A juíza brasileira que vai decidir o futuro do presidente do Sudão
A Tpm acompanhou o dia-a-dia da única juíza brasileira no Tribunal Penal Internacional, em Haia. É ela que vai decidir se o presidente do Sudão – acusado do primeiro genocídio deste século – deve sair do poder
Sylvia Helena de Figueiredo Steiner é uma mulher imersa em conflitos. E dos bravos. Atualmente, do seu gabinete no 13º andar do Tribunal Penal Internacional em Haia, na Holanda, a juíza paulistana cuida de dois casos de comoção mundial: o genocídio de Darfur, no Sudão, e a guerra civil na República Democrática do Congo (ex-Zaire), ambos na África e cujo saldo são milhares de mortos, desaparecidos e desabrigados. No caso de Darfur, o principal acusado é o atual presidente sudanês, Omar Hassan al-Bashir, cujo destino está agora nas mãos da brasileira – que analisa se expede ou não o mandado de prisão contra ele. “A decisão deve sair agora em outubro ou novembro”, diz.
Aos 55 anos, Sylvia é hoje a única juíza brasileira no Tribunal Penal Internacional, criado por uma confraria de países e que funciona desde 2003 em Haia. “O TPI só atua contra as violações mais sérias da lei internacional e quando a justiça dos próprios países onde ocorreram os crimes se mostra incapaz de julgar os casos”, explica a juíza em seu gabinete, onde recebe a reportagem da Tpm. À frente de uma das câmaras de pré-julgamento, Sylvia não trabalha sozinha. Ela analisa a validade das provas e de mandados de prisão com outras duas juízas – uma de Gana, outra da Letônia. E também comanda em inglês uma equipe composta de oito assistentes e estagiários, cujo bendito fruto é o espanhol Hector Olasolo.
Bandeira feminina
A maciça presença feminina no staff de auxiliares é mera coincidência, mas a exigência de um número mínimo de juízas não: está no estatuto do TPI – que Sylvia, inclusive, ajudou a redigir antes mesmo de sonhar com um posto naquelas plagas. “As mulheres são as que mais sofrem durante esses conflitos armados: perdem maridos, têm os filhos seqüestrados pelas milícias, são estupradas e escravizadas sexualmente”, diz. “E acho que as juízas têm mais sensibilidade para julgar essas questões”, afirma.
Talvez por conta da tal sensibilidade feminina, Sylvia Steiner estivesse imersa em outro conflito naquela tarde de agosto. E dos bravos. Uma pista para entender o motivo está nos inúmeros porta-retratos espalhados pelo aparador e pelas duas janelas do seu gabinete.“São meus netos”, diz, ao mostrar com orgulho as quase onipresentes fotos de Arthur, 5, Tatiana, 2, e os gêmeos Rafael e Felipe, de 10 meses.
Dona da história
Naqueles dias ela recebia em Haia a visita dos dois netos mais velhos, além do primogênito, Carlos Eduardo, 35, e da nora Cris. Daí, não por acaso, o embate: o lado avó queria chegar em casa logo para brincar com as crianças e curtir a família, mas a porção juíza sabia das urgências profissionais. “O resultado é que acabo sentindo muita culpa, esse mal feminino”, constata, enquanto acende um dos 20 cigarros do dia.
Sylvia se mudou para a Holanda há cinco anos, depois de ser eleita por um grupo de embaixadores da ONU com o aval de mais de 100 ONGs como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch para uma das 18 vagas de juízes do então recém-criado TPI. Na empreitada, derrotou 48 concorrentes do mundo todo. “Acho que pesou o fato de eu ser mulher e também minha militância na área de direitos humanos”, analisa ela, que, entre outros, participou do grupo Tortura Nunca Mais na década de 80, quando lutou pela abertura de arquivos que ajudariam na localização dos corpos de presos políticos vítimas da ditadura. Ao conquistar a cadeira no tribunal, Sylvia deixou para trás a vida estabilizada de desembargadora federal e a família em São Paulo – ela também é mãe de Luís Henrique, 33, pai dos gêmeos.“Cheguei aqui apavorada”, conta. “Nas primeiras audiências minha voz tremia, mas fui em frente.” Hoje o medo é coisa do passado. A saudade da família, porém, continua incomodando. “A distância é dura”, conta. “Logo que cheguei aqui, meu primeiro neto nasceu prematuro, ficou entre a vida e a morte e só pude acompanhar pelo telefone”, lembra.
Separada pela segunda vez, Sylvia vive sozinha no amplo apartamento em Scheveningen, um sofisticado balneário nos arredores do centro de Haia. E nem pensa em juntar os trapos novamente. “Às vezes sinto falta de um namorado, mas para viajar, sair para jantar...”, diz, sem disfarçar o temperamento forte de quem criou sozinha os dois filhos – que, aliás, seguiram a carreira da mãe. “Sou muito exigente, perfeccionista, capricorniana”, enumera. “E não aceito gente que põe a culpa dos problemas na vida, pois cada um é o dono da própria história.”
