Mara Gabrilli: ’O dia em que Donna Summer me fez sentir uma saudade visceral das gargalhadas do meu pai’
Coloquei pra tocar um DVD que havia ganho há muito tempo e para o qual nunca tinha dado a mínima. A cantora começou a exibir a potência de sua voz quando me deu uma danada nostalgia que nunca tive o hábito de sentir... Chorei de soluçar.
Fui atirada aos meus 10 anos de idade, na primeira vez na vida em que pus um salto alto. O sutil bordado do veludo do sapato combinava com o bordado da saia preta e da camisa meio bata branca. Me arrumei desse jeito, com direito a maquiagem, para assistir a um espetáculo de revista no MGM de Las Vegas. Eu estava acostumada a assistir a shows desse tipo na Europa, em lugares como Lido, Moulin Rouge e Crazy Horse, onde os pais se responsabilizam se quiserem levar seus filhos menores de 18 anos. Embora meus pais tivessem me avisado de que nos EUA essa regra era diferente, ignorei e tive certeza de que minha aparência jamais deixaria dúvidas de que eu era maior de idade.
Fomos todos: meus pais, meus padrinhos, o Beto, os filhos dos meus padrinhos, que eram nossos melhores amigos. Na fila da entrada do grande teatro, fiz questão de esconder o meu medo de ser reconhecida como uma fedelha de 10 anos, salto alto e bolsa. Fui disfarçando, me colocando meio atrás dos parentes quando chegamos à frente do homem que iria me julgar. Meu pai, me olhando, teve uma crise de riso e não conseguia se conter. Ele tentava falar alguma coisa para o “juiz da porta do show”, mas olhava pro meu pé, pra minha bolsa, pra minha cara indignada e maquiada, e só ria mais. Comecei a brigar ferozmente com meu pai, sussurrando com a boca fechada: “Para, pai, assim ele vai perceber. Para, pai, pelo amor de Deus”.
Sapo na garganta
Foi o que aconteceu. O homem disse que eu não poderia entrar – nem o Beto, que tinha 12 anos, nem o Álvaro, que tinha 13. Eu fiz um escândalo na fila dizendo que era culpa do meu pai: aquele porteiro jamais perceberia a minha idade não fosse a gargalhada debochada dele.
Para que eles, adultos, não perdessem o espetáculo, rapidamente nos encaminharam para o teatro ao lado, onde aceitavam crianças. E, com aquele sapo entalado na garganta, assisti a um show da Donna Summer em Las Vegas com o Beto e o Álvaro. Ao ouvir a voz dela, agora em casa, em São Paulo, descalça e sem maquiagem, revivi aquele momento e pela primeira vez tive clareza de que a culpa obviamente não tinha sido do meu pai.
Senti uma saudade visceral das gargalhadas e brincadeiras dele. Ele morreu na Páscoa. Essa foi a terceira sem ele. Porém, inesperadamente, é na Páscoa que ele retorna intensamente nos meus sonhos e pensamentos, transbordando meu coração de afeto e emoção.
Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br