Maconha que cura

por Redação
Tpm #142

Katiele Fischer conta como a maconha ajudou a combater as convulsões de sua filha de 6 anos

“CBD. Descobri o que é isso por meio de um site de apoio a pais de crianças com CDKL5, a síndrome da minha filha Anny, 6 anos. Até então, nunca tinha ouvido falar. Como o site era todo em inglês, de cara não entendi direito. Foi só depois de conversar com uma mãe do Rio de Janeiro e com um pai americano que descobri que se tratava da Cannabis sativa. Pensei: ‘será possível uma coisa dita tão ruim ser boa?’.

A gravidez da Anny foi supernormal. Até ela nascer, não sabíamos que ela tinha a síndrome. Quarenta e cinco dias depois do nascimento, uma primeira convulsão nos fez perceber que havia algo estranho. A primeira crise foi um negócio surreal. Ficamos muito abalados, e aí começou a correria.

Depois de muito sofrimento descobri esse site, em que um pai atualizava, a cada semana, os números de crises epilépticas de sua filha. A surpresa: as crises iam diminuindo após o uso do CBD. Conversamos aqui em casa e achamos que valia a pena tentar o mesmo caminho. Conseguimos trazer de forma clandestina, numa época em que a Anny sofria cerca de 60 a 80 crises semanais.

A novidade nos deu muita esperança, porque nada mais funcionava. Já tínhamos tentado todos os remédios possíveis pra convulsão. Na primeira semana, já notamos um número menor de crises. As semanas foram passando e o números foi caindo, até que zerou: com nove semanas de uso do CBD, não havia mais crises, e assim foi, até acabar a medicação.

Existem vários medicamentos à base de Cannabis sativa. O CBD que compramos vem em pasta, numa seringa. Cada seringa com 3 gramas de pasta custa US$ 100. Pra Anny isso dura um mês. A dose é muito pequena, um grão de arroz, duas vezes ao dia. Com as taxas de correio e tudo, não podemos dizer que é barato, mas tem medicamentos liberados no Brasil muito mais caros. Por exemplo, o Keppra, que custa R$ 800.

Na segunda vez em que tentamos trazer o medicamento, a Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] pegou. Sem CBD, as crises voltaram. Foi nessa época que nossa história foi filmada [para o documentário Ilegal]. E foi só conseguir trazer CBD de novo (clandestinamente) que ela voltou a ter uma resposta positiva. As coisas não acontecem por acaso: o período sem a medicação serviu para nos confirmar que ela realmente funciona. Em abril, ela teve apenas três crises e de uma intensidade muito menor que as de costume. É um alívio tão grande, é tão incrível, que a gente quase não acredita.

Já tivemos medo de tantas coisas, inclusive cirurgias pelas quais ela passou, que ficamos calejados. Nós ficamos surpresos, sim, ao saber que a possível salvação era derivada da Cannabis sativa, mas preconceito é uma coisa muito feia: não dá pra julgar uma coisa sem ter conhecimento sobre o assunto. Tivemos um choque a princípio, mas foi rapidamente esclarecido com um pouquinho de pesquisa. Quando a pessoa se propõe a esclarecer o assunto, o preconceito some.

No começo de abril, conseguimos uma ordem judicial favorável dizendo que a Anvisa não pode mais reter o CBD da Anny. Só que isso não depende só da Anvisa. Pra que o medicamento entre no Brasil, ainda estamos trilhando um caminho que inclui licença de importação, pedido médico, uma série de documentações. O cenário é um pouco melhor agora, a liminar ajudou. Mas ainda não tivemos o sucesso total, há um caminho a trilhar. Eu espero que esse caminho sirva de exemplo para outras pessoas.

Além da qualidade de vida da Anny, nosso grande ganho foi abrir as portas pra esse debate sobre a Cannabis medicinal. É sobre ela que estamos falando agora. O canabidiol (CBD) não trata a doença da Anny, porque a CDKL5 não tem cura, é muito cruel. Mas o medicamento trata uma das consequências da síndrome, que é a epilepsia refratária. Um porcento da população tem epilepsia, mas a refratária não tem tratamento com medicação. O CBD é uma alternativa e pode funcionar (e pode não funcionar, como qualquer outro anticonvulsivo). O que ele trouxe pra Anny foi qualidade de vida. É indiscutível. Hoje fica acordada, sabe reclamar – e reclama muito –, chora. Outro dia ela fez uma coisa que não fazia havia muito tempo: sorriu. Um sorriso bem gostoso.”

Katiele Fischer, 33 anos, paisagista, hoje é mãe em tempo integral. Mora em Brasília com o marido, Noberto Fischer, 45, e as filhas

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