O que você pensa quando olha pra mim?
A Tpm perguntou a uma judia, uma evangélica, uma muçulmana e uma umbandista se é possível conciliar fé com vida moderna e dogmas com liberdade
Maya Nigri tem 34 anos, é casada há 12 e passa quase duas semanas por mês dormindo em uma cama separada da do marido. Durante esse intervalo, eles não se beijam nem se tocam. O jejum tem início no primeiro dia do ciclo menstrual e se encerra sete dias após o término, o que implica em 12 dias sem sexo. O fim do período é marcado por um ritual feminino em que a mulher mergulha em uma piscina na sinagoga para ser purificada. O casal então se reencontra e volta a juntar os travesseiros. “A religião judaica obriga você a fazer essa reconexão todos os meses e acho muito saudável para o relacionamento”, diz ela, que nasceu em Israel e foi criada no Brasil.
Quando se casou, aos 22, Maya escolheu seguir todo mês essa dinâmica, conhecida como a lei da pureza familiar. Ainda assim, não vê sentido em cumprir à risca todos os preceitos judaicos. “Contesto muita coisa”, diz. Vaidosa, não usa peruca e vestimentas que cubram colo, braços e pernas, prática comum entre as judias ortodoxas. “As roupas estereotipam as mulheres e usá-las não faz de nós mais religiosas.”
Assim como Maya, Isadora, Soha e Bruna escolheram levar suas vidas de acordo com suas crenças. Mas, independentemente da religião que seguem – judaica, evangélica, muçulmana e umbandista, respectivamente –, as religiosas são sempre vistas como mulheres submissas, que não contestam regras e leis impostas. Dificilmente, a sociedade atribui a elas sucesso, liberdade e poder. Mas é possível conciliar a fé com a vida moderna?
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“Quando conto que sou judia, as pessoas pensam no estereótipo da religiosa submissa, mas eu sou outro tipo de judia. Existem milhares”
Maya Nigri
Filha de nordestinos e criada na Igreja Evangélica Neopentecostal, a paulistana Isadora Nascimento, 29 anos, frequentava na adolescência o grupo de jovens e passava os sábados e domingos ouvindo as palavras do Senhor e realizando trabalhos voluntários. O templo era sua segunda casa, onde encontrava amigos, dançava e consultava o pastor sobre seus relacionamentos – lá, conheceu seu marido, com quem se casou aos 23. Com o passar dos anos, percebeu que o discurso da igreja pregava que a mulher fosse subserviente. “O sermão que confere a nós o papel de cuidar dos filhos, da casa e do marido não faz sentido para mim, porque não se encaixa na realidade das mulheres negras brasileiras. Minha mãe e avó sempre trabalharam para sobreviver”, conta. “A mulher negra periférica não tem um homem para prover a casa. A referência dela é a solidão.”
Isadora, então, trocou a Neopentecostal pela Igreja Batista, para ela mais plural e democrática. Embora siga condenando certos posicionamentos – como a não aceitação dos homossexuais –, abandonar a religião nunca foi uma opção. “A Igreja Evangélica é de maioria negra e feminina, mas liderada por homens brancos. É importante estar neste ambiente combatendo o machismo, o racismo e as estruturas de poder.” Fora da igreja, ela participa do Projeto Redomas, que, por meio de textos, estudos bíblicos e podcasts, dá voz às mulheres cristãs que sofrem opressões e violências naturalizadas nesses espaços de fé. Isadora produz e apresenta o RedomasCast, que discute feminismo, política, saúde mental e casamento cristão. “Levamos um olhar diferente para mulheres crentes fora da instituição. É uma oportunidade de ampliarem seu repertório.”
Olhando para trás, ela assume que tinha um comportamento extremamente evangélico e reprovava o que não se assemelhava a seus iguais. Ia cinco vezes por semana à igreja, limitava os espaços onde circulava, as companhias e até as músicas que consumia. “Por que ouvir Anitta, se ela não te leva a Deus?”, costumava questionar. Hoje, só frequenta os cultos aos domingos e em eventos específicos. A convicção de sua fé, porém, ela nunca pretende mudar. “Fé é onde a gente se sustenta. É o que me dá a força que não consigo encontrar em nenhum outro lugar.”
“Quando conto que sou evangélica, as pessoas acham que julgo o comportamento alheio, mas eu sou compreensiva”
Isadora Nascimento
Segundo os dados mais atuais sobre a população religiosa no país, divulgados no Censo Demográfico 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 22,4% dos brasileiros se consideram evangélicos. Em 2000, esse percentual era de 15,4% e a tendência é que o número aumente significativamente no Censo 2020, já que a população evangélica é a que mais cresce no país. Os católicos representam 65%, espíritas formam 2% e as religiões de matriz africana (umbanda e candomblé) não constam nas estatísticas. Já os brasileiros que dizem não seguir nenhuma religião somam 8%, e outras religiosidades, 4,9%.
