Reconhecer e se apropriar dos próprios ciclos é um caminho para que as dores de ser mulher se transformem em verdadeiras fortalezas
O ano é 2019. Na premiação do Oscar, um curta-metragem sobre menstruação ganha a famosa estatueta dourada. Parece que nunca se falou tanto sobre a importância de reconhecer o corpo feminino e as consequências de uma negação, mas será que as mulheres estão realmente por dentro da própria natureza? "No consultório, percebo que ainda existem aquelas que não sabem nomear suas genitálias, que fazem da TPM um problema e que desconhecem o ciclo menstrual", relata a doutora Telma Regina Mariotto Zakka, médica ginecologista, obstetra e especialista em dor crônica.
Ela conta que é comum se deparar com pacientes que não conseguem identificar as alterações hormonais do ciclo menstrual, ou então que não sabem em qual momento do mês estarão férteis. "Na minha época, falar sobre menstruação era um tabu. As mulheres não falavam, e comprar absorvente na farmácia era um verdadeiro horror. Fico espantada que hoje em dia ainda exista esse desconhecimento… São tantos os aplicativos para celular que indicam o ciclo menstrual, o período fértil e seus sintomas", reflete.
“Escutar nosso corpo é o primeiro passo para se fortalecer enquanto mulher no mundo”
Giselle Itié
Giselle Itié, dentre seu grupo de amigas, é uma das que nunca usaram aplicativos que permitem entender melhor o fluxo menstrual. Porém, a atriz sente que sempre teve uma relação bem intuitiva com seu corpo, principalmente com sua menstruação. Para ela, o motivo de tantas mulheres se desconhecerem é social. "Na história, sempre fomos tão castradas em relação ao nosso organismo que naturalmente deixamos de nos escutar ou de levar a sério o que a nossa intuição está dizendo sobre ele. Dentro disso, acredito que escutar nosso corpo é o primeiro passo para se fortalecer enquanto mulher no mundo."
Achar que a menstruação é um incômodo faz parte da educação de muitas mulheres, o que acaba acarretando uma negação do sangue e, consequentemente, a pouca procura por informação. “Quantas usam anticoncepcional de forma contínua para não menstruar? Quantas ainda acham que a menstruação é um incômodo? O copinho menstrual é uma prova de que algumas mulheres ainda não estão abertas para lidar com o próprio sangue”, reflete Telma. Segundo a médica, existe uma tentativa de anular o fato de que a menstruação faz parte de uma fase da vida da mulher. Reconhecer isso, no entanto, seria uma grande ferramenta de autoconhecimento.
Coisa de mulherzinha
“Larga a mão de frescura, isso é coisa de mulherzinha!” Sem dúvida, muitas mulheres já ouviram essas frases ao relatarem cólicas menstruais. Enquanto há falta de empatia por parte de quem não sente os incômodos decorrentes da menstruação, 92% das mulheres declaram sentir cólicas menstruais e 65% delas descrevem as dores como intensas ou insuportáveis. É o que aponta um estudo sobre dores menstruais e TPM, realizado em 2018 por Buscofem e o instituto de pesquisa Sophia Mind. Os dados também mostram que muitas deixam de se divertir ou ir a algum compromisso importante por causa das cólicas.
Giselle Itié é uma delas. A atriz conta que, durante a TPM e os primeiros dias da menstruação, sua maior vontade é de não ver ninguém, inclusive o próprio reflexo no espelho. Embora não consiga escapar da rotina de gravações, Giselle tem mecanismos para lidar com esse período estando na ativa. "Eu sei quando eu vou ter dor e, quando eu tenho, tenho muita. Com o tempo, pude perceber que isso acontece quando me alimento muito mal ou deixo de me exercitar. Eu amo batata frita, por exemplo, mas hoje entendo que esses hábitos fazem com que meu corpo sofra mais durante a menstruação. Sinto que é importante me estimular com exercícios também, parece que o sangue agradece", confessa.
A dra. Telma Zakka explica que a cólica menstrual acontece porque, durante o processo hormonal, aumenta a produção de prostaglandinas, uma substância que atua diretamente nas células, causando dores e desconfortos abdominais. Portanto, a cólica é, sim, uma coisa física. Pode acontecer antes, durante e até mesmo depois da menstruação. “É o que chamamos de dismenorreia”, diz. Segundo a médica, a dismenorreia pode variar de um leve incômodo a uma dor que impede a mulher de fazer suas atividades rotineiras. Isso tem a ver com a sensibilidade individual para a dor, fatores físicos – como endometriose ou cistos – e até mesmo emocionais, como um histórico de bullying, violência física ou sexual.
