por Mara Gabrilli
Tpm #106

Qual é a sua prisão? Mara Gabrilli reflete sobre liberdade durante visita à penitenciária

 

Sábado de muito sol e eu estava com o secretário da Cultura Andrea Matarazzo indo à penitenciária do Carandiru. Aparentemente, tratava-se de mais uma das centenas de palestras que já fiz, mas meu coração estava batendo em outro ritmo. Eu abriria na ala feminina o programa da Secretaria de Estado da Cultura nos presídios.

Os portões abriam e fechavam prendendo, vistoriando e soltando meu carro, que foi autorizado a me conduzir até a porta da capela onde aconteceria a palestra.

Até onde pude ver havia plantas, flores e espaços iluminados. Eu não visitei as celas. As meninas começaram a chegar em grupos. Todas vestiam calça pescador amarela de moletom, camiseta branca e Havaianas.

Sala cheia, todas sentadas, e eu posicionada em frente a elas pedindo a Deus que iluminasse minha boca. De repente, muitas levantaram, gritando com um bater de palmas bem forte, e se abraçaram. Sem entender, poderia ser o princípio de uma rebelião, contudo pairava no ar uma energia boa e muita comoção. Foi a mensagem de que uma delas estava em liberdade que desencadeou a agitação.

Muito antes de eu começar a falar já estava com o coração apertado. Falei um pouco da minha trajetória. Enfatizei o estado grave em que me encontrei, sem respirar sozinha, sem falar e sem me mexer. Queria mostrar que poderia ter me sentido num cárcere corporal, mas estava ali, cheia de liberdade para falar de vida a elas. Muito embora eu continue quase toda paralisada do pescoço pra baixo, essa história de prisão física nunca me aconteceu.

Elas não sorriam nem choravam. Estavam estáticas enquanto eu palestrava. Até que encerrei a fala e pedi para ouvi-las. O silêncio dominou a sala... Então uma moça negra com dreadlock e sotaque português, que passara o ano anterior sendo questionada pelo seu professor de teatro sobre onde era a prisão dela, disse, emocionada, que a resposta só se fez depois de me ouvir.

Euforia

Outra negra grande se levantou falando em inglês e se apresentou como sul-africana. Agradeceu por poder sair da cela e me ouvir em vez de olhar o nada no pátio. “Hope” e “strength” não deixavam seu discurso. Pediu a sua bonita colega francesa que traduzisse brevemente a minha palestra do português para o inglês. É claro que me ouvir em outra língua, com tamanha retórica e envolvimento, pela voz daquela detenta, molhou meus olhos. O clima ficou de sorrisos e lágrimas.

Uma moça hispânica agradeceu em nome das sul-americanas. Uma marroquina grávida que falava português quis se expressar em árabe. Falou em prantos de emoção e, pasme, também tinha colega tradutora.

A primeira e única brasileira que se expandiu quase não falava de tanto chorar. Deu à luz um filho surdo por tanto consumir crack, e o rejeitou. Agora se deu conta de que poderia ter dado muito amor a ele para que se desenvolvesse.

Quase todas estão presas por tráfico de drogas e perceberam que ali dentro estão em bem melhor situação do que muita gente aqui fora. Cantaram e dançaram para mim, tiramos fotos, nos abraçamos e todas juntas celebramos com euforia a liberdade na cabeça.

Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragab@uol.com.br

fechar