por Camila Alam
Tpm #137

O ator já foi baterista, ativista feminista, dono de boate, traficante – e também já foi Lourdes

Leo já foi baterista de banda punk, ativista feminista, dono de boate, traficante e presidiário – e também já foi Lourdes, uma mulher casada por dez anos com uma travesti. Hoje ator e ícone dos transgêneros, seu enredo de vida, que parece uma trama de Almodóvar, está em cartaz na peça "Lou & Leo"

Praça Roosevelt, no centro de São Paulo, ferve em uma sexta-feira à noite. Diante do Teatro do Ator, uma travesti fuma um cigarro e um casal hétero troca carinhos enquanto jovens mulheres conversam sentadas no chão, todos à espera do início da peça Lou & Leo, em cartaz desde o meio do ano e com temporada prevista até o final de novembro, com direção de Nelson Baskerville. No enredo não fictício, a vida e a transformação do ator e iluminador transe­xual Leo Moreira Sá. Aos 55 anos, o protagonista narra com detalhes e digressões a trajetória que o levou de Lou a Leo. 

Nascido Lourdes Helena, esse personagem foi baterista de uma das mais importantes bandas do pós-punk nacional (As Mercenárias), anarquista, dono de casa noturna no auge do movimento clubber, traficante de cocaína e ecstasy, presidiário, ator do grupo Os Satyros e premiado iluminador de teatro. São muitas as facetas para estampar em Leo, mas nenhuma delas supera sua própria definição: um ser humano em formação. 

Corpo estranho

Foi aos 7 anos que a menina Lourdes iniciou o processo de transformação, ao perceber a diferença que existia entre o corpo que via no espelho e o que se passava na sua cabeça. Sua mãe, ao vestir a filha com uma saia para o primeiro dia de escola, ouviu que aquilo era roupa de menina e retrucou: “Mas você é uma menina”. “Na pessoa da minha mãe, o mundo veio me dizer que eu não era quem eu era”, diz Leo.

Hoje superado, o episódio é provavelmente a lembrança mais forte de sua infância, vivida na cidade de São Simão, interior de São Paulo. Caçula de nove irmãos, Leo morava num casarão enorme, onde os pais trabalhavam como caseiros. Mais tarde, depois de passar uma temporada na casa da irmã mais velha, onde sofreu abuso sexual do cunhado, mudou-se para São Bernardo do Campo. Ali começou a viver o despertar da consciência política em meio a passeatas, comícios e greves que eclodiam no ABC paulista no final da década de 70. Não demorou muito para se jogar nas ciências sociais da USP, período em que viveu em pleno exercício da liberdade. “A partir dali o universo se abriu. O Crusp [conjunto residencial da universidade] era autogestionado, totalmente anarquista, uma loucura. O lema era o mesmo do movimento punk: Do it yourself. Não delegue poder, faça você mesmo”, lembra. 

 

Lou era uma mulher andrógina, (...) que não entrava no banheiro feminino

 

Ali, Leo ainda era Lou, uma mulher andrógina que usava roupas fechadas, óculos escuros, cabelo descolorido e não entrava no banheiro feminino. “Eu já era um rapaz”, afirma. Numa sobreloja da rua da Abolição, no centro da cidade, frequentava as reuniões do Somos, primeiro grupo de afirmação homossexual do Brasil, e também do Galf, Grupo de Ação Lesbo-Feminista. Mas foi na noite que conheceu Sandra Coutinho, Rosália Munhoz e Ana Machado que, meio por acaso, entrou para o primeiro grupo de punk feminista do Brasil, As Mercenárias, no lugar do baterista Edgard Scandurra (que saía para virar guitar hero no Ira!). Hoje sem contato com Leo, Edgard, que chegou a produzir dois discos da banda, lembra bem do período. “Era uma época muito rica musicalmente, os grupos alternativos conquistavam um público legal, formador de opinião. As bandas tinham uma autenticidade forte, uma verdade muito grande. A Lou entrou no meu lugar e lembro que era uma pessoa quieta, não falava muito. Tinha seus limites na bateria, mas muita vontade e esforço, uma pegada legal. Acabou sendo a responsável pelos registros fonográficos das Mercenárias, porque eu toquei antes de o grupo ter gravadora.”