Recém-nascido
Dona da sua, Sylvia quer fazer história no TPI. “Quando o Celso Lafer [então ministro de relações exteriores] me ligou para me parabenizar pela vitória, disse a ele que seria a melhor juíza deste tribunal”, conta. A tarefa não é fácil. “Em um tribunal internacional como este, o grau de exigência em uma escala de zero a cinco é seis”, brinca. Há também a cobrança externa por resultados, visto que o TPI jamais julgou um caso em cinco anos de existência. Ou seja, apesar da grande repercussão na mídia e da existência aplaudida, a jurisdição até agora não mostrou a que veio. Tampouco é reconhecida por países como Estados Unidos e China. Sylvia sai em defesa da cria. “Nosso tribunal é praticamente um recém-nascido e dependemos da colaboração dos países em conflito, o que nem sempre acontece”, justifica, para emendar: “A gente não tem a menor ilusão de que vai acabar com a guerra no mundo, mas mandamos uma mensagem importante, a do fim da impunidade”.
Pode parecer utópico, mas é alimentada por essa certeza que Sylvia se dedica de corpo e alma ao trabalho, onde chega a ficar 12 horas diárias nos momentos de pico. Às vezes, não nega, a morosidade do processo lhe traz uma certa frustração, aquela sensação de (muita) labuta em vão. De qualquer forma, ela não se abate. “Não foram poucas as madrugadas em que dividimos pizza”, conta, referindo-se às horas extras na companhia de assessores e estagiários. Essa falta de hierarquia, inclusive, é o que mais a atrai na sociedade holandesa. “Aqui não existe essa história de o juiz ser mais que o faxineiro”, jura. “ Mas, por outro lado, não tenho mordomia.”
Jantar com a rainha
Não que sinta falta. Sylvia, que dispensa ser chamada de “dotôra”, é do tipo sem pompa e circunstância, que não esquece das épocas de vacas magras quando no fim do mês precisava decidir se pagava o condomínio do prédio ou a escola das crianças. Se é inegável que a carreira internacional lhe franqueou as altas-rodas freqüentadas por embaixadores e soberanos mesmo assim não deixa de ter amigos de várias classes sociais. É o caso da paraense Cristina Freitas, que uma vez por semana arruma o apartamento e faz as unhas da juíza. “Mas, no dia-a-dia, sou eu que faço supermercado e lavo as roupas”, diz a excelentíssima, que agora prepara o traje de gala para um jantar com a rainha Beatriz em setembro. E, para se comunicar melhor em certames assim, estuda duas horas de holandês, uma vez por semana. “Vou ficar aqui nove anos no total e acho uma vergonha não falar nem o básico.” Ao término do mandato, em 2012, ela já tem destino certo: “Vou ser avó em tempo integral por um bom período”, planeja. E sem conflitos.
CRIMES INVISÍVEIS
Os casos do Sudão e do Congo em detalhes
Atualmente a juíza Sylvia Steiner cuida de dois casos. Um deles é o de Darfur, no Sudão (África), considerado o primeiro genocídio do século 21. Milícias ligadas às tribos fur, masalit e zagawa, da região de Darfur, iniciaram o confronto em 2003 por se sentirem marginalizadas. Em resposta, o governo do presidente Omar al-Bashir bloqueou todas as negociações e se associou ao Janjaweeds, um temido grupo local de bandidos cujas armas de guerra são o estupro de mulheres e crianças, o terror e a queima de vilarejos inteiros. Desde então, pelos cálculos da ONU, já morreram cerca de 300 mil pessoas. Agora, a juíza está avaliando se as acusações contra Bashir são justificadas e decidirá se aceita ou não o caso. Se o processo for aceito, o Sudão precisará cumprir um mandado de prisão e terá de entregar seu presidente. O problema é que o país africano não reconhece a legitimidade do TPI e se nega a cumprir qualquer decisão. Nesse caso, caberá ao Conselho de Segurança da ONU definir se vai impor sanções. Até agora dois mandados de prisão contra outros acusados foram expedidos, mas ninguém ainda foi preso.
Violência, fome e doença
Em relação à República Democrática do Congo, o país centro-africano foi palco de uma guerra civil entre 1998 e 2003 que matou pelo menos 3 milhões de pessoas pela violência, por fome e doenças. Isso porque a nação abriga mais de 250 grupos étnicos disputando poder e riqueza. Três acusados já estão presos, entre eles o líder rebelde e ex-vice-presidente Jean-Pierre Bemba, acusado de cinco crimes de guerra, como o uso de crianças soldados. Membros do Movimento de Libertação do Congo, que ele comandava, são acusados de vários estupros – o drama das vítimas está no documentário Crimes Invisíveis, de Win Wenders. Vale dizer que além dos casos do Congo e do Sudão estão hoje na pauta do TPI os conflitos da República Centro-Africana e de Uganda.