Assim como Paulo Gustavo, Marília unia todos os polos desse Brasil, dos mais autoritários aos mais libertários
Quem pode falar em nome do universal? Talvez seja mais prudente começar refletindo sobre o tema dizendo quem não pode: os que há séculos controlam, dominam e reforçam opressões nesse mundo. Os que se auto-nomeiam “a maioria”. Os que perpetuam sistemas de poder que excluem, silenciam e matam. A partir disso a gente pode começar a pensar: então quem pode falar em nome do universal?
Vez ou outra aparece um artista ou uma artista que responde com sua obra – e de forma brilhante. Marília Mendonça era uma dessas vozes que falava com propriedade em nome do universal.
Falava de dores que são comuns a todos e todas nós: abandono, chifres, traições, sofrências mundanas e humanas. E falava também como mulher que se quer emancipada, sexual e moralmente. Cantava sobre comportamentos inundados de masculinidade tóxica, chamava a atenção para coisas como violência contra a mulher, abuso de álcool, responsabilidade emocional. Levava suas letras feministas para dentro de um dos meios mais machistas do Brasil – e se fazia escutar.
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Assim como Paulo Gustavo, Marília unia todos os polos desse Brasil, dos mais autoritários aos mais libertários. Se Paulo fazia isso pelo riso, Marília fazia pelo choro, pela dor e pelo sofrimento que nos é comum.
Aos 26 anos, era uma potência musical: cantava com vozeirão que vinha da alma, compunha com mãos de quem sabe seu lugar no mundo e sabe que a função do artista é a de resgatar a humanidade da forma como for possível fazer. Um artista deve trabalhar para que aquilo que parecia insuportável se torne suportável.
Marília brilhou num ambiente onde, antes dela, poucas mulheres brilharam com um discurso de emancipação, de liberdade e de força feminina. Marília foi potência realizadora. Meteu seu vozeirão para falar em nome do que nos une e humaniza. Fez conexões impossíveis. Causou frestas inimagináveis. Deixou um legado absurdamente inacreditável para uma mulher de 26 anos.
Falou pela mulher, pelo homem, pelo jogador de futebol, pela travesti, pela sapatão, pela trabalhadora, pelo trabalhador, pela estudante, pela prostituta, pelo entregador e pela entregadora. Falou pela balconista, pela mãe solo, pela enfermeira, pelo motorista de transporte público, pelos homens e mulheres que trabalham na limpeza das cidades, pelas bichas periféricas. Falou pelos desempregados, pelos sub-empregados, pelos precarizados. Quando uma só voz fala por tantos – e para tantos – ela aponta um caminho, oferece soluções, entrega revoluções. Vozes assim estão em falta, discursos com essa capacidade de cruzar tantas fronteiras são raros e fazem falta.
Marília estava apenas começando, mas o destino tinha outros planos para ela. Aceitar a vida em todo o seu horror e esplendor é tarefa para poucos. É exercício diário. É esforço dilacerante. Mas aqui estamos outra vez, tendo que lidar com o absurdo de uma morte inexplicável. Mais uma.
O texto deveria acabar por aqui, mas diante do que aconteceu depois de sua morte, com referências obituárias ao peso e à aparência de Marília, talvez eu deva me estender.
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Toda mulher passa por essa vida achando que está no peso errado e tem a aparência errada, como se houvesse o peso e a aparência corretos. Os esforços para se adequar a um padrão que não estabelecemos e que é inalcançável nos fere, dilacera e mata todos os dias. Quem está dentro desse tal padrão? Quem estabeleceu esse tal padrão? Em nome do quê? Em benefício de quem? Peso e aparência não estão para jogo quando o objetivo é avaliar a grandeza de uma existência. Peso e aparência não deveriam estar para jogo em nenhuma circunstância. Não importam na vida, não importam na morte.
