Feminista e contra o aborto?

por Lia Bock

Um texto pró-vida argumenta que é possível ser feminista e ainda assim contra a descriminalização do aborto. Demagogia pura.

Uma “escritora, futura mãe e ex-missionária” norte-americana publicou o polêmico texto "Why I’m a pro-life feminist" [Porque sou uma feminista pró-vida]. Pois é, Claire Swinarski se diz feminista e pró-vida (leia-se “contra o aborto”). A mim parece que ela e sua turma estão tentando derrubar a última fronteira do feminismo – que hoje sabemos ter muitas caras, muitas correntes –, o direito da mulher sobre o próprio corpo. Correu uma lágrima de tristeza. Claire usa argumentos que podem seduzir os mais desatentos. Diz ser a favor de direitos e salários iguais, por exemplo, e martela que, sim, é possível ser feminista e ser contra o aborto. Será?

Nada contra as mulheres que jamais fariam um aborto. Cada uma sabe de si. Mas tudo contra deixar na mão do Estado uma decisão que deve ser tomada individualmente. Então, Claire, se você não quer fazer um aborto, não faça. Se quer gastar sua lábia convencendo mulheres fragilizadas e em dúvida de que elas não devem abortar, vá em frente. Mas por favor, não venha me dizer que é normal um bando de religiosos imporem seus credos aos demais. Normal é cada um ter autonomia sobre o próprio corpo e a garantia do Estado de que poderão seguir suas decisões com segurança.

Claire escreve em seu texto: “Ser pró-vida não significa necessariamente que você é atrasado, cheio de ódio ou ignorante. Não significa nem mesmo que você é religioso. Eu comecei a abraçar a ideia de que ser pró-vida é ser pró-mulher.” Parece até bonito num primeiro momento. Mas o que ela e seus colegas ignoram é que 47 mil mulheres morrem por ano no mundo devido a complicações causadas por abortos inseguros (dado da World Health Organization – agência que pertence à ONU). Ou seja, ser pró-vida hoje é ser cúmplice dessas mortes. E lembremos que não é raro escutar essa turma dizer “abortou, tem mais é que morrer”.

Como ignorar esses dados? Um dos argumentos de Claire pede que cuidemos das mulheres em situação de fragilidade: “Precisamos compreender por que tantas mulheres afro-descendentes se encontram em situações em que a escassez de recursos as impede de sustentar uma gravidez e potencial adoção ou maternidade. Ao invés de dar de ombros e deixar o aborto ser a solução, a sociedade deveria procurar maneiras de atacar essas estruturas [de desigualdade] em sua base”. Mas o que ela faz com essas palavras é demagogia pura, e só perpetua a marginalização das 21,6 milhões de mulheres que procuram clínicas clandestinas para fazer aborto todo ano.

Claire, minha cara, nada contra suas crenças ou sua cruzada pessoal, mas descriminalizar o aborto é, sim, cuidar dessas mulheres. É dar ouvido, segurança e direito de escolha para elas. E não, nem sempre as pessoas recorrem ao aborto por falta de opção, muitas vezes essa é uma decisão consciente. Por favor, respeite-a.

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