Não briguei no trânsito nem me estapeei com ninguém numa fila. Foi um reles brigadeiro de maconha que me tirou do meu próprio corpo
Minha mãe me convidou para jantar na casa dela, mas me arrependi logo depois de aceitar porque lembrei da tatuagem nova no braço e de como há dias evitava que ela visse os rabiscos. Aquela era uma noite de calor surpreendente para março, então o recurso de usar manga comprida estava descartado, mas por sorte achei no armário uma blusinha leve e de manga três quartos que deveria dar conta de esconder o desenho.
Minha mãe, 79 anos, superou quase tudo a meu respeito: a lesbiandade, o corintianismo, o carequismo e o marxismo, mas ainda não lida bem com as tatuagens e como essa era a maior delas achei prudente seguir omitindo. A ideia era omitir para sempre, contando com a sorte de num futuro próximo a visão dela ficar um pouco prejudicada, ainda que nada dê sinais de que isso vá acontecer.
Estávamos na cozinha preparando o macarrão e tomando umas taças de vinho quando ela me pediu para pegar o azeite e, ao tentar alcançá-lo, a manga da blusa subiu e expôs os riscos novos no braço.
“O que é isso no seu braço?”, ela perguntou com um timbre de voz que me remeteu à infância e me fez tremer. Diante do inevitável fiz a única coisa que uma mulher madura e de mais de 40 anos poderia fazer diante da opressão materna.
“O Antonio comeu cogumelo, sabia?”
Aqui é preciso fazer uma pausa.
Antonio é o sobrinho de 20 anos que, numa balada de música eletrônica em Barcelona, provou cogumelo e me contou a experiência em detalhes – e em confidência. Não me orgulho do que fiz, nem mesmo tendo que revelar que não fosse o desvio moral essa teria sido uma estratégia perfeita porque minha mãe mordeu a isca e quis saber tudo sobre o tal do cogumelo.
Tenho com Antonio uma das relações mais maduras e honestas que já consegui estabelecer na vida. Nos falamos todos os dias, conversamos sobre a dureza da vida, que envolve as dores do coração, bolamos mil estratégias para parar de sofrer por mulheres que parecem não nos querer, escuto e ofereço conselhos amorosos, rimos muito e bebemos algumas cervejas juntos.
Numa sexta-feira à tarde, pouco depois de eu entregá-lo de forma covarde para a matriarca, Antonio foi me buscar para darmos uma passada na livraria, comer um açaí e fazer uma visita a minha mãe. Lembrei que uma amiga tinha deixado em casa um brigadeiro de maconha porque eu nunca tinha experimentado um e ela estava curiosa para saber o que eu acharia, e quando Antonio ligou para dizer que tinha chegado para me buscar desci com o brigadeiro imaginando que poderíamos dividi-lo. Ele recusou o brigadeiro e riu quando viu que eu ia comer assim mesmo. Que mal poderia fazer, pensei? Era apenas um brigadeiro que, eu saberia depois, continha o dobro da quantidade de maconha prevista na receita.
Lembro de tudo a respeito da parada na livraria, lembro dos livros que compramos e de quanto tempo passamos lá, mas a partir daí nada mais está registrado em minha memória. Tenho uns flashes de Antonio me pedindo para ler alguma coisa em seu celular enquanto íamos para o lugar do açaí, e de como ler me parecia uma tarefa impossível. Fiquei algum tempo olhando a tela, as letras, mas elas não faziam sentido. “Quem passa uma tarde dirigindo a tia loucona pela cidade?”, ele quis saber, e eu não consegui nem rir nem responder. Falar era agora um esforço enorme.
Chegamos ao lugar do açaí e Paola ligou para dizer que ia dar um pulo por lá. Não lembro de vê-la chegando nem de quanto tempo ela ficou com a gente na mesa. Paola é minha amiga há muitos anos e sabe que eu não fumo maconha, então estava achando aquela minha persona uma coisa muito estranha e interessante. Devo ter tentado participar da conversa entre eles porque lembro quando Paola me disse: “Chega! Para de tentar falar, pelo amor de Deus. Fica aí olhando a parede e não tenta mais falar nada!”. Todos riram e eu voltei ao meu estado catatônico.
Faltava ainda a ida à casa da nonna, e Antonio decidiu que iríamos, mas que eu ficaria dentro do carro porque não havia a menor condição de minha mãe me ver daquele jeito. Esse é o tanto de elegância que existe nele, porque tratava-se da grande chance da vingança, de exibir minha alucinação à matriarca e ficar quite comigo, e ele escolheu não se vingar. Fiquei sozinha trancada no carro, sabendo que se alguém batesse no vidro e tentasse falar alguma coisa eu não teria condição de responder nada. Tive a impressão de que Antonio passou três dias com minha mãe, mas ele diz que ficou o tempo de tomar um cafezinho com ela.
Eram 7 horas quando ele me deixou em casa, subindo para ter certeza de que eu estava bem e me pedindo para beber muita água. Lembro que ele ria da situação e que naquela noite ficou me mandando mensagens para saber se eu estava bem. No dia seguinte perguntei a ele o que tinha acontecido e ele respondeu: “O mais engraçado é que não aconteceu nada”.
Perder o controle é se livrar da atuação da mente, essa que existe com o único propósito de complicar a realidade e que só funciona na dualidade. Mas o espírito, nossa melhor versão, não precisa da dualidade porque ele se faz gigante na unidade. E se a dualidade está na cabeça, a unidade está no coração. Se a opressão está na cabeça, a liberdade está no coração. Há, claro, muitas formas de perder o controle – ou a ilusão do controle, porque a verdade é que não temos controle sobre nada a não ser sobre uma coisa: nossa capacidade de amar. Perto de Antonio essa capacidade fica cristalinamente clara em mim. Perto dele eu me transformo em amor e entendo que não existe nada mais poderoso ou libertador; e que não precisamos de cogumelos ou de brigadeiros de maconha para cair na enorme aventura que é perder o controle. Para isso basta amar.
Créditos
Imagem principal: Estela Miazzi