Os limites se justificam, já que Leo nunca tinha tocado bateria na vida. Também ainda não tinha cheirado cocaína. Mas logo mergulhou de cabeça nos dois. Era metade da década de 80. “Naquele momento, em que as pes­soas estavam se libertando do regime ditatorial, a banda veio como uma injeção de ânimo para ir à luta”, lembra o ator. Luiz Calanca, dono da loja e selo independente Baratos Afins, que lançou o primeiro álbum das Mercenárias, também era figurinha de destaque na cena. “Era uma época maravilhosa e todo mundo curtia a banda. A gente sempre trocava ideia sobre música, tomava uma cerveja juntos. Lou era muito discreta, nunca percebi ela chapada ou vomitando por aí... Nas gravações ou dias de shows tava sempre bem lucidona, bem pé no chão”, lembra. Quando a banda acabou, no final da década, cada uma das meninas foi pra um lado. “Nessa hora dei uma pirada. Tinha encontrado um espaço onde minha expressão de gênero, minha expressão artística e a militância política estavam em harmonia. Teve uma ruptura naquele momento e a partir daí comecei a cheirar muito.”

Ressurgindo das cinzas

O pó ainda ia fazer parte da vida de Leo durante muito tempo, enquanto ele migrava do punk para o techno. Na década de 90, abriu a boate Circus e conheceu sua futura companheira, Gabi, numa festa. Namoraram um mês antes de terem coragem de transar – isso porque Gabi era travesti e até a comunidade LGBT achava a união bizarra. O casal tentou se casar na igreja Nossa Senhora do Brasil, uma das mais tradicionais de São Paulo (no cruzamento das avenidas Europa e Brasil), mas o padre não aceitou, pedindo para os noivos voltarem depois de dois anos, “reabilitados”. O casamento saiu no civil e Leo, ainda Lourdes, se vestiu de mulher para se unir a Carlos, ou melhor, Gabi.

O casal virou sensação na noite paulistana. Todo dia, Gabi se montava e saía com um modelo diferente, vestindo Walério Araújo e calçando Fernando Pires. A grana entrava fácil – Leo vendia cocaína e as portas se abriam com muita facilidade. “As bichas faziam fila”, lembra, rindo. Eles moravam em uma casa no Brooklin, bairro residencial na zona sul, tinham carro importado e cheiravam muito juntos. Quando Gabi teve uma overdose, Leo parou de vender cocaína e passou a traficar ecstasy. “Passei dez anos nessa vida louca, a gente não pensava em cadeia. Estava tão envolvido com a droga que não sobrava espaço pra pensar nas consequências. A gente tinha uma vida de luxo, só queria se divertir”, conta.

 

"Não quero me reduzir a gêneros, nós sabemos que são construídos socialmente"

 

Foi preso, sob acusação de tráfico de drogas, e pegou seis anos de detenção, cumpridos em diferentes penitenciárias: Pinheiros, Franco da Rocha, Tatuapé, Santana e Campinas. “Eu pratiquei crime, mas jamais fui do crime. Os caras que me prenderam e as testemunhas falaram que eu era de facção. Imagina, eu nem sabia o que era PCC, fui conhecer lá dentro. Fui um grandessíssimo otário, podia ter morrido facilmente.”

