, Somebody te faz olhar ao redor e ver o rosto das pessoas.

Como é essa sua relação com a internet? É fácil ter uma relação passiva com a internet, né? Não há dúvidas de que ela ajuda muito no trabalho, mas quem estamos enganando? O meu problema é que fico matando tempo nos intervalos do dia porque estou entediada ou triste. Ou seja, evito o tédio e a tristeza. Deveria? Não. É nesses espaços de tempo que as ideias vêm. Hoje, tento construir esse espaço vazio no qual, antigamente, eu costumava ficar sem fazer nada. Mas, para você ter uma ideia, atualmente uso aplicativos como o Headspace para meditar nesses momentos... não sei o quanto isso é bom. É definitivamente uma época estranha. Não gostaria de viver no passado ou nada do tipo. Só quero prestar atenção em nossos comportamentos.

“Tento construir o espaço vazio no qual, antigamente, eu costumava ficar sem fazer nada” 

Você é artista, diretora, escritora, mãe, esposa. Tem tempo para ficar sem fazer nada? Tenho mais tempo livre do que você imagina. Tenho muitos dias em que posso fazer várias coisas mas não tenho que, necessariamente, fazer nada. Isso é muito desconfortável para mim. Odeio. Tenho projetos paralelos mas não tenho meu próximo grande trabalho, que provavelmente vai ser um filme. Estou tentando deixar isso surgir do vazio em vez de ser dominada pelo sentimento de que tenho que fazer algo. Mas, confesso, essa é a parte mais difícil.

E ter um filho influencia na decisão do que você vai fazer? Às vezes acho que fazer filmes ou performances é mais difícil com um filho. Agora estou exatamente neste momento, tentando decidir ao que eu realmente quero me submeter e submeter a minha família.

Então ser mãe e esposa é crucial? Mais ou menos. É complicado, porque, por exemplo, agora meu marido está filmando e eu não acho que ele esteja pensando nisso. Se seria o melhor momento pra filmar. Esse é definitivamente um lugar onde moram as controvérsias femininas. Ninguém pergunta a ele: “Onde está seu filho enquanto você filma?”. Mas ao mesmo tempo estou tentando pensar que não preciso fazer um filme só para provar que como mulher e mãe eu consigo fazer. Entende? Ainda está confuso pra mim.

Em algum momento na sua carreira você se sentiu menosprezada por ser mulher? Sim. Se um homem tivesse seguido exatamente a mesma carreira que sigo, com 41 anos, ele seria levado muito mais a sério. Existe uma certa frivolidade, como se tudo que eu fiz tivesse acontecido por acidente, como se eu fosse uma criança sonhando. Isso se curva à forma como a sociedade aborda meu trabalho e o de outras mulheres de forma geral. Se uma mulher é original ela é taxada de louca. É difícil surgir uma crítica que diga que o que eu faço é sólido e admirável. Não estou reclamando, ainda prefiro ser mulher, mas essas péssimas sutilezas estão em todos os lugares.

E ter um filho mudou alguma coisa nesse sentido?
Tive Hopper enquanto escrevia o livro “O primeiro homem mau” e o texto ficou melhor depois que ele nasceu. Acho que minhas metas ficaram mais altas. Senti muito mais as feridas da vida; a morte me pareceu mais próxima, senti a potência de estar viva. Quando você é uma adolescente, faz tudo com mais intensidade, mas não tem as habilidades, as experiências de verdade. Eu, pelo menos, não tinha. Senti essa intensidade adolescente novamente, mas agora eu tenho as vivências. Mas no geral, filho é o tipo de romance em que você sempre quer mais. Ainda bem que eu pude ser mãe, ou eu não entenderia a maternidade, nem o poder dela em mim mesma.