Que dores você carrega?
As dores físicas de uma mulher também podem ser influenciadas pelas dores subjetivas que ela carrega. E é exatamente a esses casos que a psicoterapeuta holística Aline Padilha dedica seu trabalho. Como terapeuta, ela pode perceber que muitas mulheres que tiveram primeiras menstruações traumáticas apresentam cólicas mais fortes. “Nossa primeira menstruação é um rito de passagem muito potente. Algumas meninas que veem aquele sangue pela primeira vez têm traumas profundos, acham que estão doentes, que vão morrer. A gente não tem a cultura de explicar o que essa nova fase significa. Na menarca, muitas ouvem: ‘Agora você vai ver a dor de ser mulher’. Porém, esse seria o momento de todas se conectarem com sua força criativa”, acredita.
É importante que todo caso seja individualizado. Porém, em uma visão psicossomática, a cólica também tem a ver com uma não aceitação da sua própria natureza. Isso pode acontecer por memórias de um histórico familiar opressor ou pela própria dor de ser mulher em uma sociedade que nega o feminino, segundo Aline. Para ela, existe uma luta válida por igualdade, mas que não pode perder o reconhecimento da essência feminina. “A força de ser mulher não é a que nos falaram lá atrás e que combatemos hoje. Também não é se adequar ao tempo de um mercado de trabalho masculinizado. Temos que descobrir e reconhecer a verdadeira força do feminino, senão criaremos mais desequilíbrios lá na frente.”
“Saber-se humana e sem a necessidade de ser forte o tempo todo é uma maneira de quebrar essa lógica que nos afasta da nossa própria natureza”
Luedji Luna
A cantora Luedji Luna confessa já ter sentido muita cólica, mas hoje em dia sente pouca ou nenhuma dor. “Acredito que parte da dor está relacionada a uma negação da menstruação. Na medida em que aceitei isso, minha cólica parou.” Sua dor, segundo ela, é a de viver em uma sociedade racista e machista. “Sendo uma mulher negra e carregando esse estereótipo de ser forte por natureza, algo que só nos violenta mais, saber-se humana e sem a necessidade de ser forte o tempo todo é uma maneira de quebrar essa lógica que nos afasta da nossa própria natureza. Procuro buscar força em mim mesma, nas minhas iguais e na minha religião”, entrega.
Mulher cíclica
“Na TPM eu me sinto mais conectada e criativa, costumo escrever muito. Já no período fértil, sinto que é a hora de botar a mão na massa, de realizar os insights que tive no período menstrual. Quando bate minha menstruação com cenas de emoção, fico muito feliz. É naturalmente um momento mais intenso, as lágrimas vêm como um sorriso [risos]. Acho fundamental reconhecer essa ciclicidade. Uma mulher forte é aquela que se escuta, que é legal consigo mesma em tudo, que se abraça e se acolhe. Quanto mais consciência a gente tem, mais fácil é ter uma conexão com nossos ciclos”, relata Giselle Itié.
Já a diretora comercial Patrícia Barros, de 39 anos, sente que menstruar é uma parte importante do seu mês, inclusive no que diz respeito a trabalho, rotina e intimidade. "As mudanças hormonais e de humor fazem parte de quem eu sou. Minha única experiência com pílula me trouxe um estranhamento dessa linearidade artificial causada por ela. A irritação faz parte em alguns momentos do mês, assim como a libido, por exemplo. A própria TPM é uma lente de aumento para coisas que já existem. Ser cíclica faz parte do universo feminino e eu gosto de exercer minha ciclicidade. Ajuda até mesmo no trabalho", diz.
Para a dra. Telma, reconhecer que a menstruação não é um incômodo, mas parte natural do organismo feminino, diz respeito a um discernimento sobre o próprio corpo que ainda está distante de algumas mulheres, mas que é fundamental para que exista um processo de autoconhecimento. Essa aceitação, inclusive, seria de grande importância para lidar com os processos inflamatórios que trazem dor ao menstruar. Assim como ela, a psicoterapeuta Aline Padilha reforça que a TPM, por exemplo, é um chamado profundo para que mulheres se conectem com sua essência. “Não ficamos mais sensíveis à toa, né? Nossa natureza feminina faz com que tenhamos todo esse potencial criativo para nos reinventar mês a mês. Observar isso ajuda a nos alinhar com a nossa verdadeira potência”, conclui.
Créditos
Texto: Camila Eiroa