Hijab como proteção e afirmação
A muçulmana Soha Chabrawi, 37 anos, faz parte dessa última porcentagem. De ascendência árabe e filha de pais egípcios – seu pai era xeique –, desde que aderiu ao hijab (conjunto que é composto pelo lenço e deixa à mostra o rosto), ela convive com olhares desconfiados e agressões verbais. “O uso do hijab é um mandamento divino, mas não pode ser uma exigência da sociedade, do pai ou do marido. Comecei a usá-lo por uma questão pessoal. Por ser expansiva, muitos homens já pensaram que eu estava me insinuando quando ainda não usava o véu”, diz. Soha morava em Brasília e fazia mestrado em neuropsicofarmacologia, trabalhava como tradutora em congressos – ela domina árabe, inglês e espanhol – e acabava sendo vítima de assédio moral.. “Cansei desse tipo de situação e decidi que o véu seria uma forma de proteção, além da identificação muçulmana”, explica. “O hijab impõe respeito. Hoje, para alguém se aproximar, preciso permitir.”
Divorciada e solteira há quatro anos, ela cuida sozinha de suas filhas, de 8 e 6 anos, e se considera uma mulher livre, apesar de viver restrita às normas. “Liberdade é poder pensar da forma que quero, fazer o que bem entendo, ter a posição política que desejo. Logo que casei, meu ex-marido esperava que eu fosse discreta por ter berço árabe. Queria que eu falasse baixo, não conversasse sobre qualquer assunto na presença de amigos dele. Mas ser muçulmana não significa ser pudica.”
“Quando conto que sou mulçumana, as pessoas acham que sou oprimida, mas eu sou livre”
Soha Chabrawi
O estigma da mulher como propriedade do homem, acredita ela, foi propagado pela mídia. “Em algumas culturas árabes, isso pode acontecer, mas não é uma imposição religiosa. O Alcorão diz que o homem está acima da mulher, mas no sentido de ele ser o provedor. A mulher não é proibida de trabalhar”, explica Soha. Formada em ciências biológicas e com doutorado em neurociência e cognição, atualmente ela trabalha no setor de garantia da qualidade de uma certificadora Halal, a Fambras Halal, que assegura que os produtos certificados sigam as normas da jurisprudência islâmica, estando aptos para o consumo dos muçulmanos.
Féministas
Diferente de Soha, que carrega os signos do islamismo nas roupas de maneira bem evidente, a historiadora e cientista da religião Bruna David, 29 anos, leva no pescoço uma discreta guia de proteção da umbanda, religião da qual se tornou adepta no fim da adolescência. Criada sob a influência de avós católicas, ao se descobrir lésbica entrou em conflito com a Igreja e se afastou após uma tentativa de “cura gay” por parte da família. Passou a frequentar um centro espírita kardecista, até que, aos 18, se mudou de São Paulo para Franca (interior do estado) e conheceu a umbanda. “Me senti em casa na primeira vez que entrei num terreiro”, conta. Na faculdade de história, ficou fascinada pelo tema da religião e passou a estudar as afro-brasileiras. “Comecei a ver que na história da umbanda houve um movimento racista e xenofóbico.”
Ativista das causas lésbicas e feministas, começou a militar nos meios religiosos depois que um casal de amigas sofreu lesbofobia em um terreiro, durante a cerimônia de casamento. “Na crença da umbanda, não há nada que seja contrário aos homossexuais. Mas a religião é feita por pessoas, então, mesmo nas afro-brasileiras, que têm o conceito de livre-arbítrio maior, nem todos colaboram”, diz Bruna. “Trabalho pela visibilidade porque a umbanda tem pouca representatividade. É uma religião de resistência, que me trouxe esse questionamento da liberdade. Para mim, liberdade é conseguir questionar as regras e revolucionar. Tenho mesmo que ser hétero, magra?”.
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Pelo seu histórico na defesa dos direitos humanos, Bruna foi convidada a fazer parte do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, organização não governamental que há 25 anos luta pela diversidade sexual e pela descriminalização do aborto no Brasil. Este ano, ajudou a fundar o Féministas, grupo aberto para mulheres de todos os credos trocarem experiências e pautas de interesses femininos. Nos dois encontros que já aconteceram, discutiram experiências lésbicas nas religiões e corpos negros na teologia. “Queremos que as praticantes de religião se empoderem do discurso, por isso a linguagem acessível é muito importante. Não adianta chegar para uma mulher evangélica da periferia falando de patriarcado, sororidade, equidade. Esses termos têm uma carga política e elas já têm uma carga social de submissão. O machismo dentro das comunidades religiosas faz com que elas sejam silenciadas”, diz.
“Quando conto que sou umbandista, as pessoas acham que não conheço Deus, mas eu respeito todas as religiões”
Bruna David
“O corpo feminino sempre foi alvo de controle, muito mais que o masculino, então, as mulheres são mais estereotipadas. O padrão de gênero é forte tanto na sociedade civil como na religiosa, e a maioria das lideranças das religiões é formada por homens”, complementa Bruna.
O judaísmo também é tido como uma religião marcada pelo machismo. Mas Maya, que cresceu vendo sua mãe se dividir entre os filhos e o trabalho, não vê isso como um peso. “A mulher tem um papel muito forte na religião judaica. Ela é o centro da casa, cuida da educação dos filhos, da alimentação. A família é regida pela figura feminina. Escolhi cuidar dos meus quatro filhos e não quero que meu marido chegue perto da minha cozinha, é uma coisa que gosto de fazer, nada me foi imposto”, explica. “O que me dá menos prazer, aí quero que ele participe”, conta Maya, que durante cinco anos foi sócia de um espaço de educação infantil. “Me sinto livre com a religião, não me sinto presa. Liberdade não é fazer tudo. É escolher, dentro dos limites, as coisas que te fazem bem.”
Créditos
Imagem principal: Filipe Redondo