Somos todos humanos

por Lia Bock

O diretor João Jardim fala de sua nova série Compulsão, que toca por mostrar o lado escuro que há em todos nós

Não é culinária, não é reality show, não é fofinha. Compulsão, a nova série de João Jardim para o GNT, foge do que estamos acostumados a assistir na TV. Em 10 episódios, o diretor mergulha em oito tipos de dependência: comida, sexo, álcool, cocaína, crack, esporte, jogos eletrônicos e compras. Diante de nós, pessoas que chegaram a seus limites contando detalhes dolorosos de um passado distante ou recente. Há sofrimento, há naturalidade, há saídas construídas aos poucos e sempre com muita ajuda. E você me pergunta: porque eu vou assistir um negócio desses? Talvez porque você tenha em si algum lado escuro e estes depoimentos darão a sensação reconfortante de que você não está sozinho. Talvez porque você esteja cansado do entretenimento padrão com muita encenação e pouca reflexão. E se isso mexer com você, fique alegre: você está vivo.

João gosta mesmo é disso: mostrar para quem está diante da tela que estamos vivos. Gosta de cutucar cantos pouco frequentados e, para muitos, nem sempre palatáveis para a hora do jantar. Em seu filme Amor? ele deu vida a depoimentos reais sobre violência através de atores. Em Janela da alma, botou Win Wenders, José Saramago e mais 17 pessoas com alguma deficiência visual para contar como veem o mundo. No GNT, é dele as séries Novas Famílias e, mais recentemente, Amores livres, em que (mais uma vez) sentados diante da câmera, pessoas contaram sobre diferentes formas de se relacionar — a três, a quatro, a muitos. “Se vamos fazer, quero que seja modificador. Quero fazer de verdade”, diz João.

E, acredite, fazer de verdade é intenso. João conta que lidar com o sofrimento humano presente em Compulsão foi muito difícil — e está sendo, pois parte da série ainda não foi toda editada. Mas na terça-feira (8) foi ao ar o primeiro episódio, em que Ruy Castro revelou detalhes de seu alcoolismo. Com depoimentos também da ex-namorada e da atual companheira, somos conduzidos pelos momentos nada glamorosos da dependência do escritor, que incluem duas garrafas de vodca por dia, vexames dos mais variados tipos, tremedeiras e o distanciamento das filhas. Hoje, Ruy está há 25 anos sem beber, mas afirma sem pestanejar: “A dependência é mais forte do que o medo da morte”. Em um dos próximos episódios Rodrigo Santos, baixista do Barão Vermelho, conta sobre sua dependência de cocaína. A sinceridade e a abertura dos entrevistados chama atenção e nos prende a histórias que, sim, poderiam ser a de qualquer um de nós. Em uma conversa com a Tpm, João falou sobre filmes que já nascem mortos e a dor de lidar com o sofrimento dos entrevistados.

Você já trabalhou com este formato de entrevistas antes. Mas agora, em Compulsão, é impressionante como as pessoas se abrem, expõe as fragilidades, as feridas. Qual o segredo pra tirar isso delas com respeito e tamanha vivacidade? Eu não sei. Tenho muito interesse pelas pessoas e, claro, a gente fez o dever de casa. Estudamos as possíveis implicações dessas compulsões na vida das pessoas. Mas é realmente uma conversa muito de perto. As pessoas jogam uma semente e eu rebato, e assim a conversa vai crescendo. Pude perceber isso claramente com o Ruy Castro. Ele está acostumado a entrevistas e a elaborar o que aconteceu, mas, mesmo assim, na nossa conversa a coisa foi crescendo. Eu me interesso pela história pessoal, única, não a teoria. Acho que personalizar ajuda a fazer com que a pessoa vá para algum lugar interessante na entrevista.

Como se dá a pesquisa para encontrar esses personagens? Há uma pré-entrevista feita pela pesquisadora. Daí, selecionamos as pessoas que contam melhor sua história. Nestas entrevistas eu não estou presente e assisto apenas parte do material gravado. Eu não saber a história toda é importante, porque uma das coisas que me interessa é estar ouvindo aquilo pela primeira vez, isso me deixa mais vivo na conversa. Sei o que aconteceu mas deixo espaço para ser surpreendido. E nunca levo lista de perguntas. Eu vou seguindo a trilha das pessoas. Nunca interrompo as falas e sempre pergunto em cima do que foi dito ali na hora. E claro, demoramos um mês pra montar cada programa. Dar sentido àquilo depois dá muito trabalho, justamente porque acontece dessa maneira mais solta. Jamais poderia ser feito assim num veículo jornalístico, porque não daria tempo de fazer a revista ou botar o material no ar. Nós temos este tempo.