Você quer ter mais filhos? Não. Eu não teria esperado tanto se quisesse ter mais filhos. Meu sentimento hoje, com apenas um, é que posso fazer todas as coisas que faço e ainda ser uma mãe presente. Mas talvez eu não seja capaz de fazer isso com muitos filhos ou até mesmo dois. Eu tenho que abrir mão de alguma coisa se eu quiser ser uma mãe mesmo, sem ter babás criando as crianças.

Você costuma dizer que é feminista em voz alta. É necessário? Dentre minhas amigas seria vergonhoso não gritar que sou feminista aos quatro ventos. Seria como se eu me odiasse, odiasse mulheres, quisesse o mundo de sempre ou algo assim. Pode colocar aí em letras grandes, sou feminista.

Seus filmes são mais independentes, mas gostaria de falar sobre o discurso da Patricia Arquette no Oscar, sobre Hollywood não ter igualdade de salários entre homens e mulheres. Hollywood está muito atrasada e até um pouco morta. Pagamento igualitário é o mínimo que esperamos de qualquer empresa ou setor. A atitude de Patricia é realmente louvável. Para mudarmos o cenário, as pessoas que têm o poder devem se sentir, inevitavelmente, envergonhadas. Talvez eles não queiram contratar fotógrafas, diretoras, eletricistas, mas eles têm que, porque senão a comunidade vai criticá-los. Eu estava conversando com uma jornalista que trabalha para um jornal grande e ela disse: “Claro que é sexismo. Ninguém quer contratar mulheres, mas eles têm que contratar porque senão serão acusados de serem sexistas”. 

Qual é a coisa mais surpreendente que você aprendeu com o seu casamento? Mike e eu estamos casados há quatro anos e juntos há dez. E, sinceramente, tudo é surpreendente. Nós dois tínhamos baixas expectativas sobre o casamento. Então é como se fosse um presente diário: “Oh, isso está funcionando”. Um aprendizado foi perceber que numa discussão, mesmo que você discorde, o simples ato de escutar é poderoso, ele cria intimidade. Quando eu era mais nova, achava importante fazer as coisas do meu jeito e as pessoas que tratassem de entender. Isso mudou drasticamente em mim.

“Nunca tive vontade de transar com muitas pessoas. Prefiro o flerte”

Vocês são monogâmicos? Somos. Meu marido é oito anos mais velho que eu. Quando nos conhecemos ele estava mais sossegado. Pronto para começar uma família. Já eu, ainda estava empolgada, nem imaginava que teria um filho ou um casamento duradouro. Então, se você tivesse me perguntado isso naquele tempo, eu diria: “Nossa, monogamia? Isso parece tão antigo. Eu sou uma artista, quero ter muitos amantes”.

E agora seu pensamento mudou. Isso. E, pensando bem, não sei quem tem conseguido levar uma vida boê-mia assim com sucesso, cheia de prazer. Talvez Tilda Swinton [risos]. Na verdade, nunca tive vontade de transar com muitas pessoas. Prefiro o flerte.

Gostaria de saber de Cheryl, a protagonista do livro O primeiro homem mau. Você tem algo em comum com ela? Conscientemente criei uma personagem que eu não conseguiria interpretar em um filme [Miranda atuou em seus dois longas].Mas consegui colocar várias coisinhas minhas nela. Muitas das coisas neuróticas de cuidar da casa são minhas. Sei que meu marido leu essa parte e disse “Oh, isso é o que você faz”. Mas Cheryl não é astuta, não é esperta como eu.

Nos EUA o aborto é legalizado desde 1973, mas aqui no Brasil não é permitido. O que você acha de leis proibitivas de aborto? Olha, se eu não tivesse conseguido abortar quando eu tinha 26 anos, teria uma vida muito diferente. Eu não queria um filho naquela época, não queria um filho com aquele homem com quem estava. Nenhuma mulher quer fazer um aborto, é algo terrível e que te assombra pro resto da vida. Mas não ter o direito de escolher a vida que quero é inimaginável para mim. Tem 1 milhão de razões pelas quais uma mulher engravida. Em nenhuma delas ela deveria ser culpada. 

 

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