Não morreu, mas tomou muita porrada na prisão. Uma delas foi de uma detenta com quem dividia – com outras 25 – uma cela de 3x4 metros no cadeião de Pinheiros. Num mal-entendido, Tia Carioca, como era conhecida, achou que Leo estava a acusando de roubo. Prensou sua cabeça entre as grades. “Depois tive que desafiá-la. Uma pessoa covarde lá dentro nunca vai ter respeito. Aquele negócio tem ética e se você não souber, tá perdido”, diz. Apanhou de novo, levou muitos socos. Teve sua camisa rasgada, o que expôs seus seios em pleno pátio, desmaiou. A cena o marcou profundamente. “Ali dentro, uma palavra errada te coloca numa situação de perigo. Era um comportamento que eu não dominava. Tive que aprender a me comportar e, principalmente, a não falar.”

No tempo em que esteve preso, Gabi foi para a Europa e os dois pararam de se falar quando ela descobriu que Leo tinha uma namorada nova lá dentro, com quem aprendeu regras de sobrevivência. “Mas Gabi é o grande amor da minha vida, vai ser pra sempre”, confessa. Os dois se reencontraram ano passado, durante a apresentação de uma peça. Decidiram assinar o divórcio e desde então pouco se falam. Leo também não tem mais contato com a família, com exceção de uma irmã e um sobrinho, com quem conversa de vez em quando por telefone.

Recomeço

Foi quando saiu da prisão que a Lou de fato ficou pra trás. Quando fez um teste na companhia Os Satyros, quase passou despercebido pelo diretor, que o conhecia desde a época da USP – a mulher andrógina tinha dado lugar ao homem que é hoje. “O Leo é a Lou em um tempo e um espaço diferentes. A Lou tá aqui, é parte integrante. O que pra mim é muito importante é não sair de uma caixinha chamada mulher para cair em outra chamada homem. Não quero me reduzir a gêneros, nós sabemos que eles são construídos socialmente. Por que eu vou me normatizar, reconstruir meu corpo como o de um macho alfa, hétero, branco? Não.” Luiz Calanca lembra o dia em que Leo apareceu na sua loja perguntando: “Lembra de mim?”. “Tava de barba, era muito difícil reconhecer. Foi meio que um choque, mas tem que ser muito macho pra ter uma atitude dessa, não é pra qualquer um. É um puta cara.”

Para Leo, a melhor maneira de se expressar politicamente hoje é assumindo a sua transgeneridade. “O que os trans em geral fazem é esquecer o passado, uma coisa que não consigo. Tenho orgulho do que fiz e de quem fui, tanto que a peça resgata a memória de maneira reflexiva. Todas as perguntas que são colocadas pro público eu tive que fazer a mim mesmo, refletir sobre o passado com amor, não com repulsa. Isso me fez um ser humano melhor.”

Técnico de iluminação formado pela SP Escola de Teatro, Leo dividiu com Rodolfo García Vázquez o prêmio Shell 2012 de iluminação pelo espetáculo Cabaret Stravaganza. A arte ajudou na reconstrução de sua personalidade, literalmente. Com o dinheiro do prêmio, ele realizou a mastectomia que retirou os seios da Lou. Na peça Lou & Leo, o peito nu exibe as cicatrizes da cirurgia e também aquelas internas. “Nos ensaios, revivi toda a emoção, chorava quase todo dia, não conseguia falar o texto. Até que o Nelson me disse: ‘Você quer que as pessoas tenham dó ou quer fazer arte?’. Aquela frase acabou comigo. Não sou eu que tenho que chorar, é o público. Foi muito difícil fazer esse distanciamento.”

Diretor-fundador da Associação Brasileira de Homens Trans, Leo tem cons­ciência de que a sua arte é militante e essencial para o debate em torno da questão transgênero, que ainda engatinha no Brasil. “Eu não precisava marcar que sou um homem trans, poderia passar despercebido tranquilamente, como muitos fazem. Mas minha consciência política não deixa. A minha busca de identidade hoje não é para me encaixar, como eu achava que deveria, mas para desconstruir tudo que eu tinha pra buscar alguma coisa que eu possa dizer: sou eu. Não sou homem, não sou mulher, sou um ser humano que está em processo de construção de sua própria identidade.”

 

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