Quanto tempo duram as entrevistas? Duram entre 1h, 1h30 no máximo. Não é muito longo. A gente não aguenta mais que isso. O tema é muito pesado.

Como é lidar com assuntos tão intensos? Tô até agora tentando me recuperar. Foi a parte mais difícil: lidar com o sofrimento que as pessoas expuseram. Quando começamos um trabalho estamos abertos, nunca sabemos onde ele vai dar. E neste caso apareceu essa dor, essa incapacidade do ser humano de lidar com algumas coisas. A compulsão é quase que um aspirador de pó pra dentro do sofrimento. Aspira o ser humano pra dentro de um redemoinho de emoções negativas.

Lugar bem escuro. Como isso bate na equipe de forma geral? É um lugar bem escuro, exatamente. É difícil. A gente tem cinco programas prontos, estamos no meio, ainda temos mais cinco pra finalizar. Ficamos todos muito abalados. As três editoras, por exemplo, não conseguem fazer mais de três programas. É bem doloroso ficar ouvindo isso o tempo todo. Acho que precisamos terminar todo o processo para eu conseguir responder essa pergunta com mais clareza. Ainda estamos lidando com isso e não adianta negligenciar e querer resolver rápido. Não dá. É a história daquelas pessoas, é o sofrimento delas. Se o cara está se expondo daquela maneira, precisamos cuidar com muito respeito. Claro que é muito legal ter a possibilidade de fazer um trabalho sobre esse assunto, tão importante na nossa sociedade, mas é um buraco negro com muitas informações dolorosas. Pra mim tem sido um momento difícil.

É um conteúdo bem diferente do que está sendo feito na TV hoje. Não é reality show, não é culinária… Vale a pena fazer justamente porque é diferente. Eu busco exatamente isso. Se vamos fazer quero acrescentar, quero fazer algo modificador. Quero fazer de verdade. A Marina, que conta sua história com o excesso de esporte e anorexia, me tocou muito. É uma coisa tão comum e mostramos como foi difícil. Minha ideia era mesmo essa: colocar um tijolinho a mais na percepção que temos da compulsão. De preferência vários tijolos a mais. São oito tipos de compulsão e queremos mostrar que, mesmo com suas diferenças psíquica, elas vem do mesmo lugar no cérebro. Isso é muito rico. É tão da natureza humana, é tão essencial. É como o amor, que está dentro de todos nós, não fora, mas falamos tão pouco. O extinto compulsivo está dentro de todo mundo desde a primeira infância. Tanto que o nome já diz, é a pulsão, de Freud: com pulsão.

Você fez o filme Getúlio, uma produção de grande porte que recria um trecho da história brasileira. Qual a diferença de dirigir atores e de dialogar com os protagonistas reais da história que você está contando? Comecei a trabalhar com documentário. Fiz trajetória na coisa documental, tá no meu sangue, mas queria visitar a área da ficção — e ainda tenho esse desejo. Mas, de alguma maneira, procuro temas da ficção que estão ligados ao real. A história do Getúlio não só tem um pé na realidade por ser um fato histórico, mas o comportamento dos atores segue um padrão de personagens de existiram. Uso muito do que eu aprendo no documental sobre comportamento humano para trabalhar os atores. Fiz o documentário Amor? que são depoimentos reais de mulheres e homens que se envolveram em violência, encenados por atores. Foi o máximo que eu cheguei da integração entre documental e ficcional. Gosto muito de misturar essas duas coisas. E se pensarmos, a própria questão documental numa série, a edição, o trabalho em cima, sempre traz uma coisa que não é real, tem um toque ficcional.

Mas na ficção tem um preparo gigantesco. Não dá pra chegar sem as perguntas. Perguntei exatamente isso pro Caca Diegues: “Caca, quando faço algo documental vou pra uma situação em que sei que a mágica vai acontecer. Na ficção tá tudo organizado, tem roteiro, já sabe como é a roupa, a luz, as falas. Como é que vai vir essa mágica?” E ele disse: “fica calmo que acontece.” E é verdade, porque você prevê tudo, organiza tudo, mas tem uma coisa que só liga ali, na hora. A mágica. E tem que estar atento para provocar da melhor maneira. Até por isso vemos alguns filmes de ficção que são muito ruins, porque têm tudo muito amarrado e não nasce nada de real dali. Vemos na tela uma coisa morta. Isso porque o diretor não deu espaço para que acontecesse uma coisa única que só acontece diante da câmera. Tem que preparar, claro, mas estar aberto para o que vem espontaneamente é fundamental.

 Vai lá: Toda terça-feira às 23h30 no GNT. Depois de 24h da exibição na TV os capítulos podem ser assistidos no aplicativo GNT Play.

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