por Camila Alam
Tpm #139

Aos 20 anos, a skatista paulista vive a melhor fase no esporte que começou aos 9

Aos 20 anos, a skatista paulita vive a melhor fase no esporte que começou aos 9. Três vezes medalha de ouro no x Games e primeiro lugar no ranking mundial feminino, ela reconhece: "acho que sou boa nisso"

Quando tinha 9 anos, Leticia Bufoni começou a andar de skate na Vila Matilde, bairro da zona leste de São Paulo, onde foi criada. Junto com meia dúzia de meninos, montava obstáculos, improvisava umas rampas e uns corrimões e passava o dia inteiro na rua com eles – a ponto de ser chamada pelos vizinhos de Maria João. Hoje, aos 20 anos, quando volta ao bairro ela mal fala com a vizinhança. “Antigamente me xingavam, hoje ficam compartilhando coisas no Facebook. Nem dou bola”, diz a atual primeira colocada no ranking mundial da World Cup Skateboarding (WCS, principal competição do esporte) e dona de três medalhas de ouro no X Games, as olimpíadas dos esportes radicais.

Leticia mora em Los Angeles desde os 13 anos, quando uma olheira de uma fundação americana a viu correndo nos poucos campeonatos femininos que havia por aqui e resolveu levá-la pros Estados Unidos. De férias no Brasil até janeiro, ela encontrou a equipe da Tpm para dar um rolê na praça Roosevelt, tradicional ponto de encontro de skatistas no centro de São Paulo. Vestindo calça jeans preta, camiseta de patrocinador e tênis licenciado que leva o seu nome, ela é pequena e magrinha. Tem ar adolescente e fala calma, que contrasta com a energia e o impacto de suas manobras. “Meu skate é agressivo, não técnico. Desde pequena, toda escada que via na rua tentava descer. É meu estilo”.

O estilo que a consagrou dentro e fora do país hoje é patrocinado por nove grandes marcas, que a apoiam para rodar o mundo correndo diferentes campeonatos. Mas, para chegar ao primeiro lugar do pódio mundial, Leticia teve primeiro de convencer o próprio pai, Jaime, que achava que andar de skate era “coisa de maloqueiro” - já a mãe, Claudete, nunca se importou. Ele chegou a quebrar um dos primeiros shapes dela, depois de um castigo, mas depois entendeu que seria impossível impedir. “Já falei pra ela parar de falar essas coisas, porque eu só fui contra bem no início”, assume o pai coruja. “Depois a acompanhei no primeiro campeonato, autorizei ela a treinar. Sempre incentivei a se esforçar pra fazer bem-feito. Virou um sonho nosso, meu e dela.”

Leticia venceu o primeiro campeonato estadual aos 10 anos. “Foi muito natural, fui evoluindo sem perceber. Como andava com meninos muito melhores que eu, eles ajudaram a puxar meu nível. Quando percebi já estava ganhando tudo. Apareci do nada”, lembra. Daí para a ida aos Estados Unidos, onde o esporte é popular e valorizado, foi um pulo. Era pra ser uma viagem rápida, para correr um campeonato e voltar, mas já começaram a surgir patrocínios. E também alguns problemas. Uma denúncia anônima fez com que uma assistente social batesse à porta da sua casa no Brasil. “Falaram que eu tinha mandado minha filha menor para trabalhar”, conta Jaime. “Consegui juntar provas, documentos, revistas e e-mails que provavam toda a situação legal.” Desde então, Leticia continuou nos Estados Unidos com todos os contratos, garantias e exigências da família em dia. “A chance que ela tinha era única”, reconhece o pai.

 

"Se eu chegar maquiada num campeonato, todo mundo vai tirar barato da minha cara"

 

Em seu primeiro ano por lá, Leticia morava com outras meninas do skate e não falava nada de inglês, mas conquistou a oitava colocação no X Games. Depois de consecutivos segundos e terceiros lugares no pódio, conquistou em 2013 o grande feito: das cinco etapas do X Games 2013, venceu três (Los Angeles, Real Woman e Foz do Iguaçu). Esta última disputa teve um gosto ainda mais especial, já que apenas 30 dias antes da prova ela havia operado o tornozelo. “Voltei a andar três dias antes, ainda meio insegura, com medo.” Venceu a americana Lacey Baker na última manobra. “Me senti abençoada, 2013 foi o melhor dos anos até agora.” Depois do feito, passou a ser mais assediada na rua, mesmo longe das pistas de skate. “Já aconteceu de estar no restaurante e alguém vir falar algo. É bem estranho, porque você não tá esperando. Mas também é normal, não me sinto incomodada. Também tento dar o máximo de atenção, responder todas as mensagens, mas odeio ficar no computador.”

Cabelo e make

Apesar do estilo largado - que, claro, às vezes é friamente calculado -, Leticia não deixa a vaidade de lado. “Se eu chegar toda maquiada num campeonato, todo mundo vai tirar barato da minha cara”, ressalta. Mas, fora das competições, não dispensa cabelo bem arrumado e maquiagem. Até comprou um daqueles modeladores de cachos supermodernos, desses que sugam as mechas e soltam ondas perfeitas. Na primeira vez que usou, enroscou o cabelo duas vezes: “Demorei 20 minutos pra conseguir soltar, mas dá certo, sim. Sai perfeito”. A vaidade já gerou comentários, principalmente entre as outras skatistas. “Depois de fazer campanhas publicitárias e TV, elas começaram a me zoar. Perdi a amizade de algumas, que tinham raiva de mim e eu não entendia por quê. Estou fazendo meu trabalho, cada um faz o seu”, manda, com a segurança de campeã do mundo, sob o olhar atento do namorado, o também skatista Braulio Sagas, 22 anos, sétimo lugar no ranking mundial.

Os dois se conheceram em Roma, em umas das etapas do campeonato mundial. Juntos há dois anos e sete meses (eles se entreolham pra confirmar a data exata), moram juntos em New Port Beach, perto de Los Angeles. Chileno, Braulio tem a agenda de viagens tão apertada quanto a de Leticia, mas aproveita todo o tempo livre pra estar com ela. “Nosso relacionamento é bem diferente. Ela é uma amiga com quem eu posso andar de skate, surfar, andar de moto, mas é também uma namorada. Fazemos muita coisa juntos”, diz, enquanto observa a sessão de fotos que estampam estas páginas – e faz uns cliques pelo celular, devidamente postados no perfil oficial da moça no Facebook. “O que mais gosto da Leticia é que ela acredita que tudo vai dar certo, basta ter fé.”

A fé de Leticia vem de família, assim como o gosto por hábitos saudáveis. Assim como os pais, ela não bebe, não fuma e tenta ter uma alimentação balanceada. Com ajuda da internet, até cozinha alguns pratos brasileiros, pra matar a saudade de vez em quando. “Pena que nos Estados Unidos não tem todas as carnes pra fazer feijoada”, lamenta. “O skate não é um esporte que pede uma alimentação correta, um treino completo. A gente nem fala ‘treino’, fala que ‘vai andar’. Mas acho que a alimentação influencia, e tento manter um treinamento constante de fortalecimento das pernas. Se eu continuar nesse ritmo, tenho ainda mais uns 15 anos para andar.”

 

"Se alguém fizer melhor que eu, é merecido [vencer um campeonato]. Meu foco é sempre ser melhor que eu mesma"

 

A lutadora de MMA Ronda Rousey, a surfista Maya Gabeira (“tem mais bolas que muitos homens”) e a jogadora de futebol Marta estão entre as esportistas que Leticia admira. “Não é fácil ser mulher e ter reconhecimento no esporte. Por isso gosto de mostrar às meninas que é possível realizar o sonho, acreditar e correr atrás.” Antes de seguir no skate, Leticia queria ser jogadora de futebol. “Mas, pra treinar todo dia, teria que parar de andar.”

Este ano, o X Games se reduzirá a uma etapa. A ideia de Leticia é entrar nas competições masculinas. “Isso faz eu querer dar o melhor. Campeonato é um treinamento, ainda mais quando você não ganha.” Ela diz que não é competitiva, apesar de se dar tão bem nos campeonatos. “Consigo montar tática, ver a linha dos outros, montar a minha própria linha, pensar nas manobras. Então acho que sou boa nisso.” Para Leticia, a questão primordial não é “tenho que ganhar”, mas “tenho que acertar minhas manobras”. Superar o próprio desempenho. “Se alguém fizer melhor que eu, é merecido. Meu foco é sempre ser melhor do que eu mesma.”

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