Se peso e aparência são medidas que podem constar em obituários de mulheres, então terão que fazer parte do obituário de qualquer uma de nós, em todos os cantos desse país. Talvez devamos então colocar nos manuais de redação uma linha sobre obituários femininos: “viveu e morreu fora do padrão”.
Recorrer a esse recurso em nome de biografar uma vida que acabou de acabar é reforçar a perversidade desse sistema de opressão. É deixar a misoginia e o machismo falarem.
A morte de Marília Mendonça mobiliza tantos e diferentes afetos que se apequenar no interior desse recurso patriarcal é colaborar para a diminuição de tantas outras de nós que, todos os dias, internalizamos a voz desse opressor. É cruel, covarde, perverso.
O recado escondido entre as linhas é: se Marília estivesse dentro desse tal padrão, que em nenhum momento foi criticado, então ela teria chegado lá por causa disso? Dentro desse jogo patriarcal não nos é dada a chance de vencer – nem dentro, nem fora desse tal padrão.
Marília era cheia de conflitos como qualquer uma de nós é, como qualquer um de vocês é. Somos as histórias de nossas cicatrizes e Marília cantou sobre isso de forma inédita para uma mulher sertaneja. Foi pioneira e deixou um portal aberto para que outras passem e, uma roda de viola por vez, mudem esse cenário machista e misógino que nos organiza até na hora de nossas mortes.
Dois dias depois de escrever um obituário carregado de misoginia e de machismo, o autor do texto que tanta revolta gerou foi chamado para o podcast diário da Folha de S.Paulo, o Café da Manhã. O assunto da misoginia no obituário não foi abordado nem de raspão. Falou como especialista em música sertaneja (coisa que ele é) e falou como se nada tivesse escrito de intolerante, de tosco, de inaceitável. Não foi questionado sobre seu preconceito, não foi chamado à luz do que fez. Surfou outra vez a morte de Marília como um acadêmico. Deixou nosso grito do lado de fora, como se fosse histeria, chilique, “coisa de mulher”. A verdade é que é muito barato escrotizar mulher nesse mundo, que a perversão da misoginia é perfeitamente aceitável e até celebrada – e que nossa luta ainda é longa.
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Política, como ensina Vladimir Safatle, não é uma questão de diálogo, mas de circuito de afetos. Política é como uma sociedade organiza o campo do que nos é permitido ver, perceber, sentir. A forma como a gente vê, como a gente percebe e como a gente sente causa nossa ação e nosso julgamento. O poder se articula trabalhando na organização do campo das coisas visíveis, sensíveis e percebíveis. Por isso, quando Marília canta sobre relacionamentos abusivos ela está fazendo política. Quando o autor escolhe colocar num obituário algumas linhas sobre o peso e a aparência de uma mulher que acabou de morrer, tudo medido a partir de seu ponto de vista e, portanto, de seus próprios desejos e valores, ele também está fazendo política. A política de Marília é inclusiva; a do autor é excludente. A política de Marília é corajosa; a do autor é covarde.
Machismo e misoginia são estruturas de poder tão poderosas que elas podem perfeitamente se manifestar no interior do que poderia soar como elogio, como crítica razoável, como lucidez. Machismo e misoginia escorrem por todas as frestas, como um animal rastejante e gosmento. É preciso que estejamos atentas e fortes.
São tempos brutos, tempos sofridos, tempos sombrios. Que tenhamos força para atravessar esse deserto porque, como ensina Ailton Krenak, diante do deserto só há uma coisa a fazer: dar o primeiro passo rumo ao outro lado e, depois dele, mais um. Entre lágrimas, perdas, encontros, desencontros, reencontros.
Até que, um dia, nós também sairemos dessa festa maluca que é viver. Até lá, o truque é atravessar o deserto buscando pelas mãos de uma artista que possa, gentil e humanamente, nos guiar pelo caminho a fim de tornar suportável o que, até ali, parecia insuportável. Marília fez isso – e um obituário decente e honesto deveria tratar apenas desse feito, que já é, em si mesmo, enorme e